Unificar toda a esquerda pela construção de uma frente anticapitalista

O início de ano está marcado por uma combinação de crise pandêmica, ambiental, econômica, social e política – global. Cenário esse que mantém as difíceis condições anteriores e acrescenta novos elementos de adversidade para a vida das massas, tensionamentos e crises sem que seja vislumbrada uma solução no horizonte mais próximo. Enquanto isso, Lula e PT dão passos no sentido de construir uma frente eleitoral amplíssima, com Geraldo Alckmin como vice-presidente, com os artífices do impeachment de Dilma, com o Centrão e com o capital financeiro. Para agravar a situação, Boulos e a direção do PSOL dão sinais cada vez mais claros de que têm disposição não apenas para chamar o voto em Lula no primeiro turno, mas para ingressar de malas e bagagens nessa coalizão de classe. O que significará, se for concretizado, a liquidação completa do PSOL como alternativa de esquerda.

ANTONIO SOLER

Tivemos no último período o avanço de importantes contrarreformas, como o caso da privatização da Eletrobras e da autonomia do Banco Central. Outros ataques, como a reforma administrativa e a privatização dos Correios só não avançaram pelo desgaste do governo, pela resistência dos trabalhadores e pela entrada antecipada  no processo eleitoral. Mas, certamente, estes temas voltarão para a pauta na próxima legislatura independente de quem for eleito. 

A estagflação que vivemos só tem feito aumentar o drama social. Mesmo a lenta recuperação dos empregos nos últimos meses ocorre em setores específicos, são de composição precária e de baixa remuneração. Além disso, os preços dos combustíveis e alimentos voltaram a subir criando restrições de todos os tipos para as massas.

Outro elemento que agrava o flagelo social das massas está ligado à piora das  condições socioambientais de vida. Além de bater recordes de desmatamento e secas prolongadas, assistimos nos últimos meses ao aumento de chuvas intensas que provocaram mortes na Bahia e em Minas Gerais. Nos últimos dias, enchentes e deslizamentos em cidades do interior e da grande São Paulo causaram a morte de 27 pessoas.  

Desde o fim de 2021 até o momento, vimos ganhar força a nova onda de contágios e mortes devido a nova variante do Sars-Cov 2 (a Ômicron), muito mais contagiosa do que a anterior – tornando a lotação dos leitos no sistema de saúde novamente uma ameaça de catástrofe sanitária – e que atualmente leva a uma média semanal  de 689 mortes diárias no Brasil, segundo dados atuais. Fenômeno este que potencialmente coloca mais pressão sobre a realidade política.

Certamente, nenhum desses dramas humanos é causado apenas por forças incontroláveis da economia ou da natureza. São todos eles resultados diretos de políticas que favorecem abertamente os interesses da classe dominante. Políticas essas desenvolvidas pelo neofascista Bolsonaro, que sabota descaradamente a vacinação contra a Covid-19, destrói direitos trabalhistas, incentiva o desmatamento, não investe em obras de infraestrutura e garante a máxima liberdade para a superexploração e opressão das massas – o que é comum a governos burgueses que não são abertamente negacionistas, mas que comungam do mesmo darwinismo social e ultraliberalismo, como é o caso de João Dória em São Paulo.

Os problemas apontados acima, dentre outros, não serão resolvidos meramente pelo processo eleitoral, pois são fruto de uma correlação de forças construída por um longo processo de ofensiva da classe dominante e de resistências dos trabalhadores. Contudo, esta resistência foi limitada pela sistemática estratégica de conciliação de classes promovida pela direção lulista do movimento de massas. De outra forma, não podemos entender o porquê se avançou tanto nas contrarreformas e porque a classe trabalhadora está tão na defensiva em nosso país.

Certamente não podemos desconsiderar a dinâmica político-eleitoral como parte tática importante da superação dessa mesma correlação de forças. Como já vínhamos apontando em outras notas, vivemos uma situação em que a antecipação do processo eleitoral nunca foi tão determinante para os desdobramentos futuros. Por essa razão, precisamos nos posicionar claramente, construir estratégias e táticas de forma a contribuir para reverter a desfavorável correlação de forças apontada acima. 

 Frente de salvação nacional em construção

Para traçar uma breve definição do quadro eleitoral para a esquerda socialista e suas possíveis dinâmicas, vamos partir da movimentação que têm feito Lula – e o PT – em torno de sua frente amplíssima com a burguesia. Além de ter Geraldo Alckmin (sem partido, ex-PSDB) como candidato a vice-presidente (o que parece ser cada vez mais certo), a  movimentação frentista de Lula vai de A a Z no espectro político dos partidos da classe dominante – do PSB, ao Centrão, passando por setores do PSDB. 

A força gravitacional desta movimentação é calcada em uma projeção de intenção de votos que, se forem mantidos até outubro, pode levar Lula à vitória no primeiro turno das eleições. Este fato tem levado setores do PSD, MDB, Republicanos, PSC e PP (partidos que são base de apoio de Bolsonaro) a se inclinarem ao apoio à candidatura de Lula, ou mesmo, dirigentes destas siglas discutirem a liberação de acordos regionais – principalmente no nordeste – com o PT.

Além da possível debandada do Centrão, setores do capital financeiro, diante da esqualidez da terceira via, também dão indicações de que Lula pode ser a única alternativa diante de Bolsonaro, que se mostra não mais funcional aos seus interesses. Porém, considerando que faltam 8 meses para as eleições, as definições ainda não foram tomadas e muito dependerá da consolidação da chapa com Alckmin, das suas soluções programáticas e da composição com partidos do centro político. 

Se os planos e vontades políticas de Lula e do PT derem certo, será montada uma frente eleitoral de conciliação de classes ainda mais à direita do que foi a chapa Lula/Alencar em 2002. O que configura não apenas uma frente popular sui generis, mas que está avançando para uma espécie de frente eleitoral de todos contra Bolsonaro, mais à direita do que a experiência lulista do começo do século. Entretanto, independente do desdobramento de toda essa movimentação para criar um arco de alianças, que vai do centro à direita, e diferente de setores da esquerda do PSOL, pensamos que formalizando-se ou não a chapa com Alckmin, tendo ou não o apoio do Centrão ou do capital financeiro, qualquer frente sob a direção de Lula e do PT será de conciliação de classes, não podendo, assim, ser uma frente de esquerda. É isso que  tentam dissimular dirigentes da Resistência e de outras tendências internas do PSOL. Essa é uma falsificação total da realidade, do que significa Lula e o PT, uma manipulação para enganar a base do nosso partido e setores mais avançados de nossa classe com o objetivo de dissimular a sua passagem total para o campo do possibilismo, da teoria dos campos… ou seja, da capitulação ao lulismo e ruptura com a independência de classes.[1]

O que, como já afirmamos inúmeras vezes, não pode significar abandonar o diálogo com a base petista ou mesmo os eleitores de Lula. A diferença que temos nesse sentido com a direção majoritária do PSOL e parte de setores da esquerda socialista que a compõem – como é o caso dos companheiros da Resistência, que temos polemizado com frequência – é que esse diálogo só pode ser feito de maneira efetiva a partir de um posicionamento independente. Não capitulando ao lulismo, como pensamos que têm feito, mas fazendo o debate desde a necessidade imprescindível de um calendário para derrotar Bolsonaro nas ruas e, consequentemente, nas urnas. De um programa anticapitalista que dialogue e atenda às necessidades dos trabalhadores e oprimidos e dê passos concretos para a construção de uma frente de esquerda sem patrões e burocratas para intervir no movimento social com vistas à mobilização e organização independente. 

Qualquer diálogo com a base petista sem este ferramental político não passa de uma utopia pequeno burguesa de que se pode disputar setores de vanguarda e de massas com o PT sem construir outro campo político-organizativo independente e lutar duramente – com sistemáticas exigências e denúncias – para superar o lulismo como estratégia necessária para a classe trabalhadora brasileira. Ou seja, ficamos presos na ideologia oportunista e inconsequente de que o PT ainda está em disputa, nos restando ser conselheiros de esquerda do lulismo, o que não contribui para a mobilização para derrotar Bolsonaro e nem constrói uma alternativa política à altura das necessidades da nossa classe.

A liquidação do PSOL em duas frentes

A decisão tomada – com estreita margem (56% dos votos) – do último Congresso Nacional de esperar a Conferência Eleitoral de Abril para definir nossa política eleitoral (se teremos candidatura própria ou não, se chamaremos voto em Lula no primeiro ou segundo turno, se ingressaremos na coalizão de classe ou construiremos uma frente de esquerda), como era de se esperar, tem cumprido a função de deixar a direção majoritária com as mãos livres para negociações em torno do apoio à candidatura Lula e pela construção de uma Federação Partidária com partidos da ordem. Tudo isso sem consulta alguma à base do partido.

Mesmo com o caráter abertamente neoliberal, expresso nas negociações para que Alckmin seja vice da chapa de Lula, figuras públicas do partido e da direção nacional têm dado declarações de que a presença do ex-tucano não seria um impeditivo para compor essa frente ampla burguesa, desde que pontos programáticos sejam incorporados… Esse foi justamente o teor da conversa de Lula com Guilherme Boulos na semana passada e que será tratado mais amplamente nas próximas semanas com a participação dos dirigentes nacionais de ambas siglas. Negociação que inclui também a possibilidade de Boulos deixar a pré-candidatura ao Governo do Estado de São Paulo em benefício de Fernando Haddad, sair como candidato a Deputado Federal, ser ministro em um possível governo Lula… Uma decisão, se consolidada, monocrática que passa por cima de um assertivo e importante encaminhamento congressual do partido  de manter nossa candidatura própria ao Governo com Boulos. 

Além das negociações para ingressar nessa frente ampla com a burguesia, como parte da política de liquidar definitivamente o PSOL como alternativa de esquerda ao lulismo, a direção majoritária avança a passos largos com o processo de negociação para compor uma federação partidária com a Rede Solidariedade. [2] Uma federação com um partido notoriamente burguês neoliberal social como a Rede, que votou a favor do impeachment de Dilma e da reforma da Previdência, é um acinte. Por essa razão, tanto o debate em torno das negociações do PSOL com Lula e o PT quanto com a Rede merecem a máxima atenção da militância, das correntes políticas e das figuras públicas do partido, particularmente do seu bloco de esquerda, que preocupantemente ainda apresenta setores que não não se definiram politicamente sobre o tema.

Tanto o ingresso em uma aliança eleitoral burguesa quanto a formação de uma federação partidária com a Rede significará para o PSOL uma ruptura com a independência de classe. A independência de classe perante a burguesia, a ação direta, a auto atividade, a democracia de base e o internacionalismo são princípios políticos intransponíveis para a construção de uma perspectiva autenticamente classista (revolucionária). 

Os princípios políticos para o marxismo não são estabelecidos de forma aleatória, idealista, utópica ou por fora das condições materiais e das experiências históricas concretas da classe trabalhadora. Ao contrário, foi justamente a reflexão rigorosa sobre essas experiências, vitórias e derrotas da classe trabalhadora que nos “ensinou” quais são as suas coordenadas principais na luta de classes. Objetivamente não podemos fazer política diretamente com os princípios: são necessárias as linhas estratégicas e as táticas concretas para ir ao campo de batalha da luta de classes. No entanto, princípios, estratégias e táticas conformam um todo indissolúvel e articulado. Existem táticas que significam rupturas abertas com as estratégias e os princípios socialistas, esse é o caso de ingressar na coalizão eleitoral de classes de Lula e cia. Ou seja, significaria simultaneamente uma ruptura do princípio de independência de classes que liquidaria o partido como alternativa de esquerda e enfraqueceria a luta pela mobilização direta das massas para derrotar Bolsonaro, duas das nossas estratégias centrais dessa etapa política. 

A depender da importância real da organização que os transgrida – os princípios – o resultado terá, logicamente, alcance distinto. Se a organização for de massas, como o PT, levará a traições históricas, como tem sido os governos petistas em todos os níveis e suas políticas na direção do movimento de massas. Se é uma organização de vanguarda como o PSOL, transgredir os princípios, particularmente a independência de classes, levará à desmobilização, desorganização, desmoralização e ao rebaixar da perspectiva política de amplos setores de vanguarda. 

No caso do PSOL, essa política da sua direção majoritária significa, também, autoliquidar-se como alternativa de massas à esquerda do PT, que tem como base a concepção “campista” dessa direção. Apresenta-se como uma traição direta à necessidade histórica da classe trabalhadora no Brasil. Quando se trata de grupos menores, de correntes políticas ainda na fase de grupos fundacionais ou grupos de propaganda, certamente o impacto imediato sobre a realidade objetiva é praticamente nulo – esse é o caso da maior parte das organizações da esquerda do PSOL.[3] No entanto, embarcar nessa canoa da conciliação de classes de maneira ativa ou passiva significa fechar o caminho para a construção estratégica de uma corrente política que possa cumprir qualquer papel significativo em um processo de transformação da realidade.

Chega de juramento à bandeira, é preciso construir a frente de esquerda na prática

Com essa nota não queremos esgotar todas as possibilidades táticas, mas sim ajudar a esclarecer que transgredir princípios políticos fundamentais, dentre eles o da independência de classes é o principal, necessariamente nos leva a desastres de grande, média ou pequena proporção, a curto, médio ou longo prazo. De outra forma, queremos discutir com os militantes do PSOL que o jogo ainda está sendo jogado, que temos que apelar ao conjunto da base para que dê uma duríssima batalha contra qualquer acordo que signifique o ingresso do PSOL nessa aliança com a burguesia liderada por Lula e pelo PT e contra a federação com a Rede.

A nossa luta, certamente, não é apenas pela negativa, toda batalha se faz com uma linha política comum. Também não pretendemos com essa nota detalhar a linha tática para esse combate interno (em alguma medida externo também), mas apresentar o eixo que consideramos central para essa batalha. Para nós, em todas instâncias partidárias, principalmente na Conferência Eleitoral, temos que opor a linha de ingresso na coalizão eleitoral com a construção da frente de esquerda. Mas não podemos ficar apenas no campo do juramento à bandeira, levando a vida como se nada estivesse acontecendo, como se a independência política do PSOL não estivesse por um fio, infelizmente essa tem sido a postura de algumas tendências internas da esquerda do PSOL. 

A  luta contra a liquidação do partido não se faz somente nos marcos internos e com retórica vazia. Uma linha de frente de esquerda para as lutas e eleições que tenha algum impacto sobre a realidade, para se concretizar hoje, necessita contar com as forças da esquerda do partido, com a pré-candidatura de Glauber Braga, com os partidos, organizações e movimentos que se colocam contra a ampla aliança com a burguesa que Lula está montando. Além de realizar um amplo debate interno com a base sobre o significado do possível ingresso do PSOL nessa frente, Glauber, as correntes do PSOL, dirigentes e figuras públicas que defende a sua pré-candidatura precisam, realizar imediatamente um amplo chamado à todas as organizações que se colocam no campo da independência de classes para a constituição imediata de um bloco de esquerda independente, que tome as tarefas fundamentais da conjuntura, cuja direção do PSOL se nega a contribuir – na verdade vai na contramão delas. Tarefas que de forma muito sumária passam pela construção de um funcionamento democrático dessa frente, um programa mínimo comum para derrotar Bolsonaro, reverter as contrarreformas, garantir emprego, renda e moradia para todos e táticas para incidir de forma independente da burocracia lulista sobre as organizações e o movimento de massas. 

Estamos em um momento decisivo para o PSOL, podemos reverter a escalada oportunista e liquidacionista da direção mobilizando seriamente o conjunto da esquerda partidária para discutir com a base o grande perigo que se aproxima. Para isso, é necessário superar uma espécie de negacionismo em que vivem muitos da esquerda do PSOL. É preciso identificar imediatamente o desastre oportunista que se aproxima e combatê-lo. Companheiros, unificar a esquerda dentro e fora do PSOL em uma grande frente pela independência de classe para a luta direta e disputa político-eleitoral, é decisivo!

 

[1] A teoria dos campos é um tema que vamos nos dedicar nas próximas notas para analisar a deriva oportunista que tem tomado a direção majoritária do PSOL e setores da sua esquerda. Resumidamente, essa pseudo teoria estalinista/maoista, que tem baseado o oportunismo desde o começo do século XX, afirma que é necessário resolver as contradições principais e depois, em outra etapa, as secundárias. Ou seja, propõe constituir frentes únicas com a burguesia democrática, abrindo mão da independência político-organizativa, para derrotar o (neo) fascismo. 

 

[2] Na última reforma política (2018) foi estabelecida a famosa cláusula de barreira na qual a partir da eleição de 2018 seria necessário que os partidos atingissem 1,5% dos votos válidos para manter tempo de TV e Fundo Partidários. A partir desse ano o percentual será de 2% dos votos válidos, que devem ser distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, o que significa  eleger 11 deputados federais distribuídos em nove estados. Em 2026 esse índice passa para 2,5% e em 2030 para 3%. Em 2021 ocorreu mais uma reforma que criou a Federação Partidária ao mesmo tempo como mediação da proscritiva cláusula de barreira Na federação será necessário ter estatuto comum e atuação parlamentar durante ao menos 4 anos, quem quebrar a regra, partido ou parlamentar, sofrerá sanções. 

 

[3] Com exceção do MES que possui características de organização de vanguarda. Por isso, essa corrente tem muito mais responsabilidade do que os demais na defesa da independência de classes e na luta contra o ingresso do PSOL na frente ampla e na luta contra a frente partidária com a Rede.