Diante de uma situação política global difícil, pautada pela ofensiva da extrema direita, mas distante de qualquer tipo de derrota histórica de nossa classe, abre-se uma conjuntura de transição e a possibilidade histórica de derrotar a extrema direita e colocar um ponto final ao ciclo de anistia ao golpismo: uma tarefa pendente desde 1979 a partir da Lei de Anistia sancionada por João Figueiredo, último militar no poder.
RENATO ASSAD
No último dia 18, terça-feira, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ofereceu ao STF uma denúncia contra Bolsonaro, Braga Netto e mais trinta e duas pessoas, dentre elas ex-ministros, o ex-comandante da Marinha, militares de médias e altas patentes, uma delegada, alguns policiais e um empresário youtuber, neto de Figueiredo.
As acusações sustentadas contra o alto comando do golpismo pela PGR são: a) liderança (de Bolsonaro) de organização criminosa armada; b) tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; c) golpe de Estado; e) dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da união; f) deterioração de patrimônio tombado. Já em relação à pena, se condenado for, Bolsonaro pode pegar entre 21 e 43 anos de cadeia, segundo advogados escutados pelos meios burgueses; outros dizem acreditar num período menor de reclusão, entre 12 a 31 anos.
Antes da mais nada, podemos afirmar que o oferecimento da denúncia contra Bolsonaro e seu clã é um fato de dimensões históricas, bem como consequência de um processo por cima e por baixo, em que o primeiro, por ora, predomina sobre o segundo – mas essa proporção pode se inverter a depender da resposta que as ruas darão. Isto é, a dinâmica política no país segue pautada pelo domínio dos palácios (das instituições do Estado burguês) em relação às ruas. E tal processualidade, sem necessidade de qualquer tergiversação, não é outra coisa senão produto da estratégia da conciliação de classes do lulismo que sabota conscientemente qualquer possibilidade de mobilização por baixo para não se chocar com a classe dominante, produto esse da aposta exclusiva na tal da “governabilidade”, no balcão de negócios do regime político burguês.
Por cima, o que tudo indica, tomadas as definições feitas em nosso último texto sobre a situação política nacional[1], há uma evidente divisão na classe dominante brasileira. Primeiro há um setor da burguesia vinculada ao mercado financeiro e industrial que parece disposta a se livrar de Bolsonaro – o que não significa abrir mão de uma agenda agressiva contra os explorados e oprimidos –, pois busca a normalização do regime (a superação da crise política no país) pela via da centro-direita: não estão dispostos a arriscar os seus negócios em aventuras bonapartistas. Depois, do outro lado, temos a parcela da classe dominante vinculada ao neoextrativismo que segue fiel a Bolsonaro: está mais que comprovado o financiamento do agronegócio à tentativa golpista no Brasil. Essa é uma parcela que acumulou muito poder nas últimas décadas, tanto político como econômico.
De cara, essa divisão coloca uma série de tensões pela superestrutura, sobretudo com o Judiciário, mais especificamente ao STF, que julgará Bolsonaro e sua trupe golpista, hoje fazendo a interlocução da burguesia anteriormente citada; sua parcela “moderada”, mas não menos conservadora e reacionária em seu conteúdo, que busca assumir uma identidade e uma forma mais empresarial que militar: mais ternos e gravatas do que coturnos para a representação política dos seus negócios. E é justamente a este setor da institucionalidade com o qual o governo Lula-Alckmin se alia/submete política e programaticamente, trabalhando impecavelmente pelos seus interesses materiais e políticos e pela utópica tentativa de normalização do regime.
Vejamos, agora, porque na denúncia contra Bolsonaro e os outros 33 estão também contidos os elementos das ruas, dos de baixo. Seria unilateral, oportunista e desonesto esconder que foram as reservas de mobilização – o povo nordestino enfrentando os bloqueios da Polícia Federal Rodoviária, as torcidas organizadas rompendo os fechamentos das rodovias etc. – que deram não apenas a vitória eleitoral a Lula mas, também, em grande medida, a garantia à sua posse.
Do lado dos reformistas, diziam e seguem dizendo que, na realidade, a virtude se decantou na conformação de uma frente ampla burguesa que impossibilitou um segundo mandato de Bolsonaro. E, para eles, é desta mesma frente que precisamos hoje para derrotar a extrema direita e impedir o “inverno siberiano”, expressão que hoje virou uma espécie de mantra de Valerio Arcary[2] (dirigente da Resistência-PSOL) para justificar sua elaboração e (des)orientação traidora de capitulação integral ao lulismo. Na verdade, foi justamente a política de frente ampla com a burguesia e seus representes – escanteando, como é comum nos governos petistas, a mobilização dos explorados e oprimidos – o que fez com que o Centrão e o reacionarismo, de forma geral, tivessem tanto peso na atual correlação de forças. Fato que faz dele mesmo – Arcary – o próprio inverno siberiano de sua organização, essa sim derrotada estrategicamente e incapaz de ver na totalidade política nacional qualquer elemento sequer em que se possa apoiar para resistir! Arcary, de tanto olhar unilateralmente para dentro do suposto “inverno siberiano”, acabou sendo olhado pelo abismo da luta de classes que criou em sua cabeça.
Entretanto, o anterior exposto significa uma situação de possibilidades e, também, perigos; ou seja, não existe a inevitabilidade de uma punição categórica ao bolsonarismo e às suas atrocidades (pra não deixar de mencionar aqui de que nem Bolsonaro e seus ex-ministros respondem por qualquer crime cometido na pandemia, crimes responsáveis pela vitimização de centenas de milhares de vidas). Pelo contrário: os desfechos, sejam eles políticos, econômicos ou judiciais, limitados a uma disputa exclusivamente por cima sempre terminaram e terminarão sob a decisão exclusiva da classe dominante, daquilo que ela define para si como o mais favorável aos seus interesses de classe.
Uma crise nos dois polos
A dimensão histórica do indiciamento do bolsonarismo, formulado a partir de provas explicitamente comprometedoras, empurra inevitavelmente a extrema direita para uma situação momentaneamente defensiva, principalmente a sua atual liderança. Quer dizer, Bolsonaro e seu movimento assumem hoje, diante das circunstâncias, a luta pela anistia (impunidade) ou por algum acordo que impute numa “punição” extremadamente mediada. Contraditoriamente, não resta à extrema direita outra opção a não ser impulsionar uma movimentação pelas ruas; e a verdade é que sabem disso: já há uma convocação nacional de ato para o dia 16 de março; essa, inicialmente, seria pelo impeachment de Lula, mas o mote foi prontamente rejeitado pelo próprio Bolsonaro dado o atual contexto.
Assim sendo, faz-se notável a crise pela qual atravessa o bolsonarismo e a extrema direita, o seu pior momento desde 2018, mas que para nada significa que estão liquidados. Ao que tudo indica, a denúncia oferecida pela PGR desencadeará um processo de mobilização, de nova iniciativa política pelas ruas deste setor. Sua dimensão? Não sabemos. Mas não devemos subestimá-la, tanto pela situação política internacional, sobretudo com a eleição de Trump[3], quanto pela capacidade comprovada da extrema direita de tomar as ruas. Essas mesmas que são conscientemente abandonadas pela esquerda da ordem.
Do outro lado, na outra expressão do movimento de massas que é o lulismo, também presenciamos uma crise política importante. O atual governo liberal-social de Lula-Alckmin enfrenta a pior avaliação da história de todas as passagens do petista pelo Palácio do Planalto. Com uma queda de 11 pontos de sua aprovação em apenas dois meses, a aprovação do executivo caiu de 35% para 24%. Já sua reprovação faz um processo quase que inversamente proporcional no mesmo período, subindo 7 pontos, de 34% para 41%[4].
Os motivos da crise do governo e do lulismo já abordamos em nossa última e recente elaboração[5]: uma consequência direta do processamento das massas com os duros ataques do governo aos trabalhadores, fato que expressa de maneira cristalina sua natureza política e de classe (um governo liberal-social burguês).
Mas neste texto, uma espécie de apêndice da elaboração acima citada, temos a intenção de demonstrar que, por um lado, a crise na extrema direita não reabilita em hipótese alguma o governo e o lulismo e, tampouco, é garantia qualquer de reeleição em 2026 (com ou sem Bolsonaro na corrida). Daí definimos essa conjuntura de transição como de uma dupla crise política. Por outro, o papel, uma vez mais, traidor do lulismo diante de uma possibilidade histórica de impor um fim ao ciclo de anistia ao golpismo e derrotar categoricamente a extrema direita no país. Lula deixou claro: “Eu não vou comentar um processo que está na Justiça. O que eu posso dizer é que nesse país, no tempo em que eu governo o Brasil, todas as pessoas têm direito à presunção de inocência”. Em outras palavras: que decidam os poderes do Estado burguês sob a tutela da classe dominante, ponto. E, segundo Valerio Arcary, é deste Lula que precisamos para derrotar a extrema direita…[6]
Há aqui, portanto, um elemento conjuntural inédito à polarização política dos últimos anos no país: uma crise dupla e simultânea entre as duas expressões políticas nacionais com peso de massas. Tanto o lulismo quanto o bolsonarismo estão na defensiva e de maneira desigual, contudo combinada, perdem espaço enquanto interlocutores da burguesia brasileira. Com traços de maior passividade, assistimos – ainda que a extrema direita tenha muito mais iniciativa que a esquerda da ordem (exclusivamente reativa nos últimos 10 anos) – a um fortalecimento do Centrão, que cada vez mais se apropria de maneira privada do Estado brasileiro.
Processo de abertura de uma nova conjuntura
É evidente que a denuncia em si não impõe qualquer mudança na correlação de forças sociais no país. Assumir isso seria negar a própria realidade material das coisas. Entretanto, abre-se uma possibilidade histórica para a luta de classes: derrotar categoricamente a extrema direita.
Portanto, aqui não estamos tratando de algo trivial, mas da abertura de uma janela para impor de fato uma mudança objetiva na correlação de forças entre as classes sociais no Brasil com a punição categórica do bolsonarismo. Em última instância, o que se coloca é a assunção de uma tarefa historicamente pendente aos explorados e oprimidos, uma tarefa que as velhas gerações, por uma série de razões, não puderam lograr ao fim da Ditadura Militar: a prisão e expropriação dos golpistas e torturadores. Uma pendência que deixou caminho pavimentado para o surgimento de um governo como o de Bolsonaro e sua trama golpista; uma espécie de repetição da história em forma farsesca.
Desta forma, dada as proporções históricas de uma tarefa como essa, exige-se na mesma proporção a retomada do movimento de massas nas ruas do país. Ou seja, é imprescindível, expondo-se às consequências de uma nova derrota, assimilar da maneira mais coerente e consequente possível que “o que” se deve levar adiante deve estar intimamente vinculado ao “como” e “quem” encaminha essa batalha. É este o único e exclusivo fator que pode levar adiante tal empreendimento, e sua conquista, certamente, colocará um categórico contrapeso à ofensiva da extrema direita a nível internacional e uma vitória não apenas objetiva, mas subjetiva dos trabalhadores e oprimidos. Aqui vale lembrar que Rosa Luxemburgo, correta e agudamente, afirmava que as maiores conquistas dos trabalhadores são em matéria de organização e consciência de classe.
Pautado o anterior, é aí que entra o papel das direções políticas. Se, de um lado, já sabemos que a aposta do lulismo e das suas direções que dirigem setores da vanguarda de massas se constitui em boicotar a construção de um levante de massas pelas ruas, em ampla unidade, do outro, a esquerda socialista, com todos os seus limites objetivos, precisa urgentemente ajustar sua bussola política. É necessário romper de uma vez por todas com a orientação economicista (de natureza defensiva e desmobilizadora) e, tendo como prioridade a luta pela punição categórica do bolsonarismo, combinar as tarefas democráticas com as sindicais (econômicas). É necessário exigir, sistematicamente, um plano nacional de lutas pela prisão de Bolsonaro às centrais sindicais, entidades estudantis, movimentos sociais, assim como de entidades como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e demais que estejam no campo progressista. À exigência deve-se, também, combinar a denúncia contra o atual governo e às direções sindicais e políticas ligadas ao lulismo como CUT, CTB, PSOL etc., não apenas pelos ataques colocados aos trabalhadores, mas pela posição traidora ao não demonstrar nenhum interesse na mobilização das massas para derrotar a extrema direita!
De nossa parte, de uma corrente pequena, mas independente e revolucionária, levaremos com muita responsabilidade essa linha política em todos os locais que estivermos. Daremos a disputa sempre que pudermos, pois compreendemos o que está colocado sobre a mesa para a nossa geração e o que isso pode significar na luta de classes do nosso país e a nível internacional. Exigiremos a mais ampla unidade para a edificação da necessária jornada nacional de luta contra o bolsonarismo e levantaremos nossas bandeiras pela prisão e expropriação de bens de seu chefe, de todos os seus asseclas e financiadores. Não só, gritaremos pela necessidade de derrubar a Lei de Anistia, o fim dos tribunais e polícias militares e a revogação do artigo 142, bandeiras intimamente vinculadas aos interesses econômicos dos explorados e oprimidos como o fim da escala 6×1!
[1] https://esquerdaweb.com/brasil-uma-situacao-politica-adversa-que-combina-perigos-e-possibilidades/
[2] https://www.instagram.com/reel/DGN6XlkPklx/?utm_source=ig_web_copy_link
[3] Trump, figura que encabeça a ofensiva internacional da extrema direita, não fez qualquer aceno ou declaração em apoio a Bolsonaro até o momento de elaboração desta nota.
[4] https://exame.com/brasil/aprovacao-lula-datafolha-fevereiro-2025/
[5] Ver em: https://esquerdaweb.com/brasil-uma-situacao-politica-adversa-que-combina-perigos-e-possibilidades/
[6] https://www.instagram.com/reel/DGN6XlkPklx/?utm_source=ig_web_copy_link
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