Preocupante Resolução da Executiva do PSOL

Manifestação em defesa da Amazônia na Esplanada dos Ministérios

Linha da maioria não prepara o partido para os imensos desafios

POR ANTONIO SOLER

Antes de passar ao debate sobre o que consideramos como equívocos da Resolução da Executiva Nacional do PSOL, de 26/08/2019, intitulada “Salvar o Brasil, antes que seja tarde!”*, pensamos que o debate franco e fraterno no interior do PSOL é fundamental para garantir uma vida partidária que permita um processo coletivo de elaboração, objetivando melhorar nossas formulações, prática militante e qualidade construtiva. Nesse sentido, é preciso promover em toda base a mais ampla discussão a respeito do conjunto de elaborações políticas provenientes da direção nacional para que se possa superar as linhas que, a nosso ver, têm desarmado o partido para os desafios postos hoje.

As formulações da direção nacional expressas na Resolução colocam elementos corretos de análise, tais como: o caráter destrutivo desse governo, a resistência que tem enfrentado do movimento de massas e a necessidade de lutar sistematicamente pela unidade de ação. Mas, por outro lado, a ausência na Resolução de uma caracterização clara do governo e de uma análise das contradições crescentes da conjuntura, a capitulação à burocracia lulista e a abordagem programática economicista não dão conta das tarefas políticas. O que faz com que o texto não arme o partido para uma linha de enfrentamento à altura do processo que estamos vivendo. 

Em modo de síntese, vamos apresentar as principais formulações da Resolução:

  1. O governo tem como projeto a destruição de conquistas e de direitos, mas enfrenta o repúdio ativo de setores de massas, o contraponto de do legislativo e do judiciário e a perda vertiginosa de popularidade desde o início do mandato de Bolsonaro (passou de 65% em janeiro para 30%);
  2. Apesar da resistência e das crises entre os “poderes”, Bolsonaro, com a exceção de alguns momentos, tem estado no comando do debate político e avançado em suas políticas. Isso ocorre porque o governo tem o apoio da classe dominante para impor seu projeto econômico, de uma base social ampla e radicalizada, que defende suas políticas de forma ativa, e de um importante setor das Forças Armadas;
  3. Como política, os setores de oposição devem agir de forma unitária, resguardando as diferenças entre eles. Nesse sentido, o PSOL atua pela construção de uma frente ampla em defesa da soberania, dos direitos e da democracia. O que é dificultado pelas diferenças de avaliação sobre a gravidade do momento e disputas eleitorais, mas avançamos na unidade em vários campos;
  4. No segundo semestre as nossas tarefas passam por um esforço do partido no sentido de estimular a rejeição ao projeto de Bolsonaro e construir um amplo movimento para deter a sanha deste governo contra os direitos, a democracia e a soberania.

Uma combinação de economicismo, derrotismo e capitulação ao lulismo

Essa Resolução, bem como as anteriores da Direção Nacional do partido, não traz à tona uma caracterização clara do governo Bolsonaro.

O esforço de caracterização política desse governo não é mero exercício intelectual, contribui de forma decisiva para o fazer político imediato, pois sem entender a natureza, a dinâmica e as contradições do que estamos enfrentando, não podemos ter a dimensão exata dos desafios que estão postos e de como enfrentá-los hoje.

Obviamente, temos que levar em consideração a correlação de forças, ou seja, em quais condições concretas da luta de classes atuamos. Mas, ter clareza da sua natureza, base de sustentação e objetivos estratégicos é condição para a formulação da nossa linha de ação política.

Bolsonaro não quer apenas impor uma pauta econômica ultraliberal, ataques pontuais aos direitos políticos e retrocessos nos costumes, quer medidas autoritárias em todos os níveis – recuos e extinção de direitos democráticos fundamentais. Assim, esse não é um governo burguês normal, é um governo de extrema direita que procura criar condições políticas para impor mudanças no conjunto do regime e que pretende impor uma espécie de regime semi-bonapartista, um presidencialismo que conviva com instituições da democracia burguesa cada vez mais formais.

Por um lado, Bolsonaro é um governo extremamente perigoso – o mais perigoso desde o fim do regime militar, em 1984 -, pois para realizar esse projeto precisa impor uma derrota histórica à classe trabalhadora como um todo. Por outro lado, como é um governo que ataca em 360º, cria uma instabilidade política permanente, provocando a unidade de diversos setores populares e uma reação política às suas posições.

Esse é um elemento fundamental que escapa à maioria da Direção Executiva Nacional, e à parte das tendências internas do nosso partido, e que contribui para estarmos politicamente imersos na linha economicista, ou seja: na ilusão de que basta agitar, propagandear e organizar em torno das bandeiras imediatas de resistência para que as massas avancem em sua consciência política. Essa é uma concepção equívoca que tem sido criticada há mais de um século pelo marxismo revolucionário mas que agora volta com força ao interior da esquerda socialista.  

Sobre as razões pelas quais o governo e o congresso fazem avançar a pauta reacionária, não faz parte do esquema explicativo da Resolução um elemento fundamental para compreender por quê a resistência não tem sido suficiente para deter os avanços do governo. Além da unidade burguesa em torno das contrarreformas, de setores radicalizados pela direita da classe média e do apoio das forças armadas, o que são obviamente elementos centrais, a resistência e as lutas não se desenvolveram de forma mais contundente no primeiro semestres – podendo frear ou não o governo e o congresso – em grande medida pela política da direção majoritária do movimento que, ao invés de apostar a fundo na mobilização, desenvolve a política de desgastar o governo, negociar pontos das contrarreformas e não organiza de fato as lutas.

Essa estratégia ficou muito clara no processo ainda em curso de contrarreforma da Previdência Social; com a burocracia negociando pontos da “reforma” e “organizando” uma Greve Geral de 14 de junho sem os trabalhadores, a juventude e as mulheres nas ruas. Não colocar esse elemento na equação política que resulta no avanço da pauta reacionária não é honesto intelectualmente, não contribuiu para armar politicamente para a luta e nem para fazer avançar, de fato, a unidade de ação.

Não se pode negar os avanços nos “ajustes” e na pauta reacionária. Mas, temos importantes momentos de reação de setores de massas apesar das direções traidoras, que impuseram mediações em projetos, recuos de políticas e pequenas conquistas. Os avanços do governo e do congresso em suas contrarreformas são fatos inquestionáveis, mas a Resolução acaba por ter um olhar derrotista sobre esse processo ao não equacionar que esses avanços só foram possíveis porque as massas não puderam desenvolver todo o seu potencial de luta.

Mesmo em relação à contrarreforma da Previdência Social, o projeto aprovado na Câmara dos Deputados teve que sofrer adequações para que pudesse ser aprovado e ainda precisa passar por duas votações no Senado para ser aprovado definitivamente, o que permite ainda que sofra mais alterações.

Além disso, não houve nesse percurso nenhuma derrota significativa dos setores que estão à frente das lutas, como a juventude, as mulheres e os povos originários. E mais, o isolamento internacional e nacional de Bolsonaro em relação à devastação ambiental, às queimadas na Amazônia e no conjunto da política criminosas já gerou um importante dia nacional de luta e uma nova frente de mobilizações contra o governo que tendem a se manter e se combinar com outras lutas. Ou seja, o governo avança por certo, mas não podemos desconsiderar que existe um acúmulo de contradições que, ao serem combinadas, podem criar a médio prazo as condições para um ascenso popular que possa questionar a atual correlação de forças.  

Não existem derrotas diretas de setores de massas, cresce a bronca e as expressões de repúdio direto ao governo, como o “Fora Bolsonaro” das manifestações estudantis de maio e o “Amazônia fica, Bolsonaro sai” das manifestações contra as queimadas na Amazônia em 23/08 que mobilizaram milhares de pessoas e obrigaram o governo a tomar medidas de combate aos incêndios. A mobilização pelo Dia da Amazônia (5/09) e a Greve Mundial em Defesa do Clima (20/09) podem manter um setor amplo de vanguarda nas ruas e, até, trazer para a luta direta setores de massa contra a devastação ambiental, as contrarreformas e o governo como um todo.

Superar rebaixamento programático

Sobre as reivindicações/tarefas que coloca a Resolução, devemos pontuar alguns problemas. Trata-se de um conjunto de reivindicações corretas, mas que não respondem a temas fundamentais, tais como: o desemprego, a precarização crescente do trabalho, a falta de moradia, a concentração de terras e as funções do capital financeiro sobre o orçamento nacional que inviabiliza para solucionar questões fundamentais da vida das massas.

A lista de reivindicações com aspecto desordenado da Resolução não toca em bandeiras fundamentais, tais como: a necessária redução da jornada de trabalho sem redução de salário, a reforma agrária e urbana, o não pagamento da dívida pública e outros temas sem os quais não podemos resolver os problemas mais básicos da vida.

Em que pese a prioridade das bandeiras defensivas nesse momento da luta de classes – como ensinam as massas (sic) -, sempre precisamos de uma combinação que parta das reivindicações imediatas, passe pelas mediatas e vá até as de poder. Mas, engana-se quem pensa que essa ausência no texto da Resolução é acidental. 

Trata-se, sim, da lógica política economicista apontada acima. A chave economicista da Resolução não é apenas uma questão tática, mas sim a regressão na concepção política da maioria da direção do partido e de muitas tendências internas. Essa concepção – impregnada na Resolução – elabora que por estarmos em uma correlação de forças desfavorável, o sistema de consignas não pode conter palavras de ordem políticas porque as massas hoje só se mobilizam por palavras de ordem defensivas/imediatas.

Está concepção está sendo sistematicamente superada pelos setores de massas que saem às ruas para lutar, como foi o caso dos estudantes contra os cortes na educação e agora a mobilização contra as queimadas na Amazônia. O que vimos nas manifestações do dia 23/08 e que se estendeu para outras manifestações e atos, foi o “Bolsonaro sai”, combinado com a defesa do meio, “Amazônia fica”, o que ultrapassa na prática a concepção economicista da maioria da Direção Executiva Nacional do PSOL.

Enfrentar esse governo, que produz um ataque global contra os explorados e oprimidos, exige uma política global. Claro que nessa conjuntura, em que a correlação de forças está ainda desfavorável, as palavras de ordem que vão na frente da agitação são as que mobilizam mais imediatamente e o “Fora Bolsonaro”, ou alguma variação semântica, entra como agitação para desgastar o governo e unificar todas as lutas de resistência.

O caráter independente e classista do PSOL está sob ameaça

Como visto, a crítica da linha política da maioria da direção do partido precisa ser tomada pelo conjunto da militância. E não trata-se apenas da crítica do economicismo/reformismo já posto no interior do partido quase que desde sua fundação, mas sim de uma ameaça mais séria. 

A Resolução, e os demais documentos da maioria da direção, em relação à tática de unidade de ação, de frente única e de frente política cria uma verdadeira nebulosa. Nunca deixa claro que existem profundas diferenças entre essas três táticas, que através da unidade de ação organizamos lutas comuns com vários setores, inclusive com burgueses em alguns casos, que com a frente única organizamos fóruns mais ou menos permanentes entre trabalhadores para realizar lutas defensivas ou ofensivas  e que com a frente única política criamos alianças para disputar processos políticos eleitorais e outros que exigem acordos programáticos mínimos.

Participar de frentes únicas políticas com partidos como PT, PCdoB, REDE, PSB e outros que defende a ordem burguesa, como pretende a maioria da direção para as próximas eleições custará a perda do caráter socialista, independente e não-burocrático do PSOL. Uma coisa é ter chamado o voto crítico em Haddad contra o neofascista Bolsonaro, pois havia uma ameaça de mudança do regime político, outra totalmente diferente é dar o apoio político ou participar de uma frente com partidos da ordem. Esse tipo de partido, por mais verniz progressista que tenha, invariavelmente governa para a classe dominante e ataca política e fisicamente os trabalhadores e os oprimidos quando governa, o histórico do PT e dos demais citados é gigantesco nesse sentido e parte da explicação do porquê cresceu o bolsonarismo entre as massas.  

Assim, a manobra para impor a tática de frente popular tem basicamente três frentes. Passa pelo amálgama que não diferencia as táticas de unidade, frente única e frente política, por nenhuma diferenciação política (denúncia ou exigência) com o lulismo, mesmo quando essa trai, freia e manobra lutas importantes, e pelo rebaixamento programático que faz com que nosso programa, sistemas e palavras de ordem não apontem saídas políticas e fiquem abaixo do reformismo.

Essa estratégia política se for levada a cabo significará um retrocesso histórico para o PSOL e comprometerá a independência de classe do partido, pois nos colocará diretamente como parte ou como apoio de governos que não têm compromisso algum com a classe trabalhadora, o que sempre acaba em desastre, desmoralização e perda de referência política e histórica de qualquer organização socialista. Por isso, desde já estes temas precisam ser objeto de discussão no interior da base partidária, organizando um amplo debate em todas instância partidárias.


*http://psol50.org.br/psol-define-eixos-de-acao-para-o-segundo-semestre/