“Quem é feminista e não é de esquerda, carece de estratégia. Quem é de esquerda e não é feminista, carece de profundidade.” – Rosa Luxemburgo
Por Júlia Bachiega
Um chamado ao movimento de mulheres, a juventude, ao movimento negro e demais setores explorados e oprimidos para a necessidade de se impulsionar uma campanha pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito no Brasil, que seja vinculada à luta de classes e pautada pelas trabalhadoras e trabalhadores.
Avanços e retrocessos na luta por direitos sexuais e reprodutivos
No que pesem os momentos de influxos e os refluxos da luta feminista – atrelados também aos altos e baixos da luta de classes em geral – o movimento de mulheres tem se mostrado, atualmente, como um dos setores mais dinâmicos da sociedade, protagonizando importantes processos de luta nas ruas. É neste contexto que em diferentes países, sobretudo nos latino-americanos, ocorrem avanços significativos no âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos, frutos da permanente mobilização e resistência das mulheres, comunidade LGBTQIA+ e outros setores da sociedade.
O fortalecimento, a nível internacional, do movimento de mulheres possibilitou que as demandas se interligassem e ganhassem novo fôlego, destacando-se, nesse sentido, o movimento argentino denominado Maré Verde – em prol do direito ao aborto legal, seguro e gratuito – que impulsionou sobre a América Latina uma “maré” de flexibilização no acesso à interrupção da gestação, trazendo avanços como a legalização do aborto na Argentina e a descriminalização do aborto na Colômbia e no México [1] [2].
Contudo, é preciso pontuar alguns limites dessas conquistas:
(1) Nos países em que se instituiu apenas a descriminalização do aborto, o Estado continua não sendo obrigatoriamente responsável por viabilizar a interrupção da gestação de maneira segura e gratuita, o que prejudica principalmente as pessoas gestantes de baixa renda, que, frequentemente, continuarão não tendo acesso ao procedimento de forma segura, caso este não seja disponibilizado gratuitamente.
(2) Apesar de a interrupção da gestação ser legalizada ou descriminalizada em grande parte dos países da Europa e ter tido um importante avanço na América Latina, em muitos outros – como no Senegal, Haiti, Filipinas, Irã e inclusive no Brasil – as leis sobre aborto ainda continuam fortemente restritivas e responsáveis pela prisão e morte de milhares de mulheres todos os anos: a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que cerca de 22 milhões de abortos inseguros são realizados por ano no mundo e cerca de 47 mil mulheres morrem devido a eles [3].
(3) Na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos também ocorreram retrocessos, como a decisão da Suprema Corte dos EUA em revogar a garantia de direito ao aborto, que já havia sido conquistada há 50 anos. Entre outras nações que restringiram ainda mais suas leis, proibindo, total ou parcialmente, o direito ao aborto nas últimas duas décadas, estão: Polônia, El Salvador, Nicarágua e Honduras, de acordo com o Center For Reproductive Rights (Centro Pelos Direitos Reprodutivos) [4].
Aborto no Brasil: uma questão de raça e classe
Na contramão da Maré Verde, o aborto induzido segue sendo crime em território brasileiro, exceto em três situações – quando a gravidez põe em risco a vida da gestante, gravidez resultante de violência sexual e casos de anencefalia fetal – nas quais o procedimento é legalizado e deve ser oferecido pelo Sistema Único de Saúde.
Apesar das rígidas leis que criminalizam a interrupção da gestação, o país carrega um dos mais altos índices no mundo, com uma média de 1.369 abortos inseguros realizados por dia e aproximadamente 500.000 por ano. Cerca de 50% das mulheres submetidas a abortos inseguros no Brasil precisam ser hospitalizadas, levando à morte mais de 200 mulheres a cada ano [5].
Embora a realização de abortos clandestinos seja uma realidade imposta a todas as pessoas gestantes que não se enquadrem nas linhas jurídicas que delimitam a legalidade do aborto, a forma como estes procedimentos inseguros impactam a vida das mesmas, é extremamente desigual. As pesquisas nacionais convergem ao mostrarem que a interrupção da gravidez é mais frequente entre mulheres negras, indígenas e nordestinas, bem como entre as de baixa renda e baixa escolaridade.
Segundo dados fornecido pelo ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, 15% das mulheres negras e 24% das mulheres indígenas já abortaram de forma insegura, enquanto entre mulheres brancas este índice é de 9%; além disso, os dados indicam estes abortos têm maior incidência nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, nas quais também é, muitas vezes, mais dificultoso o acesso aos serviços de saúde e a métodos contraceptivos. Deixando explícito o caráter misógino, racista e burguês do Estado, para o qual a vida das gestantes negras, indígenas, nordestinas e pobres é descartável.
A legalização do aborto virá pelas mãos do movimento de mulheres, da juventude e da classe trabalhadora
A ascensão de governos e grupos de extrema direita no Brasil e no mundo – produtos da ofensiva reacionária que a classe dominante impõe sobre as trabalhadoras e trabalhadores como resposta à crise estrutural do capitalismo -ameaçam profundamente, também, os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas que gestam.
No Brasil, o governo de Bolsonaro escancarou as portas do neofascismo sobre a vida de meninas, mulheres e da comunidade LGBTQIA+ através aparelhamento ideológico de diversas instâncias institucionais, sendo o responsável, por exemplo, por entregar o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos à Damares Alves, que protagonizou episódios criminosos, como tentativa de impedir o direito ao aborto de uma criança vítima de estupro em 2020 – direito esse, vale ressaltar, garantido por lei desde 1940.
O resultado das eleições presidenciais do ano passado, embora tenha trazido fôlego a milhões de cidadãos, tem seus limites institucionais bem definidos, não apenas pelo próprio caráter conciliatório da chapa Lula/Alckmin – que se ocupou em salientar, na reta final da corrida eleitoral, ser contra a legalização do aborto – mas também pela permanência de um número expressivo de conservadores ainda ocupando cargos políticos e que, por exemplo, trouxeram à tona uma nova tentativa votar e aprovar, no final de 2022, um dos projetos de lei mais reacionários já criados neste país, o Estatuto do Nascituro – que visa proibir o aborto em todos os casos e caracterizá-lo como crime hediondo.
As circunstâncias que levam a uma gravidez indesejada e as soluções para cessá-las são estruturais e complexas, passam inevitavelmente pelo amplo acesso à educação científica e laica, a orientação profissional acerca da sexualidade e fisiologia reprodutiva, a métodos contraceptivos eficazes e a unidades de saúde, bem como o fim desse sistema político e econômico que perpetua a misoginia e a violação de tantos corpos – é importante dizer que atualmente 90% dos abortos legais são feitos por vítimas de estupro.
A legalização do aborto, diante deste cenário, se torna uma medida urgente e essencial – ainda que paliativa – para que se rompa com o ciclo de revitimização e morte ao qual milhares de gestantes estão expostas ao realizarem abortos clandestinos. É preciso que se debata o tema de forma séria e em diferentes espaços, que se dispute incessantemente a consciência da população brasileira – que é, em geral, ainda bastante conservadora nesta pauta. É fundamental que se impulsione e massifique nas ruas uma campanha nacional pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito.
O poder de mudar a correlação de forças e verdadeiramente alavancar as pautas feministas está na conscientização e mobilização permanente da juventude e da classe trabalhadora. A luta feminista não é apenas das mulheres e não se resume a legalização do aborto, é contra todo este sistema patriarcal e capitalista que diariamente mata, encarcera e objetifica os nossos corpos. A luta das mulheres é a luta dos historicamente explorados e oprimidos.
“Educação sexual para decidir, anticoncepcional para não abortar e aborto legal para não morrer!”
[1] Severi, Fabiana Cristina, et al. “Aborto no Brasil: falhas substantivas e processuais na criminalização de mulheres.” (2022)
[2] https://izquierdaweb.com/mexico-historico-fallo-de-la-corte-suprema-despenaliza-el-aborto/
[3] Eliminated, Can Abortion Mortality Be. Journal Of Human Growth And Development (2015)
[4] https://reproductiverights.org/maps/worlds-abortion-laws/
[5] DINIZ, Debora et al. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. saúde coletiva (2017)