Perplexos e isolados. Viver apesar de

    “Partia do pressuposto de que em algum lugar, fora da própria pessoa, 

    havia um mundo “real” onde coisas “reais” aconteciam. 

    Mas como seria possível existir um mundo assim?”

    George Orwell

    Mónica Arango, jornalista cronista social e militante das Vermelhas

    O mundo mudou. A dinâmica girou 180 graus em questão de dias. Sair? Festejar com os amigos em um bar? Ir a uma festa ou uma feijoada no fim de semana? Adiado. Aniversário do amigo? O concerto da banda de reggae, o teatro, o cinema, a dança, a comida, o parque, o museu…? O que você queria fazer neste fim de semana? Cancelado.

    Quando o mundo contabilizou 118.000 novos casos do novo Coronavírus COVID-19 em 114 países e registrou 4.291 mortes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou emergência de saúde pública e classificou o evento como uma pandemia. Uma ameaça para os cidadãos de todo o mundo. Isso nos pegou de surpresa. Embora talvez nunca estejamos totalmente preparados, o golpe para a nossa sociedade latino-americana do chamado terceiro mundo em desenvolvimento, com corrupção, marcada por abusos na política, economia e poder judiciário, foi ainda maior.

    Há quem diga que essa nova vida nos mudou “drasticamente”. Em quarentena, as atividades foram reduzidas ao trabalho no computador, conversa com amigos somente pelas redes sociais, colocar-se em dia com tantas tarefas pendentes, retomar leituras que foram interrompidas, começar (seriamente) com projetos pessoais e, por que não, com a própria vida. Esse é um bom começo. Um excelente. 

    Manter a cabeça ocupada para não entrar em colapso, como o que vem ocorrendo no sistema de saúde. Infelizmente, para os trabalhadores e para aqueles que mal conseguiam o sustento diário, a situação agravou a crise em que eles já estavam. E o problema para muitos não é estar entediado sem poder sair, o problema é sobreviver. Essa é a urgência é vital.

    Segundo a Comissão Econômica da América Latina e o Caribe (CEPAL), em nossa região existem mais de 191 milhões de pessoas atingidas pela pobreza. Somente no Brasil, existem 70 mil crianças e adolescentes nas ruas e 351 mil adultos estão na mesma situação. Segundo a Rede Internacional de Defesa da Criança e do Adolescente em Situações de Rua – RIDIAC, “isso já implica na falta de acesso aos direitos e na negação de uma vida digna”, e a falta de protocolos e políticas para proteção para essa população nesse momento só pioram a situação.

    Um pensamento – crime

    A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que esta pandemia “é uma emergência social e de saúde global que requer ação efetiva e imediata por parte de governos, indivíduos e empresas” (1). Esta chamada foi acompanhada pela Câmara de Comércio Internacional (ICC), a única organização comercial que tem o status de um órgão de consultoria perante as Nações Unidas e suas agências especializadas, apoiando a ideia de que hoje a prioridade essencial dos chefes de Estado em todo o mundo, é criar meio e condições para redução da disseminação do COVID-19 e mitigar seu impacto.

    Mais uma vez, na prática a realidade é outra. E caminhos intoleráveis, estão sendo oferecidos pelos governantes, em uma perspectiva capitalista e opressora. As diferentes reações a pandemia marcam o caminho até aqui. A China, epicentro da disseminação do vírus, aplicou medidas drásticas de isolamento e suspensão de atividades em geral, construiu hospitais em questão de dias e aparentemente superou a crise que mal eclodiu em nossas latitudes. 

    O mesmo, embora tarde demais, vem fazendo a Itália e a Espanha (dois dos países mais atingidos da Europa). Contrário disso agem Estados Unidos, México e Brasil. Esses governos optaram por aplicar medidas parciais, ainda “incrédulos” quanto ao alcance da pandemia, e até ousaram recomendar medalhas religiosas para se proteger a população, (como foi o caso do México).

    Os governantes estão preocupados se o país paralisa e seu bolso e dos empresários se esvaziam dos lucros provenientes do povo trabalhador. As medidas dos poderes públicos e do setor privado, estão de um lado, e os interesses da sociedade civil, do outro. 

    Os atores que estão obstaculizando nossa segurança são um perigo social. Disse Jair Bolsonaro: “devemos sim retornar à normalidade. Algumas autoridades estaduais e municipais precisam abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transporte ou fechamento do comércio e confinamento em massa (…) O mundo tem mostrado que o grupo de risco é acima de 60 anos. Por que fechar escolas?” (2). Como reagir a esta declaração de Bolsonaro? Isso é inaceitável. Dias depois, ele suspeitou que o número de infectados e mortos no país estava errado. Podem ser, mas com certeza acima da expectativa do presidente!

    “O pensamento-crime não acarreta a morte: o pensamento-crime é a morte” (Orwell, 1984).

    Apesar de. Parece que algo bom pode sair dessa crise, apesar do isolamento, algo de bom tem ocorrido nesse momento. E espero que aumente. São os as manifestações dos últimos dias, panelas e frigideiras soaram de janelas em diferentes cidades do Brasil. Há desacordo. Estamos cansados. Temos a coragem de lutar e elevar nossas vozes. A coragem de discordar e dizer não. Não aceitamos indiferença, o falso cuidado, hipocrisia. Fome, doença e morte são reais. Talvez estejamos desarticulados, separados de onde estávamos e do que vemos como realidade. Mas hoje temos a obrigação de nos reconstruir como sociedade.

    Assuma a distância 

    Além de lavar as mãos com água e sabão por 20 segundos, proteger-se ao de tossir e ao espirrar, a recomendação é manter a distância social. Você e eu devemos nos acostumar a viver nos buracos tímidos deixados pelo tempo livre, no espaço vazio das pessoas que não podem estar na nossa companhia, amigos, trabalho e rotina. 

    O medo de receber outro dia de “confinamento” é pior do que a incerteza sobre o que pode acontecer, é a certeza de que podemos conhecer algumas consequências que esse inevitavelmente período trará. Temos medo de adoecer e morrer. Temos medo de ficar presos não no dia a dia, mas na vida a vida, aquela que estamos reinventando aos poucos, nessa irrealidade que agora abrigamos como a única possível, em um momento de crise, de ansiedade. Assuma a distância.

    É verdade que, como latinos, estamos familiarizados à crise, à dor, a ver nossas florestas sangrarem, mas não podemos tolerar nem ser extremamente pacientes diante de nossa capacidade de resistir em meio ao sofrimento. É uma faca de dois gumes. Estamos separados, isolados e houve um choque entre nós e nossa realidade. Mas, isso não termina aqui.

    Um terço da população mundial está isolada. Agora é a hora de explorar outros espaços, dentro de nossas casas e pensamentos. O silêncio das ruas vazias é uma tela onde podemos pintar outros projetos e acabar com os “erros que hoje estão no poder que são chamados líderes” (3), e que oprimem nossos povos. 

    Por fim, compartilho com você um conselho que encontrei recentemente em um livro: “Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente” (4).

    Obs 1: Faça de conta

    Faça de conta que nos amamos, que nos abraçamos e nos beijamos. Que não temos que morrer de saudades, que os idosos e mais pobres não estão padecendo e que a quarentena não está dando espaço para abusos dentro das casas. Faça de conta que não estamos à toa. E que nos unimos, lutamos e resistimos. Faça de conta que isso foi superado e que mais uma vez, mostramos a nós mesmos como somos resilientes. Faça de conta que nos encontraremos novamente. Agora acredite firmemente nisso!

    Obs. 2: Intensamente

    Nesse momento, nos piores dias, recorde: “quem é capaz de sofrer intensamente, também é capaz de intensa alegria” (5).

    Referências:

    1. Orwell, G. (2003). 1984. Penguin Books.

    2. Outras emergências de saúde classificadas como pandêmicas pela OMS são: 1. Influenza A (H1N1), em 2009. 2. HIV / AIDS, em 1980. 3. A gripe “asiática” e “Hong Kong”, 1957 a 1958 e em 1968. 4. A gripe de 1918, também conhecida como “gripe espanhola”.

    3. Isso integra organizações e entidades do Brasil, Bolívia, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Peru, Colômbia, Venezuela, México e República Dominicana.

    4. Declaração transmitida no rádio e na televisão em 24 de março

    5. Lispector, C. (1967). Uma aprendizagem ou libro dos prazeres. Editora Rocco.