Ainda que a maior parte da produção teórica marxista venha da Europa, a América Latina também produziu e produz teóricos de lastro, como José Carlos Mariátegui, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e etc. Porém, no plano da América do Sul, um nome deve ser destacado: o do argentino Milcíades Peña. Não somente pela sua contribuição geral para a filosofia da práxis, mas, também, para o campo do socialismo revolucionário, o trotskismo. Milcíades, um jovem “intelectual” falecido aos 32 anos, constituiu-se como “intelectual orgânico”. Portanto, trata-se de uma elaboração que, com todos os seus limites (não raro expostos por ele mesmo), precisa ser revisitada e apropriada pela juventude se quisermos desenvolver uma sólida formação teórica. O artigo que apresentamos abaixo é uma tradução de texto do camarada Marcelo Yunes, da corrente SoB, que foi introduzido como apresentação do livro “Introducíon al piensamento de Marx (Notas de un curso de 1958)”, lançado em 2007 pela editora CEUR – Colectivo Editorial “Último Recurso” de Santa Fé-Argentina.

Redação

O marxismo de Milcíades Peña

Por Marcelo Yunes  

Milcíades Peña (1933-1965) foi um dos mais afiados e rigorosos marxistas argentinos, que em sua curta vida deixou um notável corpo de estudos e debates, especialmente sobre a história política e econômica argentina. Marxista militante (foi membro por um período da corrente trotskista liderada por Nahuel Moreno, que fundou o MAS), foi implacável com a atmosfera de pedantismo e isolamento nos círculos acadêmicos; por outro lado, nunca aceitou o julgamento sumário dos intelectuais da maioria das organizações de esquerda de seu tempo. Essa posição o transformou em uma avis rara, um curioso exemplar de marxista: desprezado pelos intelectuais por seu caráter autodidata e seu compromisso com a política revolucionária, ele era, por sua vez, considerado por muitas correntes políticas militantes, um mero intelectual.  

Apesar de se tratar de notas não revisadas e até incompletas (o curso original consistia em oito partes, das quais apenas seis sobreviveram), a riqueza e a profundidade da concepção do marxismo de Peña podem ser apreciadas desde o início. É notável que, em um período em que pululavam no ambiente da esquerda (tanto acadêmica quanto política) um número infinito de “manuais” de marxismo, materialismo histórico, filosofia marxista etc., a maioria deles assustadoramente dogmáticos e esquemáticos, a primeira advertência de Peña foi fugir da ideia de que: 

 “O marxismo é uma espécie de vitrola caça-níqueis [onde] você aperta um botão e sai uma resposta para o problema que você quer resolver (…) Essa é a negação do marxismo, [que] exige um esforço sério e intenso de pensamento (…) O marxismo dos burocratas [quer] transformar o pensamento marxista em um dicionário onde o verdadeiro e o falso são classificados. Por outro lado, o pensamento dialético, o autêntico pensamento marxista, afirma com Hegel que “a verdade não é uma moeda que pode simplesmente ser dada e recebida”. A verdade é alcançada através do esforço militante do pensamento, e é alcançada através do erro, através do confronto permanente entre a verdade e o erro. Marxismo é pensamento vivo e vivente em permanente confronto com a realidade e consigo mesmo“.  

Contra as visões então (e ainda hoje) em voga, que consideravam o marxismo ora como teoria e nada mais, ora essencialmente como ideologia política, Peña resgata, das fontes do  próprio Marx e em consonância com as interpretações mais férteis do marxismo do século XX (entre as quais Peña destaca especialmente as de Henri Lefebvre,  Korsch e o primeiro Lukács), o caráter múltiplo do marxismo, que não se esgota em uma única faceta. É por isso que ele define provisoriamente o marxismo, em uma primeira fase da investigação, mas como uma base sólida, da seguinte forma:  

“1) Uma concepção geral e total do homem e do universo; 2) com base nessa concepção de mundo, uma crítica à sociedade em que o marxismo nasceu, a sociedade capitalista; 3) Com base nessa crítica, como resultado dessa crítica à sociedade capitalista, trata-se de uma política, um programa de ação para a transformação revolucionária da sociedade, para a criação de um novo tipo de relação entre os homens. (…) Para o público, mesmo para o público que se diz marxista, o marxismo é apenas uma crítica e um programa de luta pelo socialismo. Mas, na realidade, essas são apenas partes do marxismo, e partes subordinadas à concepção marxista do homem, que é a essência e o ponto de partida do marxismo, lógica e cronologicamente.”  

Uma concepção humanista e não determinista da história  

Peña está decididamente inscrito na tradição marxista dialética, antipositivista e inimiga do culto fatalista de circunstâncias fora do alcance humano, sejam elas chamadas de Deus, Destino ou Leis da História. A rejeição das religiões e sua ideia de que o destino humano é traçado por alguma Providência Divina não requer maiores explicações; Por outro lado, vale considerar a polêmica que Peña inicia contra o determinismo histórico tão comum na esquerda da época: o marxismo, diz ele,  “é profundamente otimista, porque acredita que o homem é capaz de forjar um destino cada vez mais humano (…) Só essa característica é suficiente para torná-lo o inimigo irredutível de toda religião. Mas cuidado. O otimismo revolucionário não tem nada a ver com o “progressismo” [que] acredita que as contradições se resolvem ao longo do tempo. Assim, oculta do homem o seu próprio papel e anula o elemento humano ativo, sem o qual não pode haver progresso”.  

Por isso, continua Peña, a confiança do marxismo no futuro “não é o otimismo cego e complacente do ‘progressismo’. O marxismo sabe que a categoria do perigo é essencial, é parte integrante de todo processo de progresso e desenvolvimento da humanidade. E, portanto, sabe que o fim desse processo pode ser uma catástrofe, e que as maiores possibilidades de criar um destino melhor são incessantemente acompanhadas pelas mais tremendas possibilidades de voltar atrás e anular todo o futuro humano. E o único que tem a chave da mudança para indicar o caminho a ser percorrido é o homem, apenas [sua] vontade consciente e ativa (…)”.  

Esta passagem retoma a melhor tradição de Rosa Luxemburgo e sua crítica ao positivismo da social-democracia alemã. A esse respeito, nos permitimos remeter ao artigo de Michel Löwy publicado no SoB nº 7, “O significado metodológico do socialismo ou da barbárie“.  

Alienação e liberdade em Marx 

A matriz da interpretação que Peña faz do marxismo é, então, indiscutivelmente humanista, oposta à tradição economicista e determinista das correntes stalinistas (cujo peso em 1958 era enormemente maior do que hoje, o que evidencia a audácia de Peña). E essa preocupação em colocar o homem no centro da reflexão se revela no lugar que Peña atribui à teoria da alienação, então quase desconhecida dos leitores de língua espanhola devido à falta de tradução da obra mais conhecida de Marx sobre o assunto, os Manuscritos de 1844 (ver nosso comentário sobre alguns desses textos em “Trabalho e alienação“, em SoB nº 5).  

Para Peña, marxismo: “Afirma que o sofrimento e a exploração do ser humano existem porque ele ainda não é plenamente humano, porque se alienou, e só deixará de existir quando o homem for plenamente humano e se tornar desalienado. Por isso fala (…) do resgate do homem, do reencontro do homem com suas novas qualidades. Alienação e desalienação (…) sintetizam os dois conceitos fundamentais do marxismo, a essência, o coração do pensamento marxista. A alienação significa que o homem é dominado pelas coisas que criou. Em três realidades, trabalho, produção de novas necessidades e família, estão dados todos os elementos que dão origem à alienação do homem. (…) A alienação revela-se no fato de que os produtos do trabalho do homem passam a existir independentemente (…) as relações sociais entre os homens aparecem como coisas que escapam ao seu controle e parecem se reger por leis próprias, quase ‘naturais’; [onde] o produto do trabalho de uma parte da humanidade é transformado no poder da outra parte da humanidade; [em que] o homem não existe mais como homem, senão como operário ou comerciante, como intelectual ou pedreiro, como parte de homem, nunca como totalidade humana; [em que] o próprio homem se torna uma coisa, um instrumento que outros homens se utilizam para seus próprios fins e, finalmente, em que o próprio trabalho também é separado do homem e se torna uma coisa. Não é mais a realização da capacidade criativa, mas um instrumento para satisfazer necessidades. (…) A desalienação significa que o homem coloca sob seu controle as coisas que o oprimem e que são partes de si mesmo, fruto de seu trabalho“. 

O interesse por essa problemática era escasso na esquerda em geral e nulo no stalinismo e na social-democracia. É por isso que Peña fala da vulgarização e simplificação do marxismo, que levou à sua desnaturalização, à sua redução a uma simples interpretação econômica da história” ou a um “programa de melhorias para a classe trabalhadora.  

E insiste no questionamento dos “aparatos burocráticos (…) que adotaram o marxismo como instrumento de justificação de sua política”  e que, dessa forma, “ajudaram, com toda a sua força material, a manter as noções vulgares do marxismo e a ocultar sua essência, isto é, a luta contra a alienação, a luta pelo desenvolvimento do homem“. 

Contra todas as correntes do marxismo (as burocráticas  em primeiro lugar, mas também o estruturalismo de Althusser e o positivismo de Della Volpe, por exemplo), Peña refuta a ideia generalizada de que a alienação é uma preocupação inicial e “filosófica” do jovem Marx, sem muita influência em sua obra posterior (que, para Althusser, havia sido escrita até contra essas concepções iniciais). Ao contrário, Peña é categórico: “sem compreender a teoria da alienação, o pensamento econômico de Marx não pode ser compreendido, porque todo “O Capital” nada mais é do que um desmascaramento da alienação humana, tal como aparece oculto nas categorias econômicas e nas leis da sociedade capitalista (…) A teoria da alienação não é coisa da juventude de Marx, que tenha sido depois deixada de lado. A teoria da alienação permeia todo o pensamento de Marx em todos os momentos. É em “O Capital” que encontramos a todo instante a crítica à alienação e o impulso à desalienação do homem, que é o motor do pensamento marxista.”  

A afirmação parece temerária, mas a releitura em apoio a essa tese faz Peña das obras do Marx maduro, e especialmente de “O Capital”, se encontra entre as páginas mais brilhantes e reveladoras de todo o curso, e merecem ser trabalhadas com cuidado. 

Uma afirmação de Marx em 1842, “a liberdade é a essência do homem“, resgatada por Henri Lefebvre, é por sua vez levantada por Peña como a bandeira de uma concepção do marxismo alheia a qualquer economicismo unilateral. Fazendo um resumo impecável de textos de Marx, Engels e Lênin sobre o assunto (também aqui o trabalho do autor com citações é realmente extraordinário), Peña conclui que “os clássicos marxistas insistem decisivamente que a liberdade do homem é a aspiração fundamental do marxismo. O marxismo quer homens plenamente humanos, livres de fetiches opressores. Melhorar o nível de vida é um passo absolutamente necessário, e o primeiro passo para essa libertação do homem, mas apenas o primeiro passo” (este negrito é do próprio Peña). 

Por isso, Peña retoma sua definição inicial de marxismo para enfatizar que os três aspectos mencionados (a concepção de mundo, a crítica da sociedade e o programa de luta para transformá-la) têm como  “objetivo único e decisivo (…) a luta para desalienar o homem, a aspiração de resgatar a plenitude humana para o homem. No marxismo, todo o resto é apenas um meio para esse fim. O desenvolvimento material das forças produtivas (…) a liquidação do capitalismo (…) a ascensão da classe operária ao poder (…) é fundamental e está correto (…) mas, para o marxismo, são meios e nada mais. Pois o que o marxismo quer – e essa é sua essência – é um novo tipo de relações entre os homens, em que os homens não sejam dominados por coisas ou fetiches, em que o homem seja o senhor absoluto de suas faculdades e produtos, e não escravo das mercadorias e do dinheiro, da propriedade e do capital, do Estado e da divisão do trabalho“. 

Essa extraordinária invocação, décadas antes do colapso das sociedades ditas “socialistas”, mostra até que ponto o marxismo desfrutava de parâmetros para julgar se a URSS, a China, o Leste Europeu, etc., cumpriam, ou pelo menos chegavam perto de cumprir, o “objetivo único e decisivo” de criar verdadeiramente um novo tipo de sociedade humana. O colapso retumbante das variantes burocráticas do “socialismo” é, ao mesmo tempo, a expressão perfeita do fracasso do tipo de marxismo sobre o qual diziam apoiar-se. Tanto o socialismo quanto o marxismo não poderiam estar mais distantes das intenções de Marx, e é isso que as palavras de Peña nos lembram

Materialismo 

Poucos aspectos da teoria marxista foram tão pouco ou mal compreendidos – até barbaramente deturpados – quanto o materialismo. Mais uma vez, Peña é forçado a recorrer a um exame prolixo, quase filológico, dos textos clássicos do marxismo para desmascarar as versões mais vulgares e empobrecedoras do materialismo, acusado, novamente, pelo stalinismo, mas que se espalhou muito além de suas fronteiras

A citação de Lênin escolhida por Peña como a seção virtual desta passagem (“o materialismo inteligente está mais próximo do idealismo inteligente do que do materialismo tolo“) serve como um verdadeiro resumo da crítica de Peña ao dogmatismo de manual. A começar pelo conceito de matéria, que é despido de toda conotação metafísica e de toda oposição abstrata com o mundo humano: “a matéria em que se baseia o marxismo não é matéria física ou natureza mecânica, nem uma matéria geral desprovida de qualidades. A matéria a partir do qual o marxismo parte é a totalidade das relações sociais que pressupõem, é claro, uma natureza mecânica e, sobretudo, fisiológica, mas que não coincidem com ela. A matéria da qual o materialismo histórico toma seu nome não é nem mais nem menos do que a relação dos homens entre si e com a natureza (Bloch). O materialista vulgar, diz Marx, não vê que “o mundo sensível ao seu redor (…) é um produto histórico (…) Até mesmo os objetos da mais imediata certeza sensível lhe são dados. graças ao desenvolvimento da sociedade, da indústria e do comércio” (…) O materialismo vulgar, que é o que os stalinistas pretendem passar de marxismo, cai na metafísica da matéria, e mesmo da matéria mecânica, não da matéria constituída pelas relações sociais e pela atividade do homem, considera a matéria como uma coisa perenemente isolada do sujeito, sempre condicionando o homem e nunca condicionada pelo homem “  

No mesmo sentido, Peña já havia apontado suas armas contra a suposta “ortodoxia” ao enfatizar que “o marxismo não é simplesmente materialismo (…) O marxismo nega que o homem seja, portanto, um produto direto das circunstâncias e do ambiente. O marxismo reivindica a autonomia criadora do homem. Tanto a burocracia dos partidos social-democratas quanto a burocracia soviética praticam essa redução do materialismo a um materialismo de bitola estreita [que] reduz a iniciativa criativa do homem a nada e eleva às nuvens o conservadorismo dos aparatos burocráticos, caracterizados por seu apego rasteiro e submissão às circunstâncias, rejeitando a luta para mudá-las“.  

E a diferença entre esse materialismo tosco e vulgar e o marxismo se resume da seguinte forma: “a metafísica da matéria, a crença de que a matéria tem absoluta independência do sujeito que a conhece – que a transforma – tem origem religiosa, e é por isso que se dá tão bem com o senso comum“.  

De fato, o mundo, segundo a religião, já foi encontrado pelos homens como algo acabado e imutável. O marxismo, por outro lado, embora reconheça, é claro, que o mundo físico tem uma existência anterior ao mundo humano, propõe uma mudança decisiva de ênfase: “A partir do momento em que o homem aparece na Terra, a matéria deixa de existir independentemente da consciência do homem, porque desde o primeiro momento o homem age na e sobre a matéria.  e a transforma. (…) Desde a aparição do sujeito, o objeto perde sua independência, entra em relação permanente com o sujeito, e ambos existem apenas em função e através do outro, sem que um possa conceber-se ‘independentemente’ do outro.” 

Digamos que, mais próximo no tempo, uma crítica muito semelhante pode ser encontrada, por exemplo, no filósofo argentino Enrique Dussel. A refutação do materialismo vulgar, que ele não chama, como Peña, de “metafísico”, mas “cosmológico”, pode ser traçada em seus trabalhos mais recentes, por exemplo, em La producción teórica de Marx (un comentario a los Grundrisse), México, Siglo XXI, 1998, pp. 35-37. 

Na mesma linha, se orienta a crítica à teoria de que a consciência “reflete” a realidade, cujas credenciais marxistas têm suas origens na obra altamente discutível de Lênin de 1908, Materialismo e Empirio-Criticismo. Mais uma vez, Peña se apoia nas melhores elaborações de seu tempo: “Lefebvre afirmou recentemente que nada é mais contrário à dialética marxista do que colocar o real de um lado e seu reflexo na cabeça dos homens do outro. Ele tem toda a razão. Porque o marxismo coloca a ênfase não na chamada realidade, nas coisas que estão fora do homem, mas na atividade criadora do homem que conhece, transforma e cria essa realidade e essas coisas externas. Para os aparatos, ser materialista é adaptar-se às condições externas, [mas] o homem não se limita a tirar fotos da realidade; O homem constroi a realidade. Por isso, mais do que ‘reflexão’ – que sugere uma recepção passiva – devemos falar de interação, de relação, de projeção do objeto sobre o sujeito e do sujeito sobre o objeto.” 

Em relação à tão golpeada questão da consciência (cujo papel tantas vezes foi borrado em nome do poder abrangente das “condições objetivas”), Peña não hesita em defender sua importância contra a vulgata: “O marxismo afirma que a consciência não pode explicar-se (…) Ela não existe no ar, mas tem suas raízes na terra. Mas atenção: a consciência não pode de modo algum ser reduzida a um mero reflexo do ambiente. O idealismo coloca a consciência nas nuvens. O materialismo vulgar, ao contrário, o reduz a nada e o priva de toda autonomia, considerando-o como mera secreção cerebral, como uma espécie de caspa que sai na forma de ideias que nada mais fazem do que refletir, como fotografias, o objeto externo.” 

E conclui sua apresentação com uma definição que soa como um golpe de martelo: “O desprezo pela consciência e seus problemas é totalmente estranho ao marxismo. A grande batalha do marxismo está sendo travada justamente no terreno da consciência.” 

A Dialética 

Para começar, a abordagem de Peña para estudar esse aspecto fundamental do pensamento difere das tradicionais: “A dialética não se reduz de modo algum à série de leis que os manuais apresentam como dialética: a transformação da quantidade em qualidade, a unidade dos opostos etc. Essas são apenas algumas partes da dialética, que é lógica, e nada além de partes. Colocá-los separadamente do todo, como receitas a serem aplicadas à realidade, é a coisa mais antidialética que se pode conceber. Só entramos no campo da dialética quando nos esforçamos para entender quando, como, onde e em que condições uma quantidade é transformada em qualidade, ou um polo em seu oposto. Ou seja, só entramos no campo da dialética quando nos esforçamos para apreender a realidade viva, em sua totalidade, com seu movimento, suas contradições e suas mutações.”  

A definição inicial surpreende tanto por sua simplicidade quanto por sua originalidade, que revelam uma profunda compreensão de Hegel e Marx. Segundo Peña, “a dialética é uma abordagem que tenta apreender a realidade exatamente como ela é e ao mesmo tempo como deveria ser, de acordo com o que ela mesma contém em potencialidade. Dialética significa conhecer as coisas concretamente, com todas as suas características, e não como entidades abstratas, vazias, reduzidas a uma ou duas características. É por isso que dialética significa ver as coisas em movimento, isto é, como processos; é por isso que a dialética descobre e estuda a contradição no coração de cada unidade, e a unidade a que toda contradição tende. O pensamento formal comum, que tem sua coroa na lógica formal, tende a despojar a realidade de sua imensa riqueza de conteúdo, de sua infinita complexidade, e reduz tudo a esquemas e fórmulas vazias de conteúdo. (…) Ao contrário, penetrar profundamente na realidade, apreendê-la como ela é em sua complexidade (…) isso é dialético“. 

A diferença entre a abordagem formal e a dialética baseia-se na operação de separação realizada pela primeira, que, dominada pela riqueza e complexidade da realidade, abstrai, separa seus componentes, fazendo-os perder sua unidade primordial na qual se revelam as tendências de seu movimento. É essa reunificação dos diversos planos e conteúdos da realidade que caracteriza o pensamento dialético. 

O resumo de Peña sobre a evolução do pensamento é instrutivo; esta começa com o homem primitivo, que “ele não entende coisas isoladas, vê situações, conjuntos, inteiros, da mesma forma que as crianças pequenas não entendem letras, mas entendem palavras, ou seja, conjuntos concretos dotados de significado. Mas quando a humanidade começou a dominar a natureza e a conhecê-la melhor, pode e deve ter criado uma ferramenta intelectual formidável, que é o conceito abstrato. O homem podia deixar de ver as coisas em sua totalidade; ele foi capaz de dividi-lo em partes, ele foi capaz de analisá-los, ele foi capaz de fazer abstrações. (…) Foi assim que as ciências naturais avançaram. A lógica formal (…) foi um avanço formidável mas, ao mesmo tempo, um formidável retrocesso [porque] perdeu por muitos séculos aquela riqueza que caracterizava o pensamento do primitivo, esse frescor da capacidade de apreender a realidade como ela é, como um todo complexo e mutável (…) A dialética recupera para o pensamento moderno essa riqueza de conteúdo, essa criação, esse frescor, mas incorpora nele o rigor, a precisão e a exatidão que séculos de pensamento abstrato e lógica formal proporcionaram. “A verdade está na totalidade”, diz Hegel. Ou seja, a verdadeira ideia é a superação de verdades limitadas e parciais, que se transformam em erros quando são consideradas inamovíveis. Somente a apreensão da totalidade, onde o idêntico e o distinto, o uno e o múltiplo, isto é, a apreensão do concreto, só nos mostra a verdade. E esta é a brilhante contribuição de Hegel para o pensamento humano.” 

Porque, de fato, apreender a contradição dentro da unidade nada mais é do que apreender as vicissitudes do que está vivo. 

Só os mortos não mudam. Como diz Hegel, a força da vida consiste em carregar dentro de si a contradição, suportá-la e superá-la“. É justamente isso que leva Peña a definir a filosofia marxista e o marxismo como uma totalidade aberta, seguindo Gramsci e Labriola: “É totalidade porque é uma filosofia que engloba a totalidade dos problemas, não é parcial ou fragmentária, mas total. Uma filosofia que não é um conjunto de teorias dispersas, mas um todo sistemático, com estrutura e organização internas. É por isso que o marxismo é uma totalidade. Mas é uma totalidade aberta, porque não é um sistema fechado, que pretende estar acabado, pronto para a eternidade e ser aprendido de cor. Ao contrário, o marxismo exige a contribuição contínua de novos dados, que se articulem com os já existentes. Para entender melhor o que é uma totalidade aberta, basta olhar para o que é um ser vivo. Um ser vivo é uma totalidade com uma estrutura, mas é uma totalidade em movimento, que incorpora continuamente novos elementos, que tem conflitos, que se modifica, mas permanece essencialmente a mesma. O marxismo é também isso: uma totalidade aberta, que se enriquece a cada novo avanço do conhecimento humano“. 

Deixemos claro que aqui nos referimos apenas a alguns dos problemas relacionados ao marxismo de que trata Peña. Para desespero do leitor, mencionaremos algumas daquelas que não pudemos revisar: a teoria das classes sociais (que revela um notável conhecimento da sociologia moderna), as relações entre marxismo e ciência, a concepção marxista das ideologias, discussões adicionais sobre o economicismo e a fórmula estrutura/superestrutura, comentários sobre as Teses sobre Feuerbach e o conceito de práxis, e,  até, algumas indicações muito valiosas para um grupo que estuda a História da Revolução Russa de  Trotsky que mostram uma abordagem da pedagogia e um critério metodológico de estudo digno do melhor marxismo. Em breve tentaremos fazer justiça a esse material. Enquanto isso, esperamos ter despertado o interesse em conhecer essa e outras obras desse marxista argentino.