“Dadas a intensidade e a força produtiva do trabalho, a parte da jornada social de trabalho necessária para a produção material será tanto mais curta e, portanto, tanto mais longa a parcela de tempo disponível para a livre atividade intelectual e social dos indivíduos quanto mais equitativamente o trabalho for distribuído entre todos os membros capazes da sociedade e quanto menos uma camada social puder esquivar-se da necessidade natural do trabalho, lançando-a sobre os ombros de outra camada. O limite absoluto para a redução da jornada de trabalho é, nesse sentido, a generalização do trabalho. Na sociedade capitalista, produz-se tempo livre para uma classe [a burguesia] transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho”.
(Marx, O Capital, v. I, cap. 15 “Variação de grandeza do preço da força de trabalho e do mais-valor”, p. 597)
 

Renato Assad

Há algumas semanas o tema da jornada de trabalho 6×1 tornou-se pauta central das discussões no país. De forma transversal, a discussão tomou conta das tribunas e corredores parlamentares, das redes sociais, dos meios tradicionais de comunicação, das conversas cotidianas informais e dos locais de trabalho e estudo. Não se falava sobre outro tema. E é claro, não se pode ignorar e esconder por tanto tempo o acúmulo sistemático de condições cada vez mais agressivas de trabalho a que são submetidos os explorados e oprimidos em nosso país, assim como no mundo – uma marca da nova etapa do capitalismo deste século.

Desde a chegada tardia da crise internacional do capital de 2008 no Brasil (2013), consolidando um quadro recessivo ao país, de lá pra cá o que se pôde presenciar foi a materialização de uma ofensiva ultraliberal e reacionária de interesse da burguesia para atenuar as tendências da crise de valorização do capital, da queda na taxa de lucratividade dos capitalistas.

Dilma em seu segundo mandato (2014-2016), que já havia reprimido brutalmente as jornadas de Junho de 2013, deu início ao giro para a consolidação de uma nova e mais cruel agenda dos setores sociais dominantes. Dilma nomeou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Apelidado “mãos de tesoura” e encarregado de “arrumar” as contas públicas impôs duros ataques aos benefícios sociais como seguro-desemprego, auxílio-doença, abono salarial e pensão por morte. De maneira complementar combinava o anterior com uma política de implacável austeridade, arrocho fiscal e salarial que terminariam por impulsionar a escalada do desemprego no país.

Mesmo assim, tais medidas não foram suficientes ao capital. Não se podia aceitar mais qualquer tipo de concessão ou “migalhas”, mesmo que residuais, diante da gravidade da crise. Eram necessárias doses ainda maiores de austeridade e exploração da força de trabalho em nosso país, uma relação inversamente proporcional que se exige de forma compensatória e necessária à contenção de uma reprodução crítica do capital do ponto de vista de sua valorização. Em outras palavras, da redução da porcentagem do montante de lucro que concentram os mais ricos. E alguém precisava pagar por isso, pela própria crise que materializou a sociabilidade do capital.

Como parte da ofensiva supramencionada, mesmo cometendo um claro estelionato eleitoral e levando adiante uma agenda própria da burguesia, Dilma sofre um golpe institucional parlamentar. Iniciava-se, desse modo, uma nova fase da escalada de ataques contra aqueles que seguem livres para escolher a quem irão vender o seu tempo de trabalho, mas que também seguem libertos de qualquer outra forma de ganhar a vida.

Dessa forma, arquitetou-se um pacote de contrarreformas estruturais que até hoje, por decisão do atual governo Lula-Alckmin em mantê-las, submetem os trabalhadores aos imperativos mais virulentos e destrutivos do capital e que, somado à pandemia e o governo nefasto e criminoso de Bolsonaro, levaram a uma decomposição socioeconômica de importante contingente populacional.

Essa breve digressão tem como intenção chamar a atenção para o seguinte: ao mesmo tempo em que a crise do capitalismo exige a imposição de duros ataques contra os mais pobres para tentar atenuar a queda nas taxas de lucro, tornando a superação da crise do capital algo circunstancial, e, portanto, dialeticamente preparando outras crises, tais abusos não acontecem sobre um corpo inerte. Pelo contrário, as novas dinâmicas de sociabilidade do capital, são impostas sobre um corpo social vivo e, sendo assim, é materialmente esperado que dito organismo vivo reaja à altura das agressões. 

Portanto, objetivamente as contrarreformas trabalhista, previdenciária, o velho e novo teto de gastos, bem como o novo pacote fiscal de Haddad-Lula, entregam às novas gerações uma única perspectiva de vida: trabalhar e subsistir para garantir a recuperação da riqueza dos de cima. Lazer, estudos, esporte, cultura, diversão e tempo livre? Esqueçam! Devemos pagar pela própria crise gerada pelos milionários e bilionários. Essa é a determinação dos setores dominantes e de seus representantes políticos que assume a forma das contrarreformas de Temer, Bolsonaro e Lula-Alckmin. 

Entretanto, esqueceram-se – assim como muitos da esquerda da ordem – que esta determinação, ainda que leve tempo para ser processada, pudesse gerar contundente questionamento social. É justamente o que começa a se presenciar hoje, não só com a generalização do debate pela necessidade do fim da escala 6×1, mas com elementos de ativismo, organização e mobilização de trabalhadores contra essa escala da morte. 

Sem dúvidas a pauta expressa um potencial histórico de classe. Não à toa, de maneira espontânea, surge o Movimento VAT (Vida Além do Trabalho) que, apesar de todos os seus limites e contradições, expressa de maneira explosiva a indignação e revolta contra as atuais condições objetivas de trabalho e vida. Trata-se de um grito de “basta!” que começa a ser encarnado mais e mais no seio de nossa classe e que já foi capaz de colocar na defensiva, por mais que momentaneamente, a extrema direita e a conciliação de classes numa cajadada só. 

Essa constatação não poderia estar melhor representada na cobrança pública em massa do eleitorado bolsonarista aos seus representantes para que se posicionassem pelo fim dessa jornada 6×1, por um lado. E, por outro, na mudança repentina do discurso de Guilherme Boulos (PSOL) que durante toda a campanha eleitoral defendeu o mito do “empreendedorismo” e trabalhos precários para a periferia como proposta à geração de emprego, mas que, de maneira oportunista e empurrado pela pressão popular, subiu ao carro de som na Av. Paulista para defender a redução da jornada de trabalho no último dia 15 de novembro como se fosse uma outra pessoa com uma oposta linha política. 

Além disso, trabalhadores da empresa transnacional PEPSICO, mesmo sob direção da burocracia sindical, levantaram-se em ambas as plantas (Sorocaba e Itaquera) numa primeira greve pelo fim da escala de trabalho 6×1. O resultado da mobilização pode ser considerado como uma pequena vitória parcial: a mobilização se encerrou nesta semana, dia 2 de dezembro, com um acordo coletivo firmado em que se garante aos operários de ambas as plantas mais um dia de folga por mês aos finais de semana. Ou seja, a partir de agora trabalharão uma semana no mês sob a escala 5×2. 

Sendo assim, é preciso considerar que não há materialmente hoje uma nova correlação de forças no país e nem qualquer garantia que espontaneamente e automaticamente chegaremos a conclusões e posições que hoje demanda a luta de classes para derrotarmos a 6×1. Contudo, a conjuntura política é alimentada por novos elementos importantes que, sendo aproveitados, podem reverter a situação defensiva dos trabalhadores e oprimidos. É preciso apoiar-se nos setores mais dinâmicos da luta de classes, partindo dos elementos novos e concretos, para levar adiante a batalha pela construção e consolidação estratégica de um bloco de enfrentamento à extrema direita e de oposição ao governo Lula no país.

No que pese que não passamos à ofensiva, não significa que não o possamos fazer como dissertam depressivamente as direções capituladoras do PSOL que enxergam apenas os elementos adversos da realidade para justificarem suas traições. São reais as possibilidades e, assim, enormes e históricos os desafios que temos pela frente para conquistar a redução da jornada de trabalho para 30h semanais sem a redução salarial. Por isso: 

  1. Devemos compreender que essa luta é uma das batalhas da guerra de classes, uma guerra contra a classe dominante e suas expressões políticas que vão da extrema direita bolsonarista à frente ampla de Lula-Alckmin, bem como os partidos que à ela capitulam como o PSOL. Que ambos estes setores, com identidades e métodos diferentes, trabalham ao mesmo patrão e precisam ser enfrentados pela via da independência de classe e sob a força e auto-organização dos trabalhadores mobilizados pelas bases.
  2. Que por mais que seja extremamente importante a pressão por cima, pelo parlamento, diante de uma PEC que hoje já atingiu o número suficiente de assinaturas para sua tramitação, o elemento de natureza decisiva, o fiel da balança, está nas ruas: na capacidade de impor uma correlação de forças que obrigue o parlamento a ceder às reivindicações dos de baixo!
  3. Em hipótese alguma deve-se separar (desconectar) as lutas de natureza econômicas-sindicais das lutas políticas e democráticas. O grande desafio do marxismo revolucionário, da sua ciência e da sua arte, é saber combinar ambas as esferas, conectar demandas que a priori podem parecer desconexas às massas, mas que exigem, inegociavelmente, uma luta unificada com um sistema de palavras de ordem que às vinculem.
  4. A direção da luta pelo fim da 6×1 está em disputa e, predominantemente, dirigem setores majoritariamente reformistas. Cabe às organizações revolucionárias compreender a necessidade de toda a unidade de ação pelas ruas, mas sem adaptar-se aos limites reformistas. É necessário conformar colunas e iniciativas independentes a partir da CSP-Conlutas que disputem politicamente setores importantes dos trabalhadores para que possamos superar pelas ruas a lógica parlamentarista da esquerda da ordem. 
  5. Soma-se ao anterior a necessidade de combinar, também a partir da CSP-Conlutas, sistemática exigência a todas as centrais sindicais dirigidas pelo lulismo para que se convoque um plano nacional de mobilização pelo fim da escala 6×1, bem como uma campanha unificada pela redução imediata da jornada de trabalho para 30h semanais sem a redução salarial e um encontro nacional estudantil-operário para unitariamente organizar a nossa luta nos locais de trabalho e estudo. 

Fundamentalmente abre-se uma janela política que nos exige, categoricamente, a ruptura imediata com a passividade e a inércia alimentadas pela conciliação de classes. Sem nenhuma ilusão de soluções advindas de cima, é possível recolocar em cena o protagonismo político do movimento de trabalhadores, estudantes, mulheres, negros, LGBTQIAPN+ e outros. Quer dizer, as condições hoje são as mais favoráveis dessa última década para romper com a persistente dinâmica em que apenas uma classe social no país tem se dedicado a fazer política cotidianamente – a burguesia!  

A luta pelo fim da jornada 6×1 hoje não pode estar desvinculada pela luta pela prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas. Na verdade, a centralidade da luta hoje passa por essa tarefa histórica: romper com o ciclo permanente de anistia que tem custado tão caro à nossa classe. Sem nenhuma confiança no lulismo, na “justiça” burguesa, a luta pela punição dos que atentaram contra as liberdades democráticas é também a luta contra aqueles que defendem a exploração do trabalho sob a escala 6×1. Ou seja, impor pelas ruas a punição categórica deste setor, de suas lideranças e financiadores, é fazer recuar a extrema direita e abrir passo para para nossas conquistas!

Por fim, temos como compromisso e responsabilidade imediata a tomada das ruas na mais ampla unidade de ação no próximo dia 10 de dezembro, às 17h, dia internacional dos Direitos Humanos, para exigir:

  • A prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas! Expropriação de todos os empresários que apoiaram o golpismo!
  • O fim dos tribunais militares!
  • A Revogação do artigo 142 da Constituição!
  • O fim da escala 6×1!
  • Uma jornada de trabalho de 30h semanais sem a redução salarial!
  • A revogação de todas as contrarreformas de Temer, Bolsonaro e Lula
  • Abaixo o pacote fiscal, taxação das grandes fortunas!
  • Não ao pagamento da dívida pública!
  • Abaixo a PEC do estupro!
  • Basta de violência policial, Fora Derrite e Tarcísio!
  • Justiça à todas as vítimas da repressão policial!
  • Fim da Polícia Militar!