MARIA CORDEIRO  

No início deste quente mês de setembro, em meio a uma polarizada campanha eleitoral e efeitos agudos da crise climática no Brasil pelos mais de 165 mil focos de incêndio em diferentes estados, surge um novo fato político: a demissão do ministro dos direitos humanos e intelectual antirracista Silvio Almeida.  A demissão foi feita na sexta-feria dia 06/09 pelo presidente Lula, após denúncias de assédio sexual cometidos por Silvio. As denúncias foram recebidas pela organização Me Too Brasil, até agora a ministra da igualdade racial Anielle Franco e a professora Isabel Rodrigues se pronunciaram relatando terem sido assediadas pelo ministro, no entanto em entrevista, Isabel revela que acredita que existam muitas outras vítimas. 

É comum que vítimas de violência sexual e de gênero em que seus agressores sejam figuras públicas ou de poder, tenham dificuldades ainda maiores para a validação de suas denúncias, além de sofrerem escrutínio público em defesa do agressor. Nesse contexto, independente do status dos atores envolvidos, é inviolável o direito primeiramente ao acolhimento e segurança das vítimas, como também, de um julgamento justo, independente e imparcial de todas as partes envolvidas, com o direito à defesa e presunção de inocência do acusado. 

No entanto, essas denúncias extrapolaram o âmbito pessoal dos agentes envolvidos e acerca do ocorrido eclodiram diversas acusações racistas contra Silvio atacando o movimento negro e feminista  pela extrema direita. Além de surgirem debates também entre a esquerda sobre interseccionalidade, representatividade e identitarismo. Por fim, esse denso caso nos obriga a pensar quais são os caminhos da luta feminista e antirracista e qual é o papel da institucionalidade nessas lutas. 

A notícia foi impactante. Silvio Almeida é um importante intelectual e figura pública na luta antirracista, graduado em direito e em filosofia pela USP, tem uma extensa carreira docente e em pesquisa. O intelectual fundou e presidiu até o ano de 2022 o instituto Luiz Gama, organização formada por juristas que atua no campo dos direitos humanos e no combate ao racismo institucional e estrutural no Brasil.

De forma oportunista e asquerosa, após a denúncia, o bolsonarismo se utilizou do caso para atacar de forma racista Silvio, Anielle, a esquerda, e a defesa dos direitos humanos e igualdade racial, bandeiras democráticas que ganharam espaço na agenda política como parte da luta contra a ditadura e durante a “redemocratização” -e usadas de forma oportunista pelo governo Lula. Curiosamente, a extrema direita chama o governo de hipócrita e levanta questionamentos de “onde estão as feministas?” ou “esse é o governo de paz e amor”. Dentro de um cenário de ofensiva da extrema direita, escândalos de assédio como esse servem como munição e ataque tanto ao governo liberal-social de Lula Alckmin quanto às legítimas lutas antirracistas e feministas dentro e fora das instituições. 

Parlamentarismo, representatividade e luta social

Dentro da lógica institucional da democracia burguesa, é importante lutar para ter representatividade no parlamento. A Bancada Ruralista é um exemplo -pela negativa- disso: é o “braço político” do agronegócio em Brasília, onde conta com uma equipe de parlamentares e senadores que defendem os interesses capitalistas e ecocidas dos grandes latifundiários. A falta de representatividade negra na política evidencia a profunda desigualdade e racismo estrutural que vigora nas instituições e fora delas e que se refletem nas políticas promovidas pelos parlamentares. Apesar de o Brasil ser o país com a maior população negra fora da África, em que a maioria da população se autodeclara negra (cerca de 56% segundo o censo de 2018) há apenas 125 deputados autodeclarados negros – incluindo pardos e pretos em um total de 513 na Câmara dos Deputados, o que equivale a apenas 24,36% da composição da Casa.

Essa desigualdade não é um acaso, mas sim um reflexo da exclusão histórica promovida pela colonização, o racismo estrutural e acumulação de riquezas pela burguesia. Nesse sentido, é compreensível e progresiva a luta do movimento negro por contar con seus próprios representantes, com o intuito de que garantam que as suas experiências, vozes e reivindicações, que são significativamente afetadas pela exploração e opressão racista do capitalismo brasileiro, estejam adequadamente representadas no parlamento. Mas o ganho de parlamentares não pode ser um fim em si mesmo. Para que seja útil aos movimentos dos explorados e oprimidos, é necessário que o espaço parlamentar seja visualizado como uma ferramenta complementar à luta nas ruas. O marxismo revolucionário nos legou uma série de debates estratégicos ao respeito disso e, como aponta Rosa Luxemburgo em vários de seus textos, os parlamentares da esquerda revolucionária tem como tarefa central opor-se ao conjunto da ordem capitalista e, além disso, falar para “fora da janela”, isto é, seus discursos tem que estar pensados para incentivar a luta nas ruas. 

Outra coisa é fazer parte de um governo burguês, como foi o caso de Silvio de Almeida, uma posição na qual não é possível ser oposição ao capitalismo, ao contrário, passou a ser parte da “equipe diretiva” encarregada de dirigir a governabilidade burguesa.

Por isso, apenas a presença de pessoas negras e mulheres no parlamento não garante o fim de políticas racistas que aprofundam a exploração e opressão da juventude trabalhadora no país. Visto que é justamente sobre a desigualdade e exploração da classe trabalhadora, dos corpos negros e das mulheres que o sistema capitalista acumula suas riquezas e os parlamentares são justamente os “agentes” institucionais e legitimadores desse sistema de exploração. É preciso questionar justamente essa forma de governo. 

O capitalismo ultra agressivo do século XXI e os limites da conciliação de classes

Não é possível, portanto, como se tem provado historicamente e debatido Rosa Luxemburgo em um de seus livros “Reforma ou Revolução”, que a faca corte seu próprio cabo, ou seja, que as reformas políticas gradualmente levem à uma revolução socialista e instituem, portanto, o fim da desigualdade e da opressão. Isso se dá pois há um limite das políticas públicas de bem estar promovidas pelo Estado dentro do capitalismo. Esse limite é imposto pela fase de acumulação ou crise dentro do modo de produção, que sobre pressão da luta de classes nas ruas, que questiona a exploração do trabalho e exige uma saída anticapitalista. Hoje em dia a crise desencadeada a partir de 2008, mesmo sendo sentida após alguns anos no Brasil, colocou a necessidade do aumento da exploração do trabalho mundialmente, cenário diferente do largo crescimento econômico visto nos governos Lula 1 e Lula 2 e suas políticas de assistência social, as quais se limitaram a uma redistribuição da renda gerada pelo “boom das commodities”, mas que nunca questionou a estrutura desigual e opressora do capitalismo brasileiro. 

Hoje em dia, inaugura-se uma nova etapa da luta de classes onde combinam-se elementos de aprofundamento da barbárie e ultra exploração do trabalho, com um avanço das tecnologias e plataformas digitais ao mesmo tempo em que presenciamos a crise climática e ascensão da extrema direita a nível internacional. Vivemos uma crise em que não há espaço para políticas de bem estar social, mas sim do agravamento da exploração, que escancara os limites das políticas institucionais. Nos deparamos com ataques à classe trabalhadora vinda de um governo de esquerda da ordem, que se construiu na figura paterna de um sindicalista, mas que leva a cabo as políticas liberalizantes do mercado. 

A luta contra todas as opressões e exploração da classe trabalhadora devem ser feitas nas ruas, com a massa da classe trabalhadora e de forma independente de qualquer governo. Ao mesmo tempo que Lula 3 ampara-se em ministérios e pautas como da igualdade e direitos humanos, colocando mulheres, pessoas negras e representantes de lutas sociais em cargos no governo, leva à cabo políticas que aprofundam a barbárie capitalista no Brasil e atacam justamente as populações mais marginalizadas do país. Para dar alguns exemplos, o governo recusa-se a pautar de maneira séria a legalização do aborto e o fim da exploração dos entregadores por aplicativo. 

Direito ao aborto, seguro e gratuito nos hospitais é uma questão de saúde pública, e sua criminalização leva à morte milhares de pessoas que gestam, a maioria  mulheres negras e periféricas, que são obrigadas a realizarem abortos clandestinos. O próprio presidente, em campanha, para angariar votos dos conservadores, disse que sempre foi contra o aborto, e a recusa a pautar essa necessidade histórica do direito das mulheres e das pessoas que gestam mostra a sobreposição de agradar a bancada conservadora e evangélica no parlamento ao direito à vidas das pessoas que gestam. Apenas com a mobilização nas ruas, massiva, como foi o caso da luta contra o PL1.904 – PL que equipara o aborto legal após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, incluindo em casos de estupro – que o governo rompeu seu silêncio de dias contra o projeto na câmara. Por pressão das ruas pelo movimento de juventude e de mulheres, ponta de lança na luta contra as opressões a nível internacional, a aprovação do projeto, que havia sido de caráter urgente, foi freada, ainda não tendo relator designado para sua continuidade.  

Outro tema que afeta de forma desproporcional a juventude negra e trabalhadora mundialmente é a plataformização do trabalho, tema denso que revela uma nova morfologia do trabalho marcada nos retrocessos históricos de séculos de lutas trabalhistas em que os entregadores e outros setores da classe trabalhadora fazem jornadas de 12-14 horas por dia, não tem direito a férias, aposentadoria nem nenhuma seguridade social, enquanto rege a ideologia meritocrática ultraliberal. Diante desse cenário, no Brasil existem cerca de 700 mil motoristas por aplicativo e quase 600 mil entregadores, a maioria trabalhando para empresas como Uber, Rappi e Ifood. Assim, no final de 2023, o governo de Lula e Alckmin, ao constituir um GT para regulamentação do trabalho por aplicativo, abriu espaço para que essas mesmas empresas compusessem o GT, ao mesmo tempo em que não houve diálogo com os próprios trabalhadores para a discussão dentro do GT. 

Após este teatro de representação dos trabalhadores pelo governo, o GT foi desfeito e o ministério do trabalho, em diálogo exclusivo com o IFood, apresentou um projeto de lei que representa a verdadeira institucionalização da uberização. Projeto esse que formaliza a não vinculação trabalhista entre entregadores e empresas, serão permitidas então, jornadas de até 12h diárias, sem a garantia de nenhum aumento, tabelamento ou indexação dos valores pagos pelas viagens à inflação. Assim, não podemos depositar nenhuma esperança nesse governo cínico. A luta contra essa exploração acachapante do trabalho, contra a vida da juventude negra e trabalhadora só pode se dar de maneira independente, pelas nossas próprias mãos. 

Estes foram apenas dois exemplos de que apesar do Governo Federal se colocar discursivamente no campo da “esquerda”, como todo governo burguês, ele atua conforme os interesses do mercado e da reprodução do capital, em fase, hoje, de aprofundamento da crise e da exploração do trabalho. Poderíamos citar a recusa do governo de se tratar (1) da legalização de todas as drogas, algo que provoca o genocídio da juventude negra nas periferias e encarceramento em massa dessa população, (2) da revogação do Novo Ensino Médio, que condena a juventude a subempregos e impõem ainda mais um filtro racial e social no ingresso ao ensino superior, (3) fim da escala semanal 6×1, que impõe uma rotina extenuante, impedindo que  população tenha uma vida para além do trabalho. 

Nenhuma confiança nem em governos burgueses nem nos patrões! Construamos um movimento feminista e anti-racista com independência de classe

Compreendendo então a dinâmica estrutural das engrenagens do capital e voltando às denúncias contra Silvio, fica claro que nenhuma figura, por mais progressista que seja, representa individualmente a luta antirracista e pelos direitos socias. Assim como nenhuma figura resolverá desde cima os problemas sociais pela classe trabalhadora nem no Brasil nem mundialmente. 

É preciso romper com o personalismo na política e encarar as lutas como coletivas, nas ruas e independentes dos governos. Por isso, não pode-se encarar o caso de assédio que o intelectual Silvio Almeida teria cometido como a desmoralização do movimento negro, pois não é essa figura, que legitima um governo de normalização do regime burguês de Lula-Alckmin, que representa a luta. Mesmo tendo atuado no campo das políticas antirracistas e pelos direitos humanos, se escancara a partir deste caso as fragilidades da luta antirracista e feminista apenas no âmbito institucional ou ligados a uma figura específica. É preciso exigir uma saída anticapitalista, socialista-revolucionária, pelo fim de todas as opressões, uma luta consequente e pelas ruas, sem depositar nenhuma confiança nem em governos burgueses nem nos patrões!

 

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