O balanço das eleições de 2024, com uma nítida vitória do “Centrão” e da extrema direita, confirma o fracasso da conciliação lulista frente a polarização com a extrema direita. Mas a incapacidade dos governos de conciliação de classes fazer frente ao bloco político ultra reacionário da burguesia não é novidade no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Agora, que abre -se uma conjuntura mais favorável para a luta pela prisão de Bolsonaro e pelo fim da escala 6×1, temos que também enfrentar os cortes de gastos do governo Lula e aos ataques aos direitos democráticos vindos da direita ultrarreacionária via Congresso. Assim, a realidade mostra mais uma vez que qualquer saída favorável para a nossa classe e para os oprimidos passa necessariamente pela luta e organização independente dos governos e da burocracia.

ANTONIO SOLER

“A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem.”
(Karl Marx, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel)

Vitória eleitoral do ultrarreacionarismo

Como era de se esperar pelo conjunto das circunstâncias políticas nacionais, o resultado dessas eleições municipais foi um significativo fortalecimento da direita ultrarreacionária. Já para a esquerda da ordem, houve um fenômeno contraditório de crescimento gradual do PT e o recuo dos seus satélites políticos.[1]

A direita ultrarreacionária (PSD, União Brasil, PP e PL) conquistou 4.047 prefeituras, número que equivale a 72,6% dos 5.570 municípios brasileiros.[2] Esse bloco venceu em 90% das cem cidades com duzentos mil eleitores ou mais, essa é a coluna vertebral do Brasil. O partido de Bolsonaro (PL) obteve 517 municípios, o que significa um crescimento de 47%, e 4 capitais.[3]

Em relação à esquerda da ordem, podemos observar um resultado no geral desfavorável, porém desigual. O PT de Lula obteve 252 prefeituras (68 a mais do que em 2020), dentre elas Fortaleza (capital do Ceará). Já os seus satélites (PSOL, PCdoB e Rede) saíram abertamente derrotados dessas eleições. O PSOL perdeu todas as suas 5 cidades, dentre elas Belém (capital do Pará), e teve o quadro de vereadores reduzido de 93 para 80 parlamentares.[4]

Esse é, sem dúvida, um resultado histórico para o ultrarreacionarismo no Brasil que confirmou de forma cabal as previsões de fortalecimento do reacionarismo provocados pela falência da conciliação de classes.[5] Conciliação que, aliás, tem fracassado em várias esferas, como é o caso da destruição dos ecossistemas, dos ataques a direitos e da precarização das condições de trabalho e vida.

Ainda é cedo para cravar os alinhamentos políticos-eleitorais para 2026. No entanto, apesar dos recentes desdobramentos da investigação do golpismo bolsonarista, o resultado das eleições confirma a ofensiva do ultrarreacionarismo e a defensiva do governo de conciliação de classes. Para se compreender esse processo, não podemos nos deter apenas em elementos conjunturais, é preciso sobrepor a esses elementos às mudanças mais estruturais na correlação de forças que vivemos nos últimos dez anos, que foram calcadas na hipertrofia do Poder Legislativo e na sua hegemonização pelo ultrarreacionarismo.[6]

Emblemática derrota de Boulos

O centro do balanço nacional passa pelo resultado das eleições na cidade de São Paulo, capital nacional mais importante do Brasil e maior cidade da América Latina. Um resultado favorável para a esquerda da ordem em São Paulo teria mudado, evidentemente, de forma significativa todo o balanço nacional, mas o que se efetivou foi outra coisa.

No final da primeira rodada das eleições, Ricardo Nunes (MDB) ficou com 29,48%, Guilherme Boulos (PSOL) com 29,07% e Pablo Marçal com 28,14% do total de eleitores.[7] Por uma diferença de apenas 56,8 mil votos não tivemos um segundo turno com duas figuras ligadas à extrema direita em São Paulo, o que seria um cenário inédito na capital paulista.[8]

Marçal se constituiu como um fenômeno à parte nesse processo eleitoral. Essa foi uma candidatura que, apesar de não ter o apoio direto das estruturas políticas tradicionais e nem de Bolsonaro, dividiu os votos de extrema direita no primeiro turno e por pouco não foi ao segundo turno. Isso pôde ocorrer porque, diferentemente de Nunes, que tem um perfil mais ligado ao Centrão (Bolsonaro declarou abertamente que ele não era o melhor candidato), Marçal tem um perfil que empalmou com a estética e o ideário da extrema direita. Porém, o seu destino político não está claro.[9]

A eleição no segundo turno entre Nunes e Boulos resultou na vitória do primeiro com 59,35% e 40,65% respectivamente.[10] Esse resultado configura uma espetacular vitória para o ultrarreacionarismo em geral e para a chapa MDB/PL, prefeito e vice-prefeito, em participar. Também é um resultado excepcional para o governador de extrema direita, Tarcísio de Freitas (Republicanos), pois foi o grande padrinho de Nunes, e para Gilberto Kassab (PSD), Presidente Nacional do PSD, Chefe de Gabinete do governo do estado e articulador da campanha de Nunes. Mas o balanço de Boulos é o oposto.

Ao fazer uma comparação com a eleição de 2020, podemos observar que, apesar de contar com muito mais recursos financeiros e apoio político, o resultado numérico de 2020 foi praticamente o mesmo de 2024. Nas eleições de 4 anos atrás Boulos gastou R$7,74 milhões, em 2024 o valor foi de R$57,27 milhões. O psolista também teve um arco de alianças muito maior e, agora, contou com o apoio de Lula. Mesmo com tudo isso, Boulos manteve em 2024 praticamente o mesmo resultado de 2020, ou seja, 40,65% e 40,62%, respectivamente.[11

Em que pese que o ultrarreacionarismo tenha se dividido praticamente ao meio no primeiro turno, demonstrou de forma cabal a sua hegemonia, pois elegeu a sua chapa para a cidade mais importante do país com cerca de 1 milhão de votos a mais do que a esquerda da ordem. Essa é uma vitória categórica do ultrarreacionarismo de qualquer ponto de vista e que, independente da nova conjuntura mais favorável que está se abrindo, tem importante repercussão na situação política nacional. A partir daí se abriu um amplo debate sobre as suas causas e consequências para o próximo período.

Superar o possibilismo

As eleições municipais de 2024 não repetiram da mesma forma a polarização nacional ocorrida em 2022, como apostava que iria ocorrer a esquerda da ordem. A vitória deste setor em 2022 foi, de forma significativa, baseada na movimentação espontânea de consciência das massas mais exploradas e oprimidas em território nacional que rejeitavam a manutenção de Bolsonaro no poder.

Neste sentido 2022 teve um caráter plebiscitario. Em 2024, a política liberal-social de Lula3 abriu espaço para o ultrarreacionarismo e a falta de diálogo político eleitoral que falasse às necessidades concretas desmobilizou os setores mais precarizados da classe trabalhadora. Desta forma, a partir de uma avaliação de que a eleição municipal seria uma cópia da eleição nacional de 2022, em que Lula ganhou de Bolsonaro nacionalmente e na cidade de São Paulo, a estratégia central da campanha de Boulos foi defender um programa liberal palatável à classe média.[12]

Os altos índices de abstenção vistos por todo o país indicam que as campanhas da esquerda da ordem no Brasil e em São Paulo não estabeleceram nenhum diálogo significativo com as massas que vivem precárias condições de trabalho – que atinge cerca de 50% da força de trabalho – e de vida. Além dessa falta de diálogo político, a onda de lutas contra a escala 6×1 também indica que a postura da esquerda de forma geral de separar a luta do voto foi um fator de contenção das lutas. Em vez de dialogar com a vida real, de se apoiar nas demandas concretas para enfrentar o reacionarismo, a esquerda e sua campanha social democrata cumpriu o papel de frear as mobilizações. O resultado disso foi uma profunda derrota que ninguém pode negar.

O balanço da derrota eleitoral em São Paulo, bem como o nacional, é controverso. Nos limites deste texto nos interessa discutir esse balanço com as correntes do campo da esquerda socialista ou que estão em transição ao neorreformismo.

De uma forma geral, podemos observar que as organizações que estão constituindo o novo reformismo caracterizam-se pelo pelo oportunismo/possibilismo [13] e as correntes que se mantêm no campo da esquerda socialista por fortes traços economicistas/sectários. Passando, claro, pelo maximalismo e pela socialdemocratização da esquerda de uma forma geral.[14]

No rol de correntes que perderam a independência de classe elencamos a Resistência e o MES (organizações que compõem a direção do PSOL) e as que são independentes, apesar de muito problemáticas, PSTU e MRT (esquerda socialista independente).[15]

Para o artigo Cinco polêmicas sobre a derrota da esquerda, de Valerio Arcary[16], a derrota de Boulos não pode ser encarada do ponto de vista dos erros  políticos e táticos. Para Arcary, uma vez que não houve mudança da correlação de forças desde a derrota de Bolsonaro, “a relação social e política de forças evoluiu mal desde a vitória de Lula”, “as eleições não foram um ‘plebiscito’ do governo Lula, mas as apostas feitas no Palácio do Planalto tiveram consequências” e “estaremos nos equilibrando na vertigem da beira do abismo”.

Esse fragmento do texto sintetiza a concepção possibilista do autor e de sua corrente. Em primeiro lugar, em que pese que a correlação de forças não mudou de forma significativa desde a derrota de Bolsonaro em 2022, em grande parte pela política do governo e da esquerda da ordem,  isso não significa que exista uma situação de derrota estrutural que não permitiria utilizar o processo eleitoral para lutar por colocar as massas em ação.

Para nada está escrito nas estrelas que as táticas que consigam dialogar com as necessidades concretas das massas não possam despertar processos de mobilização e deslocamentos políticos. Nesse sentido, é curioso notar que assim que acabou o processo eleitoral, a luta contra a escala 6×1 ganhou um enorme impulso a partir da apresentação da PEC e do impacto que teve o relatório da política federal sobre o golpismo bolsonarista. Um fenômeno que corrobora com a intuição de que setores importantes da nossa classe não foram mobilizados durante as eleições por falta de políticas que dialogassem com suas vidas concretas.

Colocar o destino da classe trabalhadora na mão do governo Lula, como fazem os companheiros, mesmo diante de uma farta experiência com os governos de conciliação lulista, é de uma criminosa inconsequência que só pode levar à derrota e à desmoralização. Assim, ao contrário da conclusão da maioria da direção do PSOL, se a aposta não for na luta independente do governo para enfrentar os seus ataques e para derrotar o bolsonarismo nas ruas, a hipótese de que avancem os ataques ao conjunto dos aspectos de existência e que a extrema direita – com ou sem Bolsonaro – volte ao poder em 2026 é muito provável.

Vamos agora discutir com a posição do MES através da nota A necessidade da esquerda dizer seu nome, de Roberto Robaina.[17] Apesar de apresentar uma fraseologia mais à esquerda, a posição dos companheiros não é menos possibilista (com traços marcantes de cinismo) do que a da Resistência.

Para Robaina, nesse processo eleitoral “a esquerda perdeu a chance de ressuscitar”. Assim, mesmo em uma conjuntura desfavorável, a esquerda deve defender suas posições pois, de outra forma, “nunca se irá trabalhar para alterar a relação política de forças”. Essa perda de oportunidade ocorreu “porque ou o PSOL foi cabeça de chapa adotando a linha, o discurso e o programa do PT, como fez em SP, ou foi vice do PT, como em Porto Alegre”.

Aqui temos um argumento que só é de esquerda em seu verniz, pois essa posição, ao ser analisada, não tarda em demonstrar o seu caráter pseudo radical. Em primeiro lugar, dizer que temos que defender nossas posições mesmo em uma conjuntura desfavorável é pura e simplesmente uma saudação à bandeira, uma vez que perde de vista as contradições e possibilidades concretas de reversão que a realidade oferece – vide luta pelo fim da escala 6×1.

Apenas dialogando com as condições mais dramáticas da vida se pode mobilizar, e isso não se resolve sem apresentar saídas concretas; o que é impossível fazendo parte de uma chapa com o PT, como fez o MES em Porto Alegre. Por essa razão, esse argumento político é de um cinismo sem tamanho. Visa pura e simplesmente escapar do debate real em torno de qual foi o papel concreto dos vários setores da esquerda nas eleições para esconder que, ao decidir fazer parte de uma chapa com Maria do Rosário (PT), sabiam plenamente que não romperiam com a frente liberal-social que estão submetidos como parte do PSOL em nível nacional. Na verdade, essa fraseologia de esquerda do MES não tem intenção nenhuma de penetrar nas massas (para usar a linguagem do jovem Marx), mas está apenas a serviço de dissimular o seu verdadeiro objetivo, que é se desenvolver como mais uma corrente possibilista e aparelhista.

Entre o economicismo e o abstencionismo

Agora passemos ao diálogo com a esquerda independente, em primeiro lugar com o PSTU e depois com o MRT. Apesar das diferenças táticas entre estas duas organizações, encontramos em suas linhas politicas traços comuns de economicismo, sectarismo e  socialdemocratização.

Em sua nota Diante de uma esquerda “da ordem”, e contra a ultradireita, construir uma oposição de esquerda revolucionária e socialista[18], o PSTU afirma que em face aos ataques que estão por vir por parte do governo e dos patrões, é necessário “organizar uma oposição de esquerda e socialista ao governo Lula e a todos os demais governos”, defender “um programa socialista e revolucionário” e “construir uma alternativa socialista e revolucionária, em oposição de esquerda aos governos do PT, superando Lula e a seu projeto de aliança com a burguesia”.

Apontemos os traços sectários presentes nesse argumento. Em primeiro lugar, perdem a inteireza das coisas quando não compreendem que em um cenário de polarização nacional pela extrema direita, a luta por construir uma oposição política independente do composto entre o lulismo e setores da burguesia não pode estar separado da tarefa de enfrentar à morte o bolsonarismo.

Colocar essa tarefa estratégica apenas nos limitados termos de construir uma oposição de esquerda ao governo Lula 3, no cenário atual, desconsidera o peso e o perigo que tem a extrema direita hoje no Brasil,; o que é extremamente sectário e não ajuda em nada a mobilização de setores da vanguarda e das massas que estão em processo de ruptura com o governo.

Depois incorrem – o que é frequente em sua concepção – em maximalismo quando repetem, pura e simplesmente, o programa socialista revolucionário sem a menor mediação com a realidade. É certo que nosso programa é o da revolução socialista e que todas as medidas que apontamos têm, que partir da realidade, de levar a medidas anticapitalistas e socialistas. Porém, agitar um programa socialista sem nenhuma mediação com a correlação de forças e as tarefas do presente é um erro de método além de cálculo.

Para não cair nesse maximalismo atroz que desconsidera todas as mediações da realidade, precisamos compreender que estamos em meio a uma polarização entre governo burguês de conciliação e o ultrarreacionarismo. O nosso campo político da independência de classes para construir com a mobilização e crescer precisa dar conta do conjunto de tarefas (democráticas, econômicas e de transição) que a realidade brasileira impõe. Como exemplos, não podemos deixar de listar a prisão de Bolsonaro, a luta contra o pacote de cortes de Lula e o fim da escala 6×1, além de uma série de outras.

Sem dar conta das tarefas democráticas não teremos aderência à realidade e, muito menos, poderemos contribuir para mover setores mais amplos. Da mesma forma, sem compreender a realidade que demanda táticas de unidade de ação as dificuldades de diálogo, de organização e de mobilização ampliam-se. Afinal de contas, para derrotar o (neo)fascismo temos que fazer unidade até com a avó e o diabo.

Por outro lado, essa unidade de ação nas ruas e em outros espaços só será producente se mantivermos totalmente a nossa independência política dos governos, patrões e burocratas. Mas os companheiros desconsideram totalmente o papel da unidade de ação diante de um cenário em que, em que pese que vivemos a abertura de uma conjuntura mais favorável, precisa ainda avançar muito para reverter a correlação de forças desfavorável para a classe trabalhadora e para os oprimidos.

Formulam que é preciso construir uma alternativa socialista ao PT e seus governos de forma totalmente autoproclamatória, desconsiderando que a esquerda socialista no Brasil passou e passa por um profundo processo de fragmentação. Não existe nenhum partido ou corrente do nosso campo que tenha condições de hegemonizar os demais, e isso não resolve com ações hegemonistas como a direção do PSTU costuma desenvolver.

Ao mesmo tempo que destrói um embrião de frente de esquerda, como foi o caso do Polo Socialista e Revolucionário, falam que é necessário construir uma alternativa revolucionária; mas fazem isso sem apresentar nenhuma tática concreta para aglutinar os demais setores. Essa linha não passa de uma manobra de propaganda autoproclamatória da sua própria organização que não contribui em nada para aglutinar a esquerda revolucionária.

Já os companheiros do MRT apresentam, na nota Preparar a nossa classe para enfrentar o novo ajuste fiscal de Lula e Haddad que seguirá fortalecendo a direita e a extrema direita[19] , uma análise das eleições que na verdade é um balanço pura e simplesmente autoproclamatório de construção que foge totalmente do balanço das eleições e de sua política nesse processo.

Durante as eleições municipais deste ano, mais uma vez apresentaram a linha que foi popularizada na vanguarda como “voto nulo envergonhado”, pois, simplesmente, não apresentaram uma posição eleitoral durante todo o processo. Em seu balanço, afirmam que “não há mais tempo para perder com o discurso do ‘mal menor’”. Ao menos essa abordagem é coerente com a linha ultraesquerdista levada por essa organização durante as eleições.

O argumento apresentado para justificar o voto nulo envergonhado é apenas aparentemente radical. É senso comum na esquerda socialista que as eleições não são nosso campo e que elas devem ser um espaço de apresentação das saídas socialistas para a realidade. Porém, não deixa também de ser senso comum entre nós que ela deve ser utilizada para dar batalhas políticas que respondam à realidade concreta.

No primeiro turno das eleições, o correto, em vista de se apostar em uma saída socialista, era chamar o voto nas candidaturas independentes. Mas, no segundo turno, diante da possibilidade da vitória da extrema direita em São Paulo e em outras cidades, colocar-se pelo voto nulo é um desastre político.

E não se trata de perder tempo com a discussão de um “mal menor”, como falam, para não encarar o debate da sua tática eleitoral. A posição de voto nulo puro e simples no segundo turno em um cenário de avanço da extrema direita, de aberto riscos aos direitos democráticos com o avanço da extrema direita, é abstencionismo profundamente descomprometido com os destinos da classe trabalhadora e dos oprimidos. Além disso, nenhuma dessas duas organizações (PSTU e MRT), nem falar das correntes neo reformistas do PSOL, apresentaram uma linha que tenha sido capaz de fazer uma ponte entre a luta direta e a tática eleitoral. Como já apontamos, essa postura é típica da corrente possibilista (reformista).

O descolamento entre a luta direta e o voto tão característica do PT e do lulismo tem se expandido para a ampla maioria das correntes do PSOL, marcando também a posição de setores da esquerda independente. Assim, ambas organizações da esquerda socialista, durante o processo eleitoral no primeiro e segundo turno não foram capazes de ligar a tática eleitoral com qualquer conexão com as demandas mais sentidas ou mesmo fazer propostas de mobilização que conectasse voto e luta direta no primeiro ou segundo turno.[20]

Da mesma forma que a esquerda da ordem, estes setores não levantaram que, além de votar nas candidaturas majoritárias, era necessário que as campanhas fossem para as ruas de forma unificada dialogar com os entregadores por aplicativo e com a campanha contra a escala 6×1, como exemplos. O que não contribuiu para politizar, organizar e mobilizar, mas sim apenas para manter o isolamento da esquerda independente em relação a setores mais amplos das massas.

Conjuntura exige unidade de ação

Desde o fim das eleições, tivemos momentos políticos diversos sobre os quais é importante fazer um breve recorrido para podermos entender qual é a atual correlação de forças e quais são os desafios que se apresentam.

O ultrarreacionalismo saiu extremamente vitorioso das eleições, mas logo após uma onda de mobilização em todo o país se levantou uma greve contra a escala 6×1 sendo parcialmente vitoriosa. Esse elemento de ascenso, ainda que limitado, combina-se com a publicação do relatório da PF que faz avançar o processamento de Bolsonaro ao âmbito da PGR e reacende a perspectiva de prisão do neofascista. Porém, mesmo no decorrer dessa conjuntura um pouco mais favorável, o ultrarreacionárismo faz avançar no Congresso o projeto que criminaliza o aborto em qualquer circunstância e o governo Lula, para manter a governabilidade burguesa, apresenta o pacote de medidas que modifica a forma de reajuste do salário-mínimo e que terá consequencia direta também sobre o acesso a outros benefícios sociais.

Em que pese que o novo teto de gastos e a reforma tributária são medidas neoliberais, esse pacote de cortes é a primeira medida de ataque direto de Lula 3 aos direitos dos trabalhadores; medida que pode ter importante impacto na experiência de setores mais amplos com Lula, reflexos na popularidade e na dinâmica política no próximo ano.

Só podemos entender esses e outros ataques em meio a uma conjuntura mais favorável para os trabalhadores – e para o governo – a partir da leitura da situação política mais de fundo. Pois, ainda que podemos estar em meio uma nova conjuntura, temos uma situação de fundo claramente adversa desde a ofensiva reacionária de 2014/2016.

Essa situação política mais estrutural conta com um novo equilíbrio entre os poderes da República que desconfigurou totalmente o velho presidencialismo de coalizão inaugurado com o fim da ditadura militar. Nesse novo jogo de poder, temos uma hipertrofia do Poder Legislativo, que é hegemonizado pelo ultrarreacionarismo, perante os demais poderes da República por meio de mecanismos que garantem poder de veto aos projetos do executivo e a tomada de parte significativa do orçamento federal através das emendas orçamentárias secretas e impositivas.

O Poder Executivo, que tem um governo de conciliação de classes à sua frente, prefere sempre ceder ao ultrarreacionarismo do que esboçar qualquer iniciativa de mobilização das massas para manter a política nos estreitos limites da governabilidade burguesa, algo típico dessa formação política. Esse comportamento acaba de se repetir. Após o judiciário congelar tais emendas até que se garanta o mínimo de transparência e rastreabilidade, a chantagem do legislativo de que só votaria nos pacotes e o orçamento federal do próximo ano depois de liberadas as emendas fez o governo baixar uma portaria para burlar a decisão judicial.

O Poder Judiciário, de forma bonapartista e reacionária, pretende-se o poder garantidor do “Estado Democrático de Direito”, mas a ofensiva ultrarreacionária avança progressivamente. Esse novo equilíbrio de forças coloca uma nova forma de presidencialismo em que o Poder Legislativo, além das suas atribuições constitucionais, está sequestrando parte importante das atribuições dos demais poderes – inclusive do judiciário – em uma espécie de presidencialismo híbrido, o que se torna extremamente perigoso pela sua composição política ultrarreacionária.

Então temos que colocar esse enquadramento político situacional sobreposto à mini-conjuntura de lutas que se abriu no último mês para que possamos ter uma análise concreta da realidade. Certamente, o reaquecimento lento das lutas diante de uma situação com fortes elementos reacionários ainda não foi capaz de mudar a correlação de forças desfavorável que foi aberta desde 2014/2016. Por isso, apesar de uma conjuntura mais favorável, barrar os ataques do congresso, do governo ou do judiciário que estamos enfrentando (os projetos contra os direitos reprodutivos das mulheres, os cortes de gastos e o marco temporal) e avançar na luta pela prisão de Bolsonaro e todos os golpistas e pelo fim da escala 6×1 só será possível com um processo de mobilização direta das massas nas ruas muito mais avançado do que estamos observando até agora.

Para finalizar, a posição do PSTU e do MRT em não dar o devido peso aos atos de unidade de ação pela prisão de Bolsonaro, como ocorreu no último dia 10, é uma posição sectária e inconsequente. Em que pese que estes atos estão sendo convocados pelas frentes de massas dirigidas pelo lulismo e que não coloquem na pauta a luta contra os cortes do governo, a unidade de ação pela prisão de Bolsonaro é uma tarefa central que se for imposta pela mobilização poderia colocar outra situação politica nacional, ou seja, uma correlação de forças muito mais favorável. Assim, a participação nos atos dirigidos pela direção conciliatória do lulismo tem que ser realizada a partir de colunas, bandeiras, panfletos e falas totalmente próprias e independentes em que a luta contra os ataques do governo Lula3 também esteja estampada da mesma maneira que a luta pela prisão de Bolsonaro e pelo fim da escala 6×1.

________________
[1] São partidos como PT, PSOL e PCdoB que tiveram origens distintas chegaram a reivindicar o socialismo, mas abandonaram essa perspectiva e se dedicam a administrar a exploração e dominação capitalista.
[2] Por partido que consideramos de direita ou extrema direita temos PSD, União Brasil, MDB e PP, PL e Republicanos elegeram.
[3] Em que pese que as apostas pessoais de Bolsonaro em vários estados não tenham saído vitoriosas, os candidatos que o neofascista apoiou saem como figuras regionais com chances eleitorais para 2026.
[4] Esse foi um crescimento medíocre se considerarmos que o PT é o partido do presidente da República e que chegou a ter 635 cidades antes da ofensiva reacionária de 2015. Porém, em relação ao conjunto da esquerda da ordem, o PT se fortalece.
[5] Como foi previsto por vários analistas, as emendas do Congresso – particularmente as chamadas PIX – tiveram grande impacto nas eleições, um estudo de 112 municípios que receberam emendas PIX demonstrou que a taxa de reeleição foi de 93,7%, nominalmente em 112 municípios. Sobre o papel das emendas parlamentares no resultado das eleições leia https://esquerdaweb.com/conciliacao-de-classes-favorece-a-contraofensiva-bolsonarista/
[6] O PL foi o partido que obteve o maior número de coligações nas prefeituras de capitais, além de fazer 4 prefeitos, o partido de Bolsonaro fez 5 vice-prefeitos (3 com o MDB e 2 com o PSD). Assim, a retomada da ofensiva reacionária, a depender dos desdobramentos da investigação contra o golpismo, indica uma possibilidade de conformação de um novo bloco de poder entre o Centrão e a extrema direita, o que, aliás, já começou a ser ensaiado nas coligações municipais.
[7] Dados em https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/diferenca-de-cerca-de-55-mil-votos-deixa-pablo-marcal-fora-do-segundo-turno/
[8] Se esse cenário tivesse sido efetivado, seria a primeira vez desde a redemocratização que o segundo turno na cidade não contaria com uma candidatura ligada à esquerda.
[9] Esse foi um caso em que a essência se encontrou com a melhor aparência em sua melhor forma, e foi justamente isso o que lhe permitiu rachar o voto bolsonarista no primeiro turno das eleições. Existem especulações no sentido de que se não tivesse sido a divulgação do atestado médico falso para acusar Boulos de usuário de cocaína Marçal poderia ter ido ao segundo turno com Nunes, mas isso é uma hipótese que não se pode confirmar.
[10] A taxa de abstenção na cidade bate mais um recorde e vai à 31,54% dos eleitores; o que é um elemento que junto com a composição precária da classe trabalhadora em São Paulo, bem como no Brasil como um todo, dá azo para reflexões sobre as potencialidades políticas que foram perdidas pela esquerda, tema que vamos discutir um pouco mais abaixo.
[11] Dados em https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2024/10/27/boulos-perde-segunda-eleicao-seguida-com-campanha-mais-cara-e-alta-rejeicao.htm
[12] Como exemplos podemos falar da proposta de dobrar o efetivo da guarda municipal e de dar isenção de imposto para empresas se instalarem na periferia, ou seja, um programa repressor e neoliberal. Quando Boulos tenta avançar conquistar votos dos setores mais precarizados aparece com a proposta de liberar propaganda no vidro de trás dos veículos, acabar com rodízio e criar postos de atendimento. Ou seja, em vez de pegar as bandeiras dos entregadores e motoristas – aumento das tarifas e direitos trabalhistas – a proposta para que os trabalhadores de aplicativo é que sejam ainda mais explorados. No segundo turno, depois do apagão, enquanto Nunes se esquivava da responsabilidade exigindo que Lula rompesse o contrato com a ENEL, Boulos limita-se a responsabilizar Nunes por não ter feito a poda das árvores, não utiliza o episódio para denunciar o conjunto das privatizações e propor o fim do contrato com essa empresa.
[13] O possibilismo é um conceito que marca uma das principais características do reformismo, lutar apenas por bandeiras que o regime e o sistema burguês possam conceder. No ano de 1881, a Federação dos Trabalhadores Socialistas na França sofre uma derrota eleitoral, o que leva à formação de uma corrente minoritária marxista e outra antimarxista que foi denominada possibilistas a partir de uma publicação em seu jornal, Le Proletaire, que afirmava que “apresentar, de algum modo, de imediato, algumas de nossas reivindicações para torná-las finalmente possíveis” (negrito nosso). Essa corrente possibilista está nas origens históricas do reformismo no interior da esquerda e do movimento operário que posteriormente foi desenvolvido pelos revisionistas alemães e pelo menchevismo russo.
[14] Na lógica do reformismo social democrata a luta direta é separada da tática eleitoral, com isso a luta direita passa por um processo de rebaixamento político – o economicismo.
[15] No geral, as correntes do PSOL afirmam que nenhuma tática alteraria o resultado das eleições pois viveríamos uma situação defensiva em que as táticas não seriam capazes de alterar a correlação de forças desfavorável, o giro à direita de amplos setores de massas e a popularidade do governo Lula3.
[16] Leia em https://esquerdaonline.com.br/2024/11/05/cinco-polemicas-sobre-a-derrota-da-esquerda/
[17] Leia em https://movimentorevista.com.br/2024/10/a-necessidade-da-esquerda-dizer-seu-nome/
[18] Leia em https://www.opiniaosocialista.com.br/diante-de-uma-esquerda-da-ordem-e-contra-a-ultradireita-construir-uma-oposicao-de-esquerda-revolucionaria-e-socialista/
[19] Leia em https://www.esquerdadiario.com.br/Preparar-a-nossa-classe-para-enfrentar-o-novo-ajuste-fiscal-de-Lula-e-Haddad-que-seguira
[20] Isso é ainda mais grave no PSTU que é a corrente majoritária da CSP-Conlutas, uma central minoritária mas que dirige algumas organizações de massas.

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