Notas sobre a teoria da revolução permanente no início do século XXI *
Primeira Parte
Crítica à concepção das revoluções “socialistas objetivas”[1]
ROBERTO SÁENZ
“As revoluções burguesas, como as do século XVIII, progridem esmagadoramente de sucesso em sucesso, seus efeitos dramáticos se atropelam, os homens e as coisas parecem iluminados por fogos de artifício, o êxtase é o espírito de cada dia; mas essas revoluções são de curta duração, atingem seu apogeu rapidamente e uma longa depressão toma conta da sociedade, antes de aprenderem a assimilar com serenidade os resultados de seu período impetuoso e agressivo. Ao contrário disso, as revoluções proletárias como as do século XIX, criticam-se constantemente, interrompem-se continuamente em seu próprio curso, voltam sobre o que parecia acabado para começar de novo desde o início, escarnecem de forma conscienciosa e cruel das indecisões, das fraquezas e mesquinhez de suas primeiras tentativas, parece que somente derrubam seu adversário para que este tire novas forças de terra e voltem a levantar-se mais gigantesco ante elas, recuam constantemente aterradas ante a vaga imensidão de seus próprios objetivos, até que seja criada uma situação que não permita voltar atrás e as próprias circunstâncias gritem: “Aqui está Rhodes, salta aqui“.[2]
O lançamento do marxismo revolucionário em face do século XXI deve necessariamente repassar de maneira crítica a trajetória anterior da luta do proletariado.[3] Portanto, estas notas procuram fornecer elementos de equilíbrio e contexto para ajudar a iniciar esta empresa, com base nas lições da experiência da luta de classes do século XX.
Buscamos traçar uma cartografia dos problemas e posições centrais que marcaram o marxismo revolucionário, principalmente na segunda metade do século passado, bem como estabelecer elementos de delimitação relativos a essa rica experiência, atravessada por expressões e desvios tanto cruamente oportunistas como sectários.
Faremos isso polemizando com as diferentes visões e interpretações das principais correntes do movimento trotskista do período, enfocando, acima de tudo, aspectos de equilíbrio e lições teóricas e estratégicas, e não tanto sobre seu desempenho político em sentido estrito.
Essa tarefa, nada simples, geralmente, é empreendida de um modo puramente historicista e perdendo de vista o único ângulo metodológico correto: o apontado por Marx quando disse que, em suma, “a chave da anatomia do macaco lha dava o homem“. Ou, como disse o grande historiador Immanuel Wallerstein, “só se pode narrar o passado como é, não como era. Já que rememorar o passado é um ato social do presente feito pelos homens do presente e que afeta o sistema social do presente. A “verdade” muda porque a sociedade muda. Num dado momento nada é sucessivo, tudo é contemporâneo, mesmo aquilo que já passou”.[4]
Nessas condições, o marxismo revolucionário implica a cada passo uma combinação particular de elementos clássicos e renovadores, mas no momento do balanço nunca se pode esquecer que é um fato material, como assinalou Marx, que “os homens fazem a sua própria história, mas eles não a fazem a seu próprio critério, sob circunstâncias escolhidas por eles mesmos, mas sob as circunstâncias com as quais se encontram diretamente, que existem e transmitem o passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos“. O peso desse fator torna mais árduo o balanço da experiência passada.
Em suma, o que está em jogo neste debate e ao que queremos contribuir é a própria teoria da evolução, voltada para o século XXI, dando conta da dinâmica de classes das revoluções da segunda pós-guerra e dos Estados aos quais eles deram origem
Os pontos em discussão
Queremos partir estabelecendo as principais conclusões teórico-programáticas dessas obras, a fim de facilitar a jornada do leitor:
a) Que é um elemento constitutivo essencial da tradição do socialismo revolucionário que, no que diz respeito à revolução socialista, não há substituição de classe válida: é uma revolução da própria classe trabalhadora, através de suas organizações de luta, consciência e partidos.
b) Que as revoluções do pós-guerra, na ausência da classe trabalhadora como tal, de sua consciência socialista, organismos e partidos, constituíram revoluções nacional-democratas, antiimperialistas e anticapitalistas, mas não operárias ou socialistas.
c) Que as sociedades não capitalistas às quais elas deram origem não chegaram, portanto, a constituir estados operários ou sociedades de transição ao soci alismo, na medida em que esta transição foi bloqueada desde o início pelo poder encarnado pelas camadas pequeno burguesas burocráticas stalinistas, que não constituíram verdadeiras ditaduras proletárias.
d) Que, no entanto, esta circunstância deve ser analisada do ponto de vista da base material da Teoria da Revolução Permanente, que parte do princípio de tomar como unidade e totalidade (o que não é uniformidade abstrata) a economia mundial. Essa abordagem teórica e metodológica tendia a ser deixada de lado tanto nas correntes “antidefensistas” (que se recusavam a defender a URSS) quanto nas do “trotskismo tradicional”, pelo menos na maioria de suas variantes. Ambos os pontos de vista, em última análise, perderam de vista o império – ainda distorcido – da lei do valor, bem como a continuidade do trabalho assalariado nas sociedades não-capitalistas (e na URSS, quando ainda era um estado operário).
e) Que no segundo período do pós-guerra, a maioria das correntes do movimento trotskista viu-se, de uma forma ou de outra, sujeitas a uma distorção teórica, política e programática resultante das circunstâncias específicas [5] do período pós-guerra, como o boom econômico capitalista-imperialista, os pactos de Yalta e Potsdam, a resolução da hegemonia imperialista em torno dos Estados Unidos e o desenvolvimento mundial do aparato stalinista. Entre as correntes trotskistas, o chamado morenismo se distingue por manter uma posição em grande parte independente dos aparatos, o que, no entanto, não o impediu, em última instância, sob o peso acumulado de imensas inércias teórico-programáticas e de concepção, acabar explodindo. no início dos anos 90.
f) Que a toria-programa da revolução permanente, contribuição fundamental de Leon Trotsky para a tradição do marxismo revolucionário, no essencial, para além de determinadas unilateralidades, foi confirmado (pela negativa) no sentido da unidade da economia mundial (base material da Permanente) e do fato de que a transformação da revolução democrática em socialista, o consequente cumprimento das tarefas democráticas, a transformação socialista das relações sociais após a revolução e a revolução socialista internacional só podem ser incorporadas pela classe trabalhadora com seus organismos, consciência e partidos.
g) Que este aporte e contribuição de Trotsky, juntamente com as contribuições dos fundadores do marxismo, Marx e Engels, e as outras duas grandes espadas do marxismo revolucionário, Lenin e Rosa Luxemburgo, são a essência da tradição que afirmamos, que é imprescindível assumir de forma combinada frente ao necessário relançamento do marxismo revolucionário no século XXI.
h) Que esse conjunto de lições históricas, longe de negá-lo ou mitigá-lo, apenas reforça a necessidade essencial da construção do partido revolucionário. Porque é um fato de toda revolução o inevitável desenvolvimento desigual no nível de consciência e da organização dentro da classe trabalhadora. Da mesma forma, no início do século XXI, a evidente crise da subjetividade socialista e das alternativas ao capitalismo que ainda enfrentamos torna ainda mais necessária a ação organizada dos socialistas revolucionários.
i) Que estas conclusões pretendem ser uma contribuição para a constituição de Socialismo ou Barbárie como uma tendência atual ou internacional para uma nova síntese do marxismo revolucionário no século XXI, que luta para reabrir a perspectiva da revolução socialista e para construir partidos revolucionários socialistas. a classe trabalhadora.
j) Que, finalmente, esta elaboração implica uma demanda histórica da fundação da Quarta Internacional e da tradição do trotskismo e coloca a luta por uma nova Internacional revolucionária (ou por uma Quarta Internacional refundada) à luz do balanço da experiência das revoluções e do chamado “socialismo real”, procurando transformar essas duras derrotas em lições estratégicas para a classe trabalhadora mundial.
A tradição socialista revolucionária
No momento de voltar a desfraldar a bandeira do marxismo revolucionário em face de novos desafios, propõe-se colocar em correspondência a atual batalha com os revolucionários que nos precederam. Tanto para o propósito de estabelecer uma nova corrente internacional quanto na perspectiva maior de um reagrupamento revolucionário e a formação de uma nova Internacional revolucionária,[6] essa questão é fundamental.
Daí a relevância da questão, que tradição reivindicamos? Porque, como Antonio Labriola apontou, nunca é um “salto no vazio”, de entrar no movimento das modas passageiras,[7] mas de uma particular combinação , que recolhe o melhor da experiência acumulada e, ao mesmo tempo, longe de todo dogmatismo, tenta ressignificá-lo e atualizá-lo a partir dos novos desafios e desenvolvimentos que a luta de classes coloca.[8]
Em nosso caso, acreditamos que a melhor combinação dessa dupla exigência é reivindicar a enorme atualidade da autêntica tradição do marxismo revolucionário. Ou seja, nos consideramos parte de uma tradição maior e mais ampla do que a compressão reducionista usual das correntes “trotskistas”: as tradições combinadas de Marx e Engels; de Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo.
O que queremos dizer com a “tradição do marxismo revolucionário”? Nós não acreditamos que estamos errados quando apontamos que no centro de suas concepções está a compreensão da revolução socialista como um empreendimento da própria classe trabalhadora, como dissemos, através de sua consciência, organismos e partidos.
Em grande medida, a simples colocação que Marx caracterizou como a bandeira da Primeira Internacional: “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores“, muitas vezes é esquecida pelas correntes do trotskismo que se assumem hoje como “ortodoxas”.[9] Abordagem que estabelecia uma delimitação de “princípios” com respeito à tradição radical, mas ainda minoritária e pequeno-burguesa dos jacobinos na Revolução Francesa.
Isso historicamente levou a toda uma discussão sobre a tradição de origem do marxismo clássico.[10] Porque tanto Marx (em particular no que diz respeito aos jacobinos, como veremos mais adiante) quanto Lenin, ao reivindicar a tradição militante e combativa de correntes pequeno-burguesas como os populistas russos (em Que Fazer?), nunca perderam de vista que essa tradição se referia a setores não operários, “substitutistas” ou, se cabe, messiânicos, ao contrário do que caracteriza a revolução proletária como “revolução da imensa maioria, no interesse da imensa maioria“. Karl Korsch também recolheu essa delimitação, mas para passar, erroneamente, para posições anti-leninistas “normativas”, cujos mentores hoje são Holloway, Bonefeld e a corrente autonomista em geral.
Rosa Luxemburgo, que em muitos aspectos expressou uma continuidade direta – o que nem sempre significa em sintonia com as circunstâncias de tempo e lugar – com o pensamento de Marx, disse sobre a revolução proletária: “Em todas as lutas de classes do passado, levadas adiante no interesse das minorias, e no qual, para usar as palavras de Marx, “todos os acontecimentos ocorreram em oposição às grandes massas do povo”, uma das condições essenciais da ação foi a ignorância dessas massas. em relação aos objetivos reais da luta, seu conteúdo material e seus limites. Essa discrepância era, de fato, a base histórica específica do “papel de liderança” da burguesia “iluminista”, correspondente ao papel das massas como seguidores dóceis. (…) A luta de classes do proletariado é “a mais profunda” de todas as ações históricas até hoje; abrange o conjunto de todas as camadas do povo e, a partir do momento em que a sociedade torna-se divida em classes, é o primeiro movimento de acordo com o real interesse das massas. Isso ocorre porque a elevação das massas em relação às suas tarefas e métodos é uma condição histórica indispensável para a ação socialista, assim como em períodos anteriores a ignorância das massas era a condição para a ação das classes dominantes“.[11]
Ou seja, estabelece-se uma clara diferenciação entre a natureza e a mecânica da revolução burguesa e a da revolução proletária, que no pós-guerra muitas correntes, sob a pressão de eventos originais, acabaram perdendo de vista.
Ao mesmo tempo, a má experiência do século XX deu origem ao atual surgimento de correntes que postulam uma compreensão simplista da classe como um “em si”, uma “totalidade” que poderia se autodeterminar sem vanguardas, sem partido, espontaneamente.[12]
Pensamos o contrário: a luta de tendências políticas, a construção de partidos e organizações da classe trabalhadora, a luta de programas e concepções – em particular, sobre os caminhos e condições para a luta pela destruição do Estado burguês e a tomada do poder pelos trabalhadores – são conaturais à luta de classes operária e revolucionária. E, portanto, sem elas não há um verdadeiro processo de autodeterminação dos trabalhadores. É mais: fazem o conteúdo intangível da democracia proletária e são ainda mais decisivas (se se quer) nas condições do início do século XXI marcadas por uma evidente crise de subjetividade dos trabalhadores e da alternativa socialista.
Isso é o que se vive hoje no processo argentino, assim como na Bolívia depois da rebelião de outubro e no movimento anticapitalista na Europa, processos todavia “híbridos” do ponto de vista social e carentes da verdadeira radicalização política e socialista
Porque a luta do marxismo revolucionário sempre consistiu em uma luta em duas frentes, tanto contra as tendências burocráticas, substitutivas e oportunistas do movimento operário, como contra as espontaneístas, economicistas e anarquistas/autonomistas, falsamente “esquerdistas”.
De modo geral, consideramos parte da tradição defendemos o melhor da experiência militante do marxismo que encarna o projeto – comprometendo nisso sua vida inteira – da união entre a teoria e a prática e o compromisso ativista dentro da classe trabalhadora, de suas lutas e vicissitudes históricas. É por isso que a nossa posição metodológica e histórica parte de assumir que a nossa tradição e herança abrangem globalmente as melhores expressões deste marxismo militante: Marx, Engels, Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo,[13], bem como as realizações e pontos altos da I, II, III (nos seus quatro primeiros congressos) e IV Internacional. Naturalmente, cada um incorporou um momento histórico particular e deixou lições específicas. Nesse sentido, Trotski foi a última e uma das maiores espadas de toda essa tradição. No entanto, sua contemporaneidade com Lênin e Rosa Luxemburgo e as lições combinadas deixadas pelos três é algo que o movimento trotskista, especialmente o latino-americano, frequentemente rejeita. Lições combinadas, dizemos, porque Trotsky incorpora o grande estrategista da revolução proletária, enquanto que Lênin é insuperável na hora da política revolucionária e da construção do partido, Rosa contribui com a marca estritamente socialista da luta do proletariado. E esse corpo integral, em geral, não foi tratado como tal no movimento trotskista.
As correntes trotskistas do pós-guerra
Essa mesma posição implica, evidentemente, uma crítica da abordagem do marxismo revolucionário à nossa própria corrente histórica de origem, o morenismo,[14] bem como à maioria das correntes que se inscreveram e inscrevem no trotskismo “tradicional”. Correntes que, sob o colete de força do stalinismo, tenderam a perder o conteúdo socialista revolucionário de luta pela autodeterminação socialista dos trabalhadores. [15]
No período pós-guerra, o movimento trotskista foi marcado por inúmeras manifestações. Nos artigos que estamos apresentando, revisaremos criticamente as mais significativas. Ao mesmo tempo, estes trabalhos procuram estabelecer uma demarcação clara e crítica dessas correntes que hoje, 15 anos após a queda do Muro de Berlim e da antiga União Soviética, seguem sem tirar uma só conclusão de fundo sobre a experiência histórica dos “Estados operários” no século XX. Esta atitude é muito característica do trotskismo latinoamericano, tanto dos partidos e correntes que vieram do tronco do morenismo (PSTU brasileiro, MST e PTS da Argentina) como o argentino PO, cujo líder histórico é Jorge Altamira. Não pretendemos aqui fazer uma “profissão de fé” de definições que hoje tem um valor principalmente histórico, mas chamar a atenção para as lições programáticas e políticas da imensa e frustrada experiência histórica da classe trabalhadora do século XX para o relançamento da luta de classes socialista no século XXI.
Ao mesmo tempo, devem ser identificadas, com mais força ainda, as características oportunistas, centristas e/ou capituladoras de correntes basicamente europeias, como a SU (cujos partidos mais fortes são o francês LCR e a Democracia Socialista no Brasil), que seguem sendo uma escola de adaptação teórica e política às modas intelectuais e aos aparatos burocráticos de turno, e que deram um salto com a participação de um de seus dirigentes, Miguel Rossetto, no governo burguês de Lula.[16]
Não se trata de considerar todos, de maneira ahistórica, como “centristas” ou capituladores. Do ponto de vista histórico, já deixamos claro que o morenismo era uma das expressões mais progressivas, com um curso político geral independente dos aparatos. Mas é indiscutível que o próprio morenismo acabou explodindo sob o peso acumulado de enormes problemas e inércias teórico-programáticas que não passaram no teste e que, em sentido estrito, é um feito que essa corrente como tal deixou de existir. Por outro lado, é fato que existem aspectos e elementos valiosos de continuidade da tradição socialista revolucionária em outras correntes do pós-guerra.
Em última análise, o lançamento do socialismo revolucionário como uma alternativa para o século XXI nos força a colocar-se criticamente acerca do conjunto de correntes e tradições que marcaram o movimento trotskista na segunda metade do século XX, incluindo nossa própria corrente histórica de origem.
Nesse contexto, é uma obrigação deixar estabelecido elementos de um balanço do caminho ou trajetória anterior do movimento trotskista, sempre tendo em mente o caráter de notas ou de “cartografia” dos problemas que esses textos têm.
As revoluções da segunda pós-guerra: nem operárias nem socialistas
“É insuficientemente apreciado que, desde cedo, Marx e Engels geralmente estabeleceram seu objetivo político não em termos de mudança desejável no sistema social (socialismo), mas em termos de mudança no poder de classe (domínio proletário). Os dois não podem ser considerados sinônimos. O objetivo da dominação proletária, com certeza, é comumente assumido como socialismo ou comunismo, como a forma social correspondente. Mas, pelo contrário, isso não se dá automaticamente. Marx e Engels tomaram como principal objetivo não a aspiração a um certo tipo de sociedade futura, mas a posição de uma classe social como representante dos interesses da humanidade; não uma ideologia abstrata de mudança (idéias socialistas), mas uma condicionada perspectiva de classe, que eles chamavam de ponto de vista proletário“.[17]
Do ponto de vista teórico, duas questões se combinam: a análise crítica das revoluções do pós-guerra e sua evolução, por um lado; de outro, a análise crítica daquelas sociedades em que o capitalismo foi expropriado, a única maneira de tornar “substancial” a teoria da revolução permanente frente ao século XXI. É claro que temos a vantagem de um olhar retrospectivo para a partir da experiência viva da luta de classes buscar lições estratégicas para o século XXI.[18]
Estas lições estratégicas indicam que formações sociais instáveis que surgiram como um subproduto de revoluções democráticas, anti-imperialistas e anti-capitalistas do pós-guerra só podiam ser momentos transitórios, passível de serem reabsorvidas em última instância pelo capitalismo mundial, na medida em que não deram lugar a revoluções verdadeiramente operárias e socialistas. Muito menos a Estados operários ou sociedades efetivamente em transição para o socialismo numa perspectiva de revolução mundial, o que explica seu atual e completo desaparecimento. [19]
Pelo contrário, representaram revoluções encabeçadas por direções pequeno-burgueses e/ou burocrática,s necessária e historicamente instáveis e não-assimiláveis – mediante esquemas mecânicos e/ou sociológicos- a revoluções que só poderiam ser “operárias ou burguesas”.[20] O próprio Trotsky, em A Revolução Permanente, levanta um elemento da abordagem metodológica que parece contraditório a outros aspectos mais deterministas de sua elaboração: “Em 1906, Lênin a conhecer o artigo de Kautsky sobre as forças motrizes da revolução russa, acompanhando-o de um prefácio seu (…) Tanto Lênin como eu expressamos uma completa solidariedade com a análise de Kautsky. À pergunta de Plekhanov se nossa revolução era burguesa ou socialista, Kautsky respondeu no sentido de que ela não era já burguesa nem era ainda socialista, isto é, que representava uma forma transitória de uma para o outra. Lênin escreveu, a esse respeito, em seu prefácio: “por sua natureza, nossa revolução, é burguesa ou socialista? Esse é um modo rotineiro de colocar a questão (…) Não pode ser dito assim, não é a maneira marxista de colocá-lo. A revolução na Rússia não é burguesa, porque a burguesia não está entre as forças motrizes do atual movimento revolucionário russo. E a revolução russa não é tampouco socialista.” [21]
Voltando às revoluções do pós-guerra, esses eram processos específicos que, em um sentido geral, pareceram entrar na “excepcionalidade” que Trotsky apontara no Programa de Transição:
“É possível criar um governo de organizações operárias tradicionais? A experiência anterior nos mostra, como já dissemos, que isso é, no mínimo, altamente improvável. No entanto, não se pode negar categoricamente, antecipadamente, a possibilidade teórica de que, sob a influência de circunstâncias completamente excepcionais (guerra, derrota, crise financeira, pressão revolucionária das massas, etc.), os partidos pequeno-burgueses, incluindo aos stalinistas podem ir mais longe do que querem no caminho para romper com a burguesia. Em qualquer caso, uma coisa é certa: embora essa variante, extremamente improvável, tenha sido realizada em algum lugar, e o governo dos “operários” e camponeses, no sentido acima mencionado, fosse de fato estabelecido, representaria apenas um curto episódio o caminho para a verdadeira ditadura do proletariado “.[22]
Porque, em certo sentido, foi o que aconteceu no período do pós-guerra na China, na Iugoslávia, em Cuba e no Vietnã, assim como nos países dos chamados Glacis (embora, neste caso, sem revolução, senão completamente “por cima”). Trotsky, que tinha em mente o critério metodológico mais algébrico e menos sociológico de Lenin, deixou aberta essa possibilidade teórica, que parecia ser, finalmente, a norma das revoluções triunfantes no período do pós-guerra.[23]
Mas o grande problema que a grande maioria do trotskismo não considerou residia em que não representaram “meramente um curto episódio no caminho para a ditadura real do proletariado”, mas o congelamento, desvio e impossibilidade de desenvolvimento da revolução como uma revolução socialista se tornou permanente. Por isso, resultaram ser revoluções abortadas desde o ponto de vista operário e socialista, não consumando verdadeiras ditaduras do proletariado e nem conseguiram abrir um verdadeiro processo de transição para o socialismo, na ausência total e completa da classe trabalhadora no centro do processo e da tendência a dissolução do Estado e do trabalho assalariado.[24] Porque se não sobreviesse “a verdadeira ditadura do proletariado”, a previsão feita por Trotsky mudava globalmente. Daí o caráter específico do processo das revoluções do pós-guerra, que nunca foi realmente explicado pelo movimento trotskista.
Porque, em suma, esses eram processos que foram mais além (direções burocráticas pequeno-burguesas e de base camponesa, ou das classes médias e da intelectualidade urbana) em um caminho de ruptura com a burguesia sob condições particulares, mas que não alcançaram tornar-se Estados operários, configurando um modo de apropriação e formações sociais bastardas que acabaram voltando ao capitalismo. Isto é, a “excepcionalidade” foi resolvida de uma maneira específica, que não chegaram a compreender as correntes do trotskismo “tradicional” no período pós-guerra. Isso e não outra é a conclusão que mostra a experiência histórica.
Do ponto de vista teórico, esses processos mostraram um alcance histórico dessas classes e camadas pequeno-burguesas maior do que o que era previsto pela hipótese mais provável da teoria da revolução permanente de Trotsky e pelo curso histórico anterior. Ou seja, mostraram um papel relativamente independente mais amplo do que o previsto pela teoria como uma síntese da experiência anterior, onde a pequena burguesia radicalizada foi o instrumento da burguesia na Revolução Francesa de 1789, ou pura impotência nas revoluções de 1830 e 1848, quando a burguesia já não se propunha a desempenhar suas tarefas de maneira revolucionária.
Esta conclusão não leva a romper o quadro teórico do marxismo, mas a enriquecê-lo a partir de novos desenvolvimentos históricos certamente inesperados e muito complexos, preservando por outro lado coordenadas teóricas básicas, como a clássica concepção marxista de que as classes historicamente orgânicas são a burguesia e o proletariado Porque as camadas ou classes pequeno-burguesas a que estamos nos referindo não conseguiram configurar um papel historicamente dirigente, nem conseguiram estabelecer uma sociedade “à sua própria imagem e semelhança“, mas as formações sociais a que deram origem foram tributárias, em última análise , do capitalismo mundial, e absorvido por ele em poucas décadas.
Surgiu assim, de maneira não orgânica e transitória, um “terceiro ator” montado no congelamento das dinâmicas permanentes da revolução para dar sua marca a estas sociedades por algumas décadas: essas camadas burguesas e pequeno-burguesas que não se tornam classe no sentido histórico-orgânico do termo, mas que constituíram, como o próprio Trotski disse, “mais que uma mera burocracia, mas menos que uma classe orgânica“.
O centro do problema é que em nenhum caso se efetivou realmente a passagem da revolução democrática para a socialista, fundo histórico e núcleo da teoria da revolução permanente, que coloca como condição para que isso aconteça que a classe trabalhadora hegemonize o processo como sujeito consciente. Da mesma forma, um processo de transição para o socialismo não foi realmente aberto. [25] Vejamos:
“(…) a chamada revolução de fevereiro, entendida como democrática, não é nossa revolução, assim como, tampouco o foram as revoluções anticapitalistas da segunda pós-guerra. Nossa intervenção nelas, em qualquer caso, parte do entendimento da teoria da revolução permanente, ou seja, do compromisso histórico com a sua transformação em verdadeiras revoluções socialistas (…) Trotsky disse que a revolução democrático-burguesa, ademais da conquista das liberdades democráticas, compreende duas tarefas fundamentais: a libertação nacional e a solução do problema agrário. Ambas as tarefas não resolvidas pela burguesia, especialmente em países atrasados só pode ser levada a cabo, consequentemente, pelo proletariado e sua liderança revolucionária (…) Se tomarmos o caso do México (nos anos 30), Bolívia ( na década de 50), Peru ou Chile (60 e 70), para citar alguns, nem a expropriação de empresas imperialistas e reforma agrária significaram a realização da revolução democrática burguesa no sentido da teoria da revolução permanente. O mesmo pode ser dito dos movimentos de libertação nacional, que travaram guerras revolucionárias reais contra a dominação colonial, mas que só alcançaram relativa independência e depois voltaram a ser países dependentes ou semicoloniais. Todos estes casos confirmam a validade da teoria da revolução permanente, precisamente porque demonstram a incapacidade histórico-orgânica da burguesia ‘nacional’ e também da pequena burguesia para completar a revolução democrático-burguesa”.
“Trotsky não nega a existência da revolução democrática burguesa ou democrática. O que ele diz é que ela só pode ser realizada consistentemente por um sujeito revolucionário: o proletariado e seu partido. A partir disso, integra-se em um processo permanente, que se combina com a revolução socialista, cujas tarefas fazem a transição para o socialismo”.
“Voltando a Moreno, ao afirmar que na época atual o que há são ‘dois tipos diferentes de revolução socialista’: a inconsciente, fevereiro ou dirigido por partidos reformistas; e a consciente, outubro, dirigido pelos partidos trotskistas (…) erroneamente assume que a revolução democrática burguesa ou democrática seria um certo tipo de revolução socialista. Com isso, a revolução democrática como tal desaparece, isto é, não é reconhecida como distinta da revolução socialista. Esse reconhecimento, no entanto, é essencial para a política revolucionária (…) por vê-los como um tipo de revolução socialista, não só incorre em um erro de reconhecimento, mas, de fato, nega o papel histórico do único sujeito político social capaz de garantir o trânsito da revolução democrática à revolução socialista (…) a verdade é que essa transformação nunca se materializou nas revoluções da segunda guerra Mundial (…) [e] embora possa ser dito que elas realizaram a sua maneira tarefas democráticas, em nenhum caso, marcou o início da revolução socialista (…) o resultado, além de executar determinadas tarefas democráticas e a expropriação da burguesia em si não significou, em qualquer caso, trânsito para a revolução socialista ou o início da transição para o socialismo, mas, como foi dito, a constituição de novos estados burocráticos.
“A partir desta constatação histórica, o eixo fundamental da teoria da Revolução Permanente, ou seja, o processo de transformação da revolução democrática burguesa na revolução socialista a partir da ação do sujeito social, o proletariado e do sujeito político, a partido comunista revolucionário (…) permanece essencialmente válido (…). A verdade é que durante o último meio século houve grandes revoluções democráticas, anti-imperialistas e anti-capitalistas, mas também que nenhuma dessas revoluções foi uma revolução socialista como tal “. [26]
Ao contrário das revoluções burguesas e de sua mecânica “objetiva”, a revolução socialista deve ser um processo consciente: isto é, uma revolução realmente incorporada pela classe trabalhadora e à qual é conatural a participação consciente e autodeterminada das mais amplas massas. O próprio Trotsky argumentou que “ao contrário do capitalismo, o socialismo não se constrói mecanicamente, mas conscientemente“. Essa é uma das maiores diferenças com a revolução burguesa, que podia se basear no automatismo do desenvolvimento econômico. Isto é, numa separação historicamente específica entre economia e política que não tinha sido característica de qualquer formação social histórica anterior e que nem é da transição socialista, onde ambas as instâncias se fundem.
De sua própria perspectiva, Trotsky disse muito ilustrativamente:
“Depois de uma profunda revolução democrática que liberta os camponeses da servidão e lhes dá terra, a contra-revolução feudal é geralmente impossível. A monarquia derrubada pode retomar o poder e cercar-se de fantasmas medievais. Mas já é impotente para restaurar a economia feudal. Uma vez libertadas dos freios feudais, as relações burguesas se desenvolvem automaticamente. Não há força externa que possa controlá-los; eles têm que cavar sua própria cova, tendo previamente criado seu próprio coveiro.
“O desenvolvimento das relações socialistas é muito diferente. A revolução proletária não só liberta as forças produtivas dos freios da propriedade privada; também as coloca à disposição direta do Estado que cria. Enquanto que após a revolução o Estado burguês se limita ao papel da polícia, deixando o mercado livre para suas próprias leis, o Estado operário assume um papel direto como economista e organizador. No primeiro caso, a substituição de um regime por outro não exerce mais que uma influência indireta e superficial sobre a economia de mercado. Pelo contrário, a substituição de um governo operário por um burguês ou pequeno-burguês levaria inevitavelmente à liquidação do início do planejamento e, consequentemente, à restauração da propriedade privada. Diferentemente do capitalismo, o socialismo não é construído mecanicamente, mas conscientemente. O avanço em direção ao socialismo é inseparável do poder estatal que o socialismo quer ou é forçado a desejá-lo. O socialismo só pode adquirir um caráter inabalável em um estágio muito avançado de desenvolvimento, quando suas forças produtivas em muito tenham superado as do capitalismo, quando se satisfaçam abundantemente as necessidades de cada indivíduo e de todos os homens e o Estado tenha desaparecido completamente, diluindo-se na sociedade “.[27]
Além disso, é evidente que Trotsky aqui se refere de fato à burocracia como “obrigada a desejar o socialismo”, o que, no final, não foi demonstrado assim, desde o ponto de vista teórico a abordagem retém toda a sua validade na medida em que, a transição do “reino da necessidade para o reino da liberdade” só pode ser um processo conscientemente assumido.
De outro ângulo, o historiador inglês Perry Anderson desenvolve essa mesma ideia em sua importante obra O Estado Absolutista:
“Todos os modos de produção das sociedades anteriores ao capitalismo extraem trabalho excedente dos produtores imediatos através de coerção extra-econômica. O capitalismo é o primeiro modo de produção da história em que os meios pelos quais se extrai o excedente do produtor direto são ‘puramente’ econômicos em sua forma: o contrato de trabalho, o intercâmbio igual entre agentes livres que reproduz, cada hora e cada dia, a desigualdade e a opressão. Todos os modos de produção anteriores operam através de sanções não-econômicas: de parentesco, consuetudinárias, religiosas, legais ou políticas. Em princípio, portanto, é sempre impossível interpretar essas sanções como algo separado das relações econômicas. As ‘superestruturas’ de parentesco, a religião, a família, o direito ou o Estado necessariamente entram na estrutura constitutiva do modo de produção das formações sociais pré-capitalistas. Todas elas intervem diretamente no nexo ‘interno’ de extração do excedente, enquanto que nas formações sociais capitalistas -as primeiras da história que separam a economia como uma ordem formalmente autossuficiente- fornecem as suas pré-condições ‘externas’. Consequentemente, os modos de produção pré-capitalistas não podem ser definidos exceto por suas superestruturas políticas, legais e ideológicas, pois elas são as que determinam o tipo de coerção extra-econômica que lhes é específica. As formas exatas de dependência jurídica, propriedade e soberania que caracterizam às formações sociais pré-capitalistas, longe de ser meros epifenômenos acessórios e contingentes, compõem, pelo contrário, as características fundamentais do modo de produção dominante dentro delas”.[28]
Em nossa opinião, este critério é igualmente aplicável à transição e serve para entender por que a democracia dos trabalhadores é conatural à transição socialista e à formação social transicional.[29] Ou seja, entram como um componente essencial das próprias relações de produção da transição: no caso da revolução socialista (como nas formações econômico-sociais anteriores ao capitalismo), não há, portanto, nenhum “automatismo” digno: a elevação das massas em relação às suas tarefas e métodos é uma condição histórica indispensável para a ação socialista.
Para entender isso, “talvez um primeiro problema a ser superado é a ideia -corrente na Quarta International- de que caracterizar a ditadura do proletariado por suas formas políticas constitui um erro do tipo ‘superestrutural’ (ou não-materialista) (… ). Quando Lênin definiu a política da ditadura do proletariado como ‘economia concentrada’ (…) quis dizer (…) que o essêncial da ditadura era a luta por novas relações de produção, e nisto não há uma gota de ‘superestructuralismo’ (…) ou seja, a classe operária organizada como classe dominante (…) se define por uma política de estado que ataca as relações burguesas de produção e luta por relações de produção socialistas ; por isso é a transição para a abolição das classes (…) Daí resulta que na ditadura proletariado, a política desempenha um papel diferente do que desempenha no capitalismo, onde as relações de produção se reproduzem ‘automaticamente ‘ A mesma expressão ‘ditadura do proletariado’ se refere não a uma relação particular de produção que lhe é específica, mas a ação política transformadora – nacional e Internacional- exercida através da violência organizada em Estado. Todo o peso está localizado no político, porque não há automatismo econômico que garanta a transição para o socialismo; se o controle político é perdido, o processo (…) se inverte e as condições para a restauração do capitalismo são criadas. A tese central da ditadura do proletariado poderíamos enunciar assim: não existe transição para o socialismo fora da aplicação consciente de um programa revolucionário (…) Esta tese (programática, em nossa opinião) está em linha com a teoria de Trotsky da revolução permanente, no sentido de que a transformação socialista se caracteriza por ser um processo essencialmente político“.[30].
Esta é a norma que Trotsky “transgrediu”, passando de uma fundamentação político-social do Estado Ooperário (final dos anos 20 e início dos 30) para uma econômica e social do meio dos anos 30.[31]
Mas isso trouxe uma complicação metodológica enorme para a teoria da revolução em Trotsky: suas duas principais elaborações teóricas e programáticas (a teoria da revolução permanente e a dos estados operários degenerados) terminam assentadas, de fato, em diferentes premissas. Isto poderia ser aceitável sob certas circunstâncias históricas bem determinadas (“não enterrar uma revolução ainda viva“[32]), mas introduzindo uma forte tensão – no limite não dialética, senão mecânica – entre os elementos de determinação objetivos e subjetivos acerca da dinâmica da revolução social. Assim, um tremendo fator de confusão teórica e metodológica foi criado no trotskismo pós-guerra; e seus efeitos se percebem ainda hoje, dando lugar ao fenômeno do “objetivismo” que perpassou a maioria do trotskismo na segunda metade do século XX.[33] Na medida em que a sua teoria da revolução estava fundada sobre os sujeitos políticos e sociais, enquanto a teoria do Estado operário degenerado se apoiava sobre uma determinação econômico-social “objetiva” (e não sobre a classe trabalhadora exercendo, de maneira efetiva, o poder político), se introduzia uma dualidade de princípios metodológicos de sérias consequências.[34].
Se deu lugar no movimento trotskista a um olhar objetivista, no sentido de conceber Estados operários como obtidos pelo milagre cristão da multiplicação dos pães, através de direções “empiricamente revolucionárias” e de uma burocracia stalinista “forçada pelo peso das circunstâncias para cumprir um papel revolucionário “… A partir desta visão foram tributários, cada um a seu modo, praticamente todos os ramos do tronco trotskista no período pós-guerra. Por outro lado, as diferentes variantes subjetivistas que apareceram em cena tampouco configuraram uma alternativa a esse desbarranque.
Somos então forçados a insistir em nossa crítica “(…) as versões puramente deterministas da história e especialmente as ilusões deterministas da marcha em direção ao comunismo. Parece claro para nós, nesta fase da experiência histórica, que a acumulação de “condições materiais” ou “objetivas” não é suficiente para avançar à emancipação social. Pelo contrário, o peso das determinações opera junto com possibilidades e ocasiões (nas quais há o acaso) e as decisões dos homens, e desse complexo jogo surge o devir histórico. Portanto, a transição para o socialismo e o comunismo não se desenvolverão em virtude de algum automatismo socioeconômico, mas por meio da luta de classes e da revolução“.[35]
Voltando à analogia com a Revolução Francesa, lembremos que os jacobinos cumpriram as tarefas revolucionárias da burguesia, mas o fizeram golpeando não só sobre o flanco direito, mas também sobre o esquerdo, levando para a guilhotina os verdadeiros líderes dos sans-coulottes e impedindo sua organização independente. Não por acaso, Cristian Rakovski apontou a este respeito: “O que desempenhou o papel mais grave no isolamento de Robespierre e do Clube dos Jacobinos, aquilo que os separa completamente das massas de trabalhadores e pequenos burgueses, é, para além da liquidação de todos os elementos da esquerda, começando com os enragés, os heberistas e chaumettists e a Comuna de Paris, em geral, é a eliminação gradual de todo princípio eletivo e sua substituição pelo de nomeações (…) todas essas medidas que resultaram no fortalecimento do poder da burocracia e matar da iniciativa popular. Assim, o regime de Robespierre, em vez de promover a atividade revolucionária das massas– já oprimidas pela crise econômica e, sobretudo, pela crise alimentícia – agravou o mal e facilitou o trabalho das forças anti-democráticas “. [36]
Se tivessem reconhecido esse critério elementar, certamente muitos dos líderes trotskistas do pós-guerra não teriam caído no seguidismo de burocratas como Tito, Mao, Ho Chi Mihn ou Castro. Sem essa “atividade revolucionária das massas”, a segunda metade do século XX mostrou que pode haver diferentes tipos de revoluções que até mesmo se encarregam e resolvem de maneira parcial e deformada tarefas democráticas e nacionais.[37] Mas estas revoluções de modo algum conseguiram adquirir uma verdadeira dinâmica de classe e socialista, na medida em que, insistimos, não era a classe trabalhadora que estava no centro, através de seus organismos de autodeterminação e poder, assim como tampouco estavam presentes o partido revolucionário e a luta de tendências entre diversas correntes trabalhadores e populares.
O caso da revolução chinesa de 1949
Vejamos um exemplo histórico: o caso da revolução chinesa, que adquire maior relevância em virtude das análises extraordinárias legadas por Leon Trotsky sobre esse processo.[38]
Uma primeira característica a destacar é o peso insignificante do Partido Comunista Chinês (PCC) nos setores de trabalhadores assalariados, uma vez que essa organização era praticamente inexistente nos centros industriais do país, todos em áreas controladas pelo Kuomintang (partido nacionalista).
Num trabalho relativamente recente sobre o assunto, diz-se: “A revolução chinesa que triunfou em 1º de outubro de 1949 foi uma revolução anti-imperialista e anti-burguesa, mas de modo algum uma revolução socialista. A política aventureira da Internacional Comunista (…) havia levado às derrotas catastróficas da segunda revolução chinesa – a revolução operária de 1926-7- (…). Dizimado pelas derrotas, o PC teve que escolher entre recuar com a classe trabalhadora nas cidades, como aconselhado por Trotsky e pela Oposição de Esquerda, ou se refugiar no campo, entre as organizações camponesas. A opção escolhida foi a segunda (…) [o] que traria junto a predominância que o campesinato estava tomando dentro do partido. A preocupação sobre a perda do caráter operário do partido se manifestou não só nos sectores da direção regional do partido e nos quadros ligados às fábricas – a que se chamou de “fração de trabalho real – mas também em setores importantes dentro do própria liderança do PCCH (…) O PCCH, que dizia representar o movimento operário, tornou-se assim um aparato político-militar enxertado no meio do campesinato: um partido-exército“[39]
Trotski já havia advertido brilhantemente sobre isso em seus escritos sobre a China. Em “La guerra campesina em China y el proletariado” (1932), ele levantou a preocupação de que a milícia camponesa e a guerra que se desenvolvia no campo (socialmente pequeno-burgueses) não podiam substituir a luta dos trabalhadores nas cidades, sob pena de acabar enfrentando essas milícias aos próprios trabalhadores:
“O movimento camponês criou seus próprios exércitos, tomou grandes territórios e instalou suas próprias instituições. Na possibilidade de maior sucesso – e todos nós, é claro, desejamos apaixonadamente esse sucesso – o movimento virá a vincular-se aos centros urbanos e industriais e, por isso, ficará frente a frente com a classe trabalhadora. Qual será a natureza desse encontro? É certo que o caráter dele será pacífico e amigável?[40]
Trotsky, como se vê, não questionou o apoio à guerra camponesa, mas a estratégia do PC de se construir entre os camponeses e não entre os trabalhadores. E mesmo que os líderes se considerassem comunistas, o exército camponês “vermelho”, isso não mudava em nada o problema da natureza social dessas organizações, já que a classe trabalhadora urbana foi deixada à mercê do nacionalismo de Chiang-Kai-Shek e da ocupação imperialista japonesa.[41]
“Entre os líderes comunistas dos destacamentos vermelhos há, sem dúvida, muitos intelectuais e semi-intelectuais fora da classe que não passaram pela escola da luta proletária. Por dois ou três anos, eles viveram a vida de comandantes e comissários partidários; lutaram em batalhas, tomaram territórios, etc. Eles absorveram o espírito de seu ambiente. Enquanto isso, a maior parte da base dos destacamentos vermelhos consiste de camponeses que assumem o nome de comunistas com toda honestidade e sinceridade, mas que na realidade continuam sendo revolucionários pobres ou pequenos proprietários pobres. Na política, quem julga por denominações e rótulos e não por fatos sociais está perdido”.[42]
Ele até vai mais longe na caracterização social e política da capa dirigente do movimento camponês, o mesmo que liderou a revolução de 1949, substituindo nela o proletariado: “É uma coisa quando um Partido Comunista bem encaixado na base do proletariado urbano (…) lidera a guerra camponesa. Mas é um fato diferente quando alguns milhares ou mesmo dezenas de milhares de revolucionários (…) assumem a liderança da guerra camponesa sem ter um apoio sério do proletariado. Esta é precisamente a situação na China (…) O estrato de comando do “Exército Vermelho” chinês conseguiu, sem dúvida, obter o hábito de comando. Na ausência de um forte partido revolucionário e organizações de massa do proletariado, o controle sobre o estrato de comando é virtualmente impossível. Os comandantes e comissários parecem ser absolutamente donos da situação e, mesmo quando ocupam as cidades, estão em condição de desprezar os trabalhadores“.[43]
Trata-se de uma análise muito educativa sobre o papel dos sujeitos sociais e políticos não-operários na revolução, para além de que, como regra, Trotsky descartava que as camadas pequeno-burguesas e camponesas pudessem desempenhar um papel que fosse relativamente independente.[44] Porque a lacuna que Trotsky já identifica em 1932 entre o PCC e a classe trabalhadora chinesa atravessou todo o processo revolucionário e a própria revolução e nunca chegou ao fim, o que afetou, no nosso entendimento, a natureza mesma da revolução de 1949, a mais importante de todo o século 20 após a russa.
Porque “é inegável que a Revolução de Outubro de 1949 foi um grande triunfo das massas camponesas, mas nem o sujeito nem a dinâmica que tomou podem nos permitir qualificá-la, como foi feito há anos, de ‘operária e socialista’. Para começar, não só o movimento operário esteve completamente ausente, senão que o divórcio de anos por causa da orientação política do PCCh o havia tornado indiferente à luta protagonizada pelo partido e pelo campesinato. Para continuar, as próprias massas camponesas que levaram o PCCh ao poder não tinham outro objetivo (…) que a reforma agrária. Mais ainda, as organizações camponesas independentes tinham desaparecido há décadas (…) todas as organizações camponesas eram total e absolutamente dependentes do partido (…) A democracia operária, ou seja, o proletariado consciente movendo-se com as suas organizações independentes (. ..) não só brilhou pela sua ausência, mas nos casos em que pode aparecer foi esmagado“. [45]
Esta avaliação pode ser confirmada hoje em muitos trabalhos e ensaios. Por exemplo, em um artigo recente de Roland Lew (especialista em países orientais), lemos: “É impressionante o contraste entre o dinamismo dos diferentes componentes da sociedade e a inércia política que, fora do círculo de elite, persiste até hoje (…) O maoísmo não era apenas ditatorial e antidemocrático, mas desde o início, consciente e metodicamente, fragmentou o mundo social, especialmente seu componente operário; contrariamente ao que proclamava, o regime – como o de Stalin – era profundamente “despolitizador”. Assim, ele perpetuou e até acentuou as tendências antidemocráticas que já existiam quando chegou ao poder“. [46]
Algo muito parecido ao que Trotsky chegou a antecipar no texto citado acima, referindo-se a como o PCCh passou a ter uma base social camponesa: “Os narodnikis russos costumavam acusar os marxistas da Rússia de ‘ignorar’ os camponeses (…) A isso, os marxistas respondiam “nós levantaremos e organizaremos os operários avançados e, através dos trabalhadores, elevaremos os camponeses”. Os stalinistas chineses agiram de uma maneira completamente diferente. Durante a revolução de 1925-1927, eles subordinaram direta e imediatamente os interesses dos trabalhadores e camponeses aos interesses da burguesia nacional. Nos anos da contra-revolução, passaram do proletariado ao campesinato, isto é, assumiram o papel que havia sido preenchido na Rússia pelos social revolucionários, quando estes eram ainda um partido revolucionário.“[47]
Essa conceituação não pretende abonar um “normativismo” ante aos processos revolucionários. Os marxistas sempre têm a obrigação de intervir em revoluções tal como são. Mas eles também têm outra obrigação tão importante quanto a anterior: não se adaptar a elas tal qual são, como aconteceu com muitas das correntes trotskistas do pós-guerra, especialmente com o pablo-mandelismo.
Ao contrário, trata-se sempre de defender o ângulo de classe e socialista em um movimento de luta – como, por exemplo, o atual debate sobre o programa e a política para os movimentos piqueteiros na Argentina – sem nunca perder de vista. que o eixo estratégico deve partir da construção dos socialistas revolucionários no próprio seio da classe trabalhadora, para desde aí combater por sua hegemonia política sobre o conjunto de explorados e oprimidos.
Em suma: a intervenção dos socialistas revolucionários deve ser feita a partir da perspectiva da luta para que eles adquiram essa dinâmica de classe e socialista, que de forma alguma pode ser alcançada “objetivamente”.
Esta não é uma discussão puramente histórica. No início do século XXI, assistimos ao surgimento de novos movimentos e lutas revolucionárias, como no Cone Sul da América Latina, que ainda são “híbridos” desde o ponto de vista de classe e onde continua existindo uma crise da “subjetividade” e/ou de consciência socialista. Sob essas condições, o papel dos revolucionários socialistas evidentemente envolve lutar em seu seio para que adquiram esse caráter mais de classe e socialista, ou, o que é o mesmo, para o ingresso da classe trabalhadora como sujeito consciente no centro desses processos. E isso continua sendo um enorme problema presente.
Que isso não ocorra de maneira “objetiva” foi demonstrado mais uma vez, se fazia falta, pela experiência viva e recente de Argentinazo. Porque a progressão classista e socialista dos processos revolucionários não pode ocorrer como resultado de uma mecânica social ou automatismo político de uma classe trabalhadora “muda” (como é a concepção de tantas correntes “ortodoxas”): deve se tratar de um processo cada vez mais consciente, mais democrático e com uma centralidade cada vez maior dos trabalhadores. [48]
Os distintos tipos de revoluções e a especificidade do segundo pós guerra
A definição “ortodoxa” das revoluções do pós-guerra foi baseada em uma interpretação tão difundida quanto errada da teoria da revolução permanente: a crença de que no século 20 haveria apenas um tipo de revolução: o “operário e socialista”.[49] Isso é um erro grave. Em parte alguma Trotsky propôs um único tipo de revolução, mas que levar a cabo de maneira consequente as revoluções democráticas, agrária, nacional ou anti-imperialista, passava pela realização da revolução proletária, o que é algo totalmente diferente.
Foi o caso, por exemplo, da revolução russa, na qual se combinaram em uma única unidade a revolução proletária das cidades, a revolução agrária no campo e até mesmo a revolução nacional no nível das diferentes nacionalidades que faziam parte do império russo.
A novidade do século XX é a atualidade da revolução proletária, ou seja, a possibilidade de que seja a classe trabalhadora a que dê a sua marca ao conjunto dessas revoluções e que, exercendo sua hegemonia, as consume de maneira efetiva. Este foi o padrão de todas as revoluções que ocorreram em torno da revolução russa e nos 20 anos seguintes, triunfantes (apenas a russa, ao final) ou derrotadas (todos as demais: a alemã, a húngara, a espanhola…).
O que deve ser ressaltado é que após a Segunda Guerra Mundial, o padrão mudou: a classe operária não pode imprimir a sua marca nos eventos, e onde poderia tê-lo feito foi derrotada graças aos serviços do stalinismo (França, Itália e em certa medida Japão). Assim, ficou colocado o problema para todo o movimento revolucionário.
Correntes como Socialismo Internacional, guiadas por Tony Cliff, ante a ausência da classe trabalhadora e da liderança burocrática e pequeno-burguesa das revoluções do pós-guerra, apresentavam a hipótese de que se trataria de revoluções burguesas. Mas, em nosso entender, em pleno século XX, uma vez que a burguesia deixou de ser revolucionária a escala mundial já no século XIX, isso implicava uma evidente falta de perspectiva histórica. O raciocínio de Cliff e sua corrente era que, embora isso fosse válido em nível mundial, não precisava sê-lo necessariamente ao nível de certos países. Mas se partirmos da totalidade que é a economia mundial capitalista, o argumento parece pouco sólido.
O que nos resta então? Que precisamente por causa de uma combinação de circunstâncias específica e historicamente determinada, revoluções democráticas anti-imperialistas e agrárias foram parcialmente resolvidas como revoluções anticapitalistas, mas, na ausência da centralidade da classe operária, não como revoluções socialistas. Porque, reiteramos, a conotação apropriadamente socialista da revolução passa por a classe trabalhadora efetivamente dar sua marca ao processo.
No entanto, é digna de atenção a ideia de que, em virtude do desenvolvimento desigual e combinado, não se pode excluir que uma classe acabe desenvolvendo as tarefas de outra. Esse foi o caso das tarefas da revolução democrática burguesa, realizadas consistentemente não pela burguesia, mas pela classe trabalhadora da Revolução Russa. Ou, no caso da Revolução Francesa, com a pequena burguesia radicalizada dos jacobinos, abrindo caminho para o desenvolvimento burguês. Poderia-se conceber então – como disse o trotskismo tradicional – que, no segundo período pós-guerra, as camadas pequeno-burguesas lideradas pelos partidos-exército executaram as tarefas da revolução proletária, expropriando a burguesia. [50]
Mas é aqui aonde se perde de vista o fato de que a expropriação em si não é todavia uma tarefa propriamente socialista, mas depende do sentido da evolução subsequente. Ou seja, o desenvolvimento de uma verdadeira tendência à socialização da produção.
Porque aqui, precisamente, existe um enorme problema que traz propriamente a revolução proletária: não se trata apenas de quais são as tarefas, mas de como (os meios) e quem (o sujeito) as leva a cabo.[51] Esta era a posição de Trotsky em relação à industrialização acelerada e à coletivização forçada do campo, ou ante a invasão da URSS à Polônia e Finlândia. A definição de Trotsky tinha sido “revolução complementar”, que, vista em retrospectiva, resultou em última análise errada. Mas a sua posição metodológica, no entanto, mantém toda a sua validade, porque mesmo considerando essas medidas eventualmente como “progressistas”, ficou claro que quando executadas pela burocracia stalinista, não pela classe trabalhadora exercendo a democracia operária, a realização dessas tarefas foi totalmente distorcida.
Em um artigo sobre a corrente morenista, O. Garmendia explica que “Trotski não pretendeu prescrever um curso obrigatório aos eventos históricos (…) analisou os casos em que as forças burocráticas (…) se viram obrigadas a ‘ir além´ dos limites originalmente propostos, sem por isso modificar sua teoria (…) a invasão da URSS à Polônia e à Finlândia na década de 30 deu a Trotsky ocasião para analisar as transformações das relações de propriedade causadas pela burocracia ( …) Mas, uma expropriação não significa em si a revolução socialista, ou garantir as conquistas revolucionárias, inclusive conquistas democráticas (…) essa foi a posição que Trotsky enfrentou as capitulações ao stalinismo de muitos militantes da Oposição da Esquerda – como Preobrajensky – que atribuiu um valor revolucionário e socialista objetivo à coletivização de Stalin (…) Finalmente, em controvérsia com uma fração do partido norte-americano, retorna sobre o significado das expropriações da burocracia na Polônia dizendo: ‘A estatização dos meios de produção é, como dissemos, uma medida progressiva. Mas sua progressividade é relativa; seu peso específico depende da soma de todos os outros fatores (…) gera ilusões quanto à possibilidade de substituir a revolução proletária por manobras burocráticas. O mal supera de longe o conteúdo progressista das reformas stalinistas na Polônia. Para que a propriedade nacionalizada nas áreas ocupadas, assim como na URSS, se torne a base de um desenvolvimento genuinamente progressista, isto é, socialista, é necessário derrubar a burocracia de Moscou. Em consequência, nosso programa mantém toda a sua validade’. Como vemos, Trotsky considerou que seu programa ainda estava em vigor apesar das expropriações, porque elas, em si mesmas, não garantem o desenvolvimento socialista. O mesmo pode ser dito sobre as revoluções do pós-guerra (…) embora tenham expropriado, não por isso garantiram que o processo da revolução democrática se dirigisse para a revolução socialista “.[52]
Como assinala o próprio Trotsky, existe uma dialética entre as tarefas e o sujeito que as realiza, onde nem tudo é determinado pelo conteúdo objetivo dessas tarefas, mas também por quem e como as realiza. Em relação a este problema, a oposição russa dividiu-se em duas alas: a de líderes como Preobrajensky [53] que, vendo que a burocracia supostamente aplicava o programa da Oposição de Esquerda, capitulou a Stalin; e outra que tendia a sugerir que a maneira de realizar essas medidas, em vez de uma “revolução complementar”, significava o começo da consumação de uma “contra-revolução” social, que levou à perda do caráter operário do Estado. Este é o caso de Christian Rakovsky, que a partir desta virada da burocracia stalinista acabará definindo a URSS como um “Estado burocrático com remanescentes proletários comunistas”.
Em sua famosa troca de cartas com Preobrajensky sobre a revolução chinesa, Trotsky ilustra um aspecto teórico-metodológico central da teoria da revolução permanente: “Como caracterizar uma revolução? Por causa da classe que a dirige ou por seu conteúdo social? Há uma armadilha teórica subjacente em contrapor a primeiro à última de uma maneira geral. O período jacobino da Revolução Francesa era, naturalmente, o período da ditadura pequeno-burguesa, em que também a pequena burguesia, em total harmonia com a sua ‘natureza sociológica’, abriu o caminho para a grande burguesia. A revolução de novembro na Alemanha foi o início da revolução proletária, mas que foi interrompida em seus passos iniciais pela direção pequeno-burguesa, e só alcançou algumas pequenas questões que não foram cumpridas pela revolução burguesa. Como chamamos a revolução de novembro: burguesa ou proletária? Ambas as respostas estão incorretas. O lugar da revolução de outubro será restaurado quando definirmos a mecânica dessa revolução e determinarmos seus resultados. Não haverá contradição neste caso, entre a mecânica (colocando sob este nome, é claro, não só a força motriz, mas também a direção) e os resultados: ambos têm um caráter ‘sociologicamente’ indeterminado (…). O ´quid´ da questão reside precisamente no fato de que, embora a mecânica política da revolução depende em última análise, em uma base econômica (não só nacional, mas internacional), não pode, contudo, deduzir-se com uma lógica abstrata dessa base econômica (…) Por este motivo, no que diz respeito ao conteúdo social, é necessário dizer: ‘esperar e ver’ “.
Isso valia para Preobrajenzky, que negou antecipadamente que a revolução chinesa poderia passar de uma revolução democrático-burguesa para uma revolução socialista. Mas metodologicamente vale também o contrário: não é possível falar de revoluções “objetivamente” socialistas (dedução “com uma lógica abstrata dessa base econômica”) ainda na ausência da classe trabalhadora como um sujeito consciente: quem e como consuma a tarefa da expropriação faz a natureza mesma da revolução.
Este é, acreditamos, o critério válido para as revoluções do pós-guerra.[54] Nelas, o como e quem das expropriações foi o que decidiu o destino ulterior destas. Por não estar a serviço de um maior grau de organização e emancipação da classe trabalhadora (processo de transição para o socialismo), mas terminar na tremenda bancarrota que conhecemos, o conteúdo “objetivo” operário e socialista (não é dedutível de, nem redutível a, uma lógica economicista abstrata), ficou irremediavelmente questionada.[55]
Isto é o que explica que, no caso de Stalin na Segunda Guerra Mundial, as expropriações na Europa do Leste e da gesta da revolução chinesa de 1949, estas medidas e ações tenham sido realizadas em termos de discurso nacional ou nacionalista e não de classe. Isso obedece a uma lógica profunda, porque, evidentemente, visava apagar conscientemente o protagonismo e a marca da própria classe trabalhadora. A este respeito Lew R. diz: “(…) durante muito tempo – desde a década de 30 – se subestimou a importância e até mesmo a preeminência da dimensão nacionalista na motivação do regime de Pequim e na história do comunismo chinês . No entanto, mais que o comunismo que servia de vestimenta ideológica, é esta dimensão nacionalista que explica a história do PCCh (…) O PCCh é nacionalista dado que seu objectivo essencial é, para usar um slogan usado nos anos 20 , “salvar a nação” dos imperialismos predatórios, proteja-la e também reconstruir sua unidade (…). Esta prioridade nacionalista – inclusive em sua dimensão anti-imperialista -(…) supõe um pragmatismo muito apartado da ideologia comunista (…) O resto, a maior parte dos novos temas emancipadores extraídos do socialismo ocidental (democracia, o poder de aldeia, etc.), tornou-se progressivamente secundário, até mesmo um verdadeiro incômodo; daí a eliminação precoce, vigorosa e repetida das minorias mais sensíveis (…) apegadas ao significado revolucionário da emancipação popular “. [56]
E Ernest Mandel se viu obrigado a descrever uma situação semelhante (embora nesse caso não tenha havido revolução) nos países do Leste Europeu: “Mas pelo caráter extremamente limitado da mobilização das massas nos países (…) do Glacis, pela passividade e até pela apatia majoritária dos trabalhadores desses países, imprevista por nosso movimento (…) a burocracia soviética subordinava de fato a assimilação estrutural de sua glacis à destruição da possibilidade de desenvolvimento autônomo do movimento operário “.[57]
Isso reforça a necessidade de estabelecer um critério clássico do marxismo revolucionário, confirmado pela experiência das revoluções do segundo pós-guerra: toda conquista econômico-social dos trabalhadores, em princípio, tem um valor em si mesmo, mas o critério de avaliação definitivo das conquistas neste campo deve ser colocado em correspondência com o processo contínuo e progressivo de organização independente e desenvolvimento da consciência do proletariado: este é o critério principal. Porque foi visto muitas vezes nos processos revolucionários no Ocidente e nas revoluções do pós-guerra como a burguesia – e até as burocracias – cederam conquistas e/ou concessões socioeconômicas parciais a custa de liquidar o fundamental, o processo de organização independente.
O próprio Mandel, que fazia parte da maioria pablista da Quarta Internacional, registrou o seguinte em um documento há já 50 anos: “a) a Iugoslávia e a China são países muito atrasados, onde o proletariado é pouco numeroso e com débil tradição marxista, tendo passado por duas décadas de prostração, sob uma ditadura reacionária (…). b) A luta revolucionária teve seu centro de gravidade no campo e assumiu a forma de uma centralização militar pelos PC´s das revoltas dos camponeses pobres (…). c) A vitória revolucionária foi adquirida pela conquista militar das cidades (…) por um conjunto de razões históricas, não se produziu nenhum levante [revolucionário] (…). d) Por todas estas razões, a vitória revolucionária pode ser obtida sem que os PC´s rompam completamente com uma tática oportunista e se delimitem publicamente do Kremlin.” [58]
É, em suma, um critério metodológico marxista revolucionário elementar que, em última análise, a nacionalização dos meios de produção sob nenhuma circunstância pode ser analisada apenas em si mesma, senão que deve estar em consonância com o processo real de transição e da revolução mundial. Este é o critério de Trotsky, inclusive para o caso das estatizações na Polônia, por ocasião de sua ocupação em 1939 pelo exército stalinista. E são os mesmos critérios que Rosa Luxemburgo tinha apresentado em sua famosa discussão com Karl Kautsky sobre a greve de massas: “A concepção marxista consiste precisamente na consideração da massa e de sua consciência como os fatores determinantes de todas as ações políticas da social democracia. No espírito desta concepção, greves de massas políticas – como toda a luta pelo direito ao sufrágio – não são, finalmente, nada mais que um meio de esclarecimento de classe e de organização de camadas mais amplas do proletariado“.[59]
Porque “(…) Qualquer sindicalista sabe que o ‘resultado específico’ sob a forma de uma conquista material não é, nem pode ser de modo algum, o único ponto de vista decisivo em uma luta econômica; que as organizações sindicais na Europa Ocidental a cada passo se encontram na forçosa situação de realizar a luta, mesmo com escassa perspectiva de ‘resultados específicos’ (…) Estas greves ´carentes de êxito´ não só não falharam em seu objetivo, senão que são uma condição vital direta, para defender os padrões de vida dos trabalhadores, para manter vivo o ímpeto de luta das massas de trabalhadores (…) é geralmente conhecido que, além do ‘resultado específico’ em ganhos materiais, e mesmo sem esse resultado, o efeito talvez mais importante das greves na Europa Ocidental consista em servir como pontos de partida para a organização sindical“. [60] Ou seja, que o principal critério para avaliar as conquistas é sempre o de que deem lugar ao progresso no campo da consciência e da organização [61]
É por isso que, em última análise, no que faz a revolução socialista não há substituição válida: se não há presença real da classe trabalhadora com sua consciência, organizações e partidos, não há revolução socialista. A classe trabalhadora, neste tipo histórico de revolução, é insubstituível.
E como o próprio Trotski disse, no caráter das revoluções opera uma dialética que não admite definições a priori: elas permanecem “sociologicamente indeterminadas” em termos de sua mecânica social e política real. Por isso, é essencial lutar para que de maneira efetiva as revoluções ou processos democráticas e/ou antiimperialistas gerais – como as que, por exemplo, estão em curso na América Latina – se transformem em revoluções operárias e socialistas.
Mas isso é que abre o caminho para a superação de certos critérios objetivistas, mecanicistas ou deterministas de diferentes correntes trotskistas (mas não de Trotsky!). E é também o fundamento último que dá origem à plena densidade do pensamento de Lênin (no fundo, relegado na tradição usual das correntes trotskistas), referindo-se à absolutamente imprescindível construção do partido revolucionário, bem como ao problema da superação da crise de subjetividade socialista e de consciência. Como já dissemos, processos como o Argentinazo ou o Outubro boliviano colocam esses problemas, de modo que a reflexão sobre esses elementos de balanço histórico que estamos apontando se faz hoje mais pertinente do que antes e não menos.
Em relação ao papel imprescindível do partido revolucionário, dizíamos recentemente: “[O] caráter fetichizado, invertido, deformado das relações sociais na sociedade (…) faz com que não esteja dado aos trabalhadores adquirir uma consciência clara e profunda sobre as circunstâncias de sua exploração e opressão, mais que mediante uma elaboração, um processo no qual intervêm as tradições de luta herdadas de gerações anteriores, sua própria ação ´espontânea, os elementos de aprendizagem que vêm ou se acumulam como experiência e – no limite – um metabolismo absolutamente necessário com a organização revolucionária, sem a qual a consciência política socialista não pode ser obtida completamente“.[62]
A burocracia: camada ou classe?
Na análise da dinâmica de classe das revoluções do pós-guerra há um núcleo teórico, do qual há que dar conta explicitamente, que entrelaça a teoria da revolução (tarefas e sujeitos), com a valorização do caráter das sociedades não-capitalistas que marcaram a segunda metade do século XX.
Nesse marco, dois aspectos de enorme importância exigem uma explicação teórica fundamentada. O primeiro refere-se ao caráter da burocracia da antiga URSS e de outros países onde o capital foi expropriado; a segunda, à forma que assumiram as relações sociais de produção após a estatização generalizada dos meios de produção.
Começando pelo primeiro aspecto, lembremos que Trotsky ordena a teoria da revolução permanente em torno do entendimento de que, a partir do século XX, somente a classe trabalhadora poderia tomar a seu cargo e hegemonizar toda a resolução das tarefas burguesas pendentes, e que a dinâmica desse processo apontaria para a questão de seu próprio poder: a revolução democrática tornaria-se socialista. Junto a isso, para Trotski, o outro grande setor oprimido, os camponeses e as camadas pequeno-burguesas em geral, teriam um grande papel a desempenhar na revolução, mas não podiam ter um papel político independente.
Do exposto, emergiu que a maioria das correntes do trotskismo consideraram de maneira objetivista ao resultado das revoluções do pós-guerra como Estados operários. Isso, apesar da total ausência da ação consciente e auto-organizada da classe trabalhadora nesses processos. Logicamente, e se a concepção de Trotsky estivesse correta e as camadas pequeno-burguesas não pudessem desenvolver nenhum papel independente, por limitado que fosse, elas não poderiam ser mais que instrumentos de uma mecânica objetiva: o estabelecimento de novos “Estados operários deformados”, dos quais essas camadas não seriam, em última análise, mais do que meras excrescências burocráticas, grupos sociais parasitas. O Pablo-Mandelismo foi quem levou essa abordagem ainda mais longe, a ponto de capitular totalmente a essas direções burocráticas, maquiadas como “empiricamente revolucionárias” e socialmente “operárias”.
Em nosso entender, as coisas foram completamente diferentes. Essas camadas pequeno burguesas ou burocráticas (campesinato, camadas médias, intelectuais, burocracias), sob condições muito determinadas e específicas e por um período histórico relativamente curto, cumpriram um papel mais proeminente do que o esperado (no âmbito de sociedades que expropriaram aos capitalistas). Mas esses processos, que poderiam potencialmente ter iniciado uma transição para o socialismo, precisamente por causa da ausência da classe trabalhadora, foram abortados desde seu começo.
Sobre a base em autênticas revoluções populares, esses setores pequeno-burgueses surgiram realizando tarefas democráticas, anti-imperialistas e até mesmo a expropriação; mas na ausência da classe trabalhadora no centro do processo e de maneira consciente (o como e o quem), na ausência de revoluções operárias e socialistas, a “resolução” dessas tarefas foi muito relativa. De facto, essas direções e essa base social do processo só poderiam, em última análise, levar estas sociedades a um impasse, no quadro da pressão constante do capitalismo imperialista a nível mundial, restabelecendo assim mecanismos e relações de opressão e exploração. [63]
Mas, na verdade, a teoria da revolução permanente de Trotsky não foi desmentida nesse sentido fundamental, porque, diferentemente da conceituação de Nahuel Moreno,[64] a tarefa dos socialistas revolucionários não se reduz a fatores puramente agregados como a democracia operária ou a revolução mundial, considerados como elementos isolados, externos à mecânica real da revolução. Porque, na verdade, era incorreto estimar que, no período do pós-guerra, a revolução avançara “centenas de quilômetros a mais” do que Trotsky previra, mas, pelo contrário: centenas de quilômetros a menos, e não chegaram a adquirir, em nenhum caso. um caráter socialista De fato, praticamente toda a tarefa da revolução socialista e da transição permaneceu pendente, na medida em que se tratou de revoluções sem o socialismo.[65]
Isso conduzia imediatamente a um debate sobre a própria natureza da burocracia: camada ou classe? E, consequentemente, sobre o alcance de sua ação “independente”. Afirmou-se que, se nos países onde o capitalismo foi expropriado no pós-guerra, não se haviam constituído verdadeiramente Estados operários, nada mais restava senão render-se à evidência de que a burocracia se teria constituído numa “nova classe exploradora orgânica”.
As teorizações do “capitalismo de Estado” ou “coletivismo burocrático” foram as que levaram isto mais longe, cada uma à sua maneira: para os “capitalistas de Estado”, a burocracia havia se tornado uma nova classe capitalista “sui generis”; para os “coletivistas burocráticos”, se tratava de uma nova classe sem antecedentes históricos ou vínculos na sociedade de origem, como se tivesse emergido de um repolho. Inclusive para esta última corrente na URSS havia “servidão feudal” e a classe trabalhadora “não era um proletariado” no sentido moderno do termo, embora por outro lado nunca se explicou de maneira marxista com base em que perspectivas históricas teria ocorrido. esse desastre.[66]
Nossa posição é muito diferente, muito mais relacionada com as análises clássicas de Trotsky, que foi o primeiro a argumentar que a burocracia da URSS era mais do que uma mera burocracia, na medida em que estava à frente de um Estado imenso sem que existisse uma classe verdadeiramente proprietária (um fato que ocorreu em todos os países onde o capital foi expropriado no período pós-guerra). Mas, ao mesmo tempo, como resultado do contexto capitalista internacional e do caráter não orgânico e parasitário de seu usufruto da propriedade estatizada e de sua apropriação do sobre produto social, era menos que uma classe orgânica.
Do ponto de vista teórico, “para uma análise concreta da degeneração da URSS, uma abordagem economicista-mecanicista dos problemas do Estado ´soviético´ e do Estado em geral é insuficiente. Análises mecânicas em termos de estrutura e superestrutura (…) são particularmente inúteis para entender o que aconteceu na URSS. É necessário retomar (…) o que foi esboçado por Marx e Engels. As formas políticas da sociedade que têm suas raízes em certas relações sociais, condicionadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, tem uma tendência à autonomia e a uma inegável capacidade de reação sobre as relações sociais e econômicas, que podem ser, e de fato são, afetadas pela produção política da classe ou casta que controla o poder do Estado“[67]
Nesse marco, vale lembrar a brilhante obra de Christian Rakovsky, Os perigos profissionais do poder, em que ele aponta que o que começara como diferenciação funcional dos que assumiam funções governamentais havia se convertido em uma diferenciação social, com marcantes desigualdades materiais. Esses novos privilegiados, dizia ele, “não apenas objetivamente, mas também subjetivamente; não apenas material, mas também moralmente, deixaram de fazer parte dessa mesma classe trabalhadora (…) Não são casos isolados (…) mas sim de uma nova categoria social “.[68]
Em 1930, depois de verificar que se havia desenvolvido ainda mais “a rapacidade, a irresponsabilidade, o despotismo do aparato, cujo reverso é a brutalização, a humilhação e a privação dos direitos das classes trabalhadoras“, ele escreveu: “Sob nossos olhos se formou e continua a se formar uma grande classe de governantes com suas próprias divisões internas, que cresce através da cooptação “. [69]
Trotski, que cita explicitamente a Rakovski em A Revolução Traída (1935) desenvolve esta análise e ressalta a originalidade do fenômeno: “Sob nenhum outro regime a burocracia atinge tal independência (…) A burocracia soviética se elevou acima de uma classe que mal saia da miséria e das trevas, e que não tinha tradições de mando e domínio (…) a burocracia da URSS assimila os costumes burgueses sem ter uma burguesia nacional ao seu lado. Nesse sentido, não se pode negar que é algo mais que uma simples burocracia. É a única camada social privilegiada e dominante, no sentido pleno destas palavras, na sociedade soviética (…) o próprio fato de ter tomado o poder em um país onde os meios mais importantes de produção pertencem ao Estado cria entre ela e as riquezas da nação, relações inteiramente novas. Os meios de produção pertencem ao Estado. O estado “pertence”, de certa forma, à burocracia. Se essas relações completamente novas se estabilizaram, se legalizaram, se tornaram normais, sem resistência ou contra a resistência dos trabalhadores, terminariam liquidando completamente as conquistas da revolução proletária“.[70]
Ao mesmo tempo, Trotsky teve extremo cuidado em precisar que a burocracia continuava “sem ter direitos particulares em matéria de propriedade (…). Os privilégios da burocracia são abusos. Esconde seus privilégios e finge não existir como um grupo social. Sua apropriação de uma parte imensa da renda nacional é um fato do parasitismo social.“[71]
Em particular, Trotsky polemizou contra aqueles que definiram a burocracia como uma “nova classe exploradora” em ascensão, imposta tanto na URSS quanto nos países fascistas. Ele apontou as evidentes diferenças entre a burocracia fascista e a burocracia stalinista e explicou, em relação a esta última, que, por mais poderosa ou descontrolada que fosse, estava longe de se consolidar como uma classe exploradora orgânica. Daí se derivam traços tão características quanto as freqüentes convulsões internas, a necessidade de governar com métodos totalitários e suas tendências à restauração do capitalismo. A definição de Trotsky é, então, dialética, porque é dinâmica: “sendo mais do que uma simples burocracia, a casta privilegiada omnipotente que administra a Rússia não constitui uma nova classe exploradora orgânica, e valorizada a escala mundial tende a se tornar um órgão do burguesia mundial“.[72]
O desenvolvimento da luta de classes no final do século XX acabou mostrando que essa era a única análise de classe correta. Em circunstâncias históricas muito específicas e na cabeça inicialmente de processos revolucionários populares reais, esta camada ou casta pequeno burguesa tinha desempenhado um papel de liderança relativamente mais independente do que nos 150 anos de luta de classes anteriores.[73] Mas foi uma “independência”, a-histórica que pela natureza social pequeno-burguesa dessa mesma camada estava condenada precisamente em termos históricos, a sua superação revolucionária pela classe trabalhadora ou a sua reabsorção burguesa da mesma, alternativa essa que eventualmente prevaleceu. Mas só é possível dar conta dessa experiência histórica deixando de lado toda abordagem escolástica do marxismo e colocando as categorias teóricas – por outro lado, dinâmicas e não ossificadas – em correspondência com a experiência histórica real.
Exploração mútua, exploração não orgânica
“O marxismo parte do conceito da economia global não como um amálgama de partículas nacionais, mas como uma potente realidade com vida própria, criada pela divisão internacional do trabalho e do mercado mundial prevalecente nos tempos que correm sobre os mercados nacionais ( …) Propor-se por fim à edificação de uma sociedade socialista nacional e isolada equivaleria, apesar de todos os êxitos temporários, a retroagir as forças produtivas, detendo inclusive a marcha do capitalismo (…) Mas as características específicas da economia nacional, por grandes que sejam, formam parte integrante, em proporção crescente, de uma realidade superior chamada economia mundial (…) A teoria da revolução permanente, ao prognosticar a revolução de outubro, baseava-se precisamente naquela lei da falta de um ritmo uniforme de desenvolvimento histórico (…) Mas a lei à qual aludimos (…) longe de substituir ou anular as leis da economia mundial, está sujeita a elas“.[74]
É desde o ponto de vista da teoria da revolução permanente e de seus pressupostos metodológicos fundamentais que se deve abordar as formações socioeconômicas às quais deram lugar as revoluções do pós-guerra, totalmente relacionadas à degeneração da economia de transição da URSS.. Acreditamos que Pierre Naville, em seu colossal estudo O Novo Leviatán, é o que melhor se encaixa nesses pressupostos metodológicos verdadeiramente trotskistas, ao contrário de suposições “ortodoxas” como Ernest Mandel, que, como veremos, fizeram escola na maquiagem e na mitificação da burocracia stalinista.[75]
O que há que explicar, do nosso ponto de vista, é o significado concreto de ser “menos que uma classe orgânica” em relação à burocracia stalinista. Adiantamos que, em última análise, consideramos a burocracia como um órgão da burguesia mundial dentro dessas sociedades não capitalistas, isto é, uma camada social não operária, mas pequeno-burguesa, um fenômeno histórico instável e condenado a desaparecer.
Mas isso nos obriga a revisitar a lógica do funcionamento econômico que operava por trás da estatlização dos meios de produção dessas sociedades. Isto é, determinar quais eram as relações sociais de produção e/ou exploração atuantes no seio da estatização dos meios de produção. A esse respeito, a análise de Trotsky nos capítulos IX e XI da A Revolução Traída é infinitamente superior à de todos os “trotskistas” que o sucederam, embora se baseasse no conceito de “espoliação”.[76]
Mais uma vez, é necessário partir de uma consideração teórica essencial: mesmo sob a estatização majoritária dos meios de produção, o império da lei do valor – produzido pela dupla pressão do mercado mundial e da necessidade interna – e a permanência do trabalho assalariado, fundamento da exploração, ainda estavam presentes[77] nas sociedades não capitalistas.
“A transição socialista é uma transformação revolucionária complexa, na qual a expropriação do grande capital – tanto mais se inicialmente isso só acontece em uma região do mundo – representa um capítulo importante, mas de modo algum conclusivo e muito menos irreversível (…) o desenvolvimento da revolução socialista e os problemas da transição devem ser abordados a partir do pressuposto factual e metodológico da unidade do mundo e da revolução mundial (…). No campo da economia, isso implicava compreender que a expropriação do capital não inaugurou na URSS – nem poderá faze-lo em qualquer lugar – um `modo de produção socialista´ ou uma `base econômica´ dotada de algum automatismo transicional.” [78]
O próprio Trotsky assumia esse ângulo de abordagem quando argumenta que as “leis econômicas” que prevaleciam na Rússia (estatização, planificação, monopólio do comércio exterior, dinheiro, etc.) estavam sujeitas às “leis da economia mundial”. A “lei das leis” (por sua vez, fundamento da teoria da revolução permanente) não é outra coisa senão o império mundial da lei do valor.
Porque, de acordo com Naville: “Na URSS subsiste o valor (…) A organização da produção e do comércio são dependentes de certas relações de produção, ou seja, de relações de classe, isto é, em última análise, de uma determinada forma de apropriação semi-coletiva do produto e do sobre-produto. A partir desta apropriação, devemos começar. É verdade que na URSS ocorre o contrário do que sob o capitalismo privado, mas ela se dá ainda de modo não-socialista, porque estamos em um socialismo de Estado, limitado em todos os sentidos, e este socialismo não chega nem perto do nível das relações teóricas descritas por Marx. No máximo, fornece algumas premissas (…) Se existe um mercado (incluindo um mercado de Estado …) nesse mercado, há também, além dos produtos de consumo, a capacidade de trabalho (…). Mas essa troca (…) não é, portanto, a troca da qual Marx fala, uma troca que prescinde de todas as noções de valor. É uma troca que ainda é dominada por coerção violenta devido à estatização, as relações exteriores, a persistência das relações semi capitalistas na agricultura, no comércio, etc., algo muito transitório, cheio de contradições e conflitos e que deverá retroceder ou progredir rumo à forma de que fala Marx, que só pode ter lugar a escala internacional“.[79]
Isso quer dizer que, enquanto a revolução não se realize internacionalmente, este império (a lei do valor e permanência do trabalho assalariado) é válido mesmo para os verdadeiros estados operários ou sociedades de transição, em que as imposições do trabalho por necessidade devem ir reduzindo-se em função do incremento do tempo livre. Onde a acumulação deve ser feita cada vez menos às custas do consumo da sociedade. Onde o trabalho morto deve ser cada vez mais subordinado ao trabalho vivo. Tudo o qual requer o desenvolvimento das forças produtivas, o respeito incondicional pela democracia dos trabalhadores e a crescente direção consciente da produção através de uma planificação flexível[80] como um elemento decisivo das próprias relações sociais de produção. Tudo o que, por sua vez, está subordinado, em última instância, ao imprescindível progresso da revolução mundial.
No entanto, nas sociedades não-capitalistas do pós-guerra, a dinâmica foi, de fato, a oposta: os mecanismos de “exploração mútua” e de auto-exploração “consensual” foram reabsorvidos. A exploração do trabalho e a acumulação de excedente como mais-valia nas mãos do Estado (mais-valia estatizada), que estava nas mãos não dos trabalhadores, mas da burocracia, foi relançada. Naville baseia-se, pedagogicamente, no esquema das cooperativas e nos mecanismos de auto-exploração que lhes são conotacionais para explicar como as reais relações de produção operaram por trás da estatização. Nas cooperativas – como acontece sob o capitalismo – enquanto unidades produtivas isoladas, a lei do valor e do trabalho por um salário continua a prevalecer, mesmo na ausência do patrão.
Neste contexto, ele afirma que “(…) é uma questão de saber se a exploração mútua, o sucessor da exploração capitalista, pode necessariamente gerar um estado de coisas onde a exploração, em qualquer das suas formas, deixa espaço para uma combinação sem precedentes de criação e administração (…) Para a utilidade ou o uso mútuo (das cooperativas), o capitalismo burguês em plena expansão transformou-os em pára-brisas de exploração unilateral. No entanto, na teoria da utilidade mútua existe virtualmente (…) o esboço de um estado de associação que rompe com as leis da troca capitalistas, valor por valor, e quebra a relação fundamental do salário. Utilidade implica associação. Mas, funcionando produtivamente, pode dar origem a uma exploração mútua, continuadora à sua maneira da exploração capitalista ou dar origem ao desaparecimento de toda a exploração, dissociando os valores de uso e os valores de troca (que desapareceriam).”
No segundo caso, “a utilidade mútua daria origem a um valor de uso mútuo ou social, em que a distribuição dos produtos deve ser independente da contribuição para sua produção. A desigualdade (ou melhor dito, a diferenciação), fluidez das capacidades e dos valores de uso, deixaria então de gerar desigualdades de desfrute devido à igualdade dos valores de troca. A manutenção da função do valor de troca e a escassez ou penúria de meios de produção e produtos é o que limita até agora ás associações cooperativas não-capitalistas.” [81]
Acontece que no caso das cooperativas sob o capitalismo, ou inclusive nas sociedades cercadas pelo capitalismo mundial, a necessidade se impõe e por causa do baixo desenvolvimento das forças produtivas (o retorno ao velho caos) impede alcançar a norma `de cada qual segundo a sua capacidade, para cada qual de acordo com sua necessidade´. Ou seja, impede a dissociação da retribuição do trabalho do valor que ele cria, e facilita, ao mesmo tempo (na ausência de qualquer democracia dos trabalhadores), a apropriação do excedente de trabalho social por parte da burocracia que cumpre o papel de administradora do sistema de necessidades,[82] de administradora da miséria.
Aprofundando essa abordagem, do ponto de vista do “modo de produção”, podemos afirmar com Naville que: “A utilidade mútua, em princípio, exclui a utilidade marginal. Mas, na prática, mantém a possibilidade de uma forma de exploração pela desigualdade de apropriação e constantemente reintroduz a ideia de desempenho ótimo, característico do capitalismo e do socialismo de Estado. Isso explica que Marx pode dizer claramente que `as fábricas cooperativas dos próprios trabalhadores são, dentro da forma tradicional, a primeira brecha aberta nela, embora, onde quer que existam, sua organização efetiva apresente … todos as defeitos do sistema existente. Mas dentro dessas fábricas o antagonismo entre capital e trabalho é abolido, embora, pelo momento, apenas de uma maneira em que os trabalhadores associados são seus próprios capitalistas, isto é, usam os meios de produção para explorar seu próprio trabalho ( …)´. [83] E acrescenta que `o socialismo de Estado é uma espécie de agrupamento de cooperativas que operam de acordo com uma série de leis herdadas do capitalismo e coordenadas com a mão brutal de uma burocracia´. Os trabalhadores são, de algum modo, “seus próprios capitalistas” explorando “seu próprio trabalho”. Eles, assim, reproduzem o tipo de desigualdades características das relações dominadas pela lei do valor, embora não haja proprietários privados para garantir essa reprodução“. [84]
Em suma: nos países do Leste prevaleceu a lei do valor (bem como a natureza assalariada do trabalho) e, portanto, um mecanismo de auto-exploração. E avaliar se essas relações tendiam a emancipação do trabalho ou significava novas formas de exploração essencialmente passava por que os trabalhadores “não se deixarem subjugar por uma burocracia todo-poderosa”; isto é, não deixem esta se apropriar do excedente social. Por mais que possa parecer incrível para muitos “trotskistas”, o próprio Trotsky tinha plena consciência disso quando ele disse que “na luta por padrões europeus ou americanos, os métodos clássicos de exploração, tais como o salário por peças, se aplicam sob formas tão descobertas e brutais que os próprios sindicatos reformistas não tolerariam nos países burgueses. A observação de que os trabalhadores na URSS trabalham ‘por conta própria’ não etá justificada senão na perspectiva da história, e diremos que -antecipando-nos ao nosso tema – com a condição de que não se deixem subjugar por uma burocracia todo-poderosa” . [85]
Com esse entendimento, e dentro de seu esquema das cooperativas, diz Naville acerca do papel da burocracia: “Essa forma de exploração, indica a experiência, é muito propícia à espoliação parasitária e à fraude(…) Este tipo de exploração parasitária é tanto mais difundida quanto extenso seja o campo das relações mútuas e cooperativas. Essa exploração, no entanto, não é orgânica ou funcional, já que as relações de trabalho não a implicam obrigatoriamente (…) A exploração mútua parasitária é uma forma avançada de exploração, onde a extração forçada pelas relações de trabalho (capitalismo) se transforma em extração possível pelas relações de consumo (…)“.[86]
É análogo ao caso do administrador (ou gendarme) nas cooperativas sob o capitalismo: pode se apropriar do excedente produzido pelos cooperados ou não ser apropriada, no caso do império de uma genuína democracia operária e de um desenvolvimento efetivo das forças produtivas, porque de outro modo, insistimos que é mera “socialização da miséria e retorno à antiga desordem”, a que Marx se referia. Pois o lugar de administrador burocrático não é o de um proprietário capitalista orgânico: “(…) A exploração envolve dois propósitos ou, mais simplesmente, duas condições em ação: que alguns privilégios de compra de produtos em detrimento dos outros; que alguns tenham poder de mando sobre os outros, isto é, para impor sua própria vontade (…) O socialismo de Estado é um sistema de exploração no qual os elementos de contradição estão situados nas relações das categorias sociais cooperantes que disputam a distribuição da produção (desde o nível da empresa até o nível nacional) sob a arbitragem de uma delas, elevada pouco a pouco ao nível de classe despótica. Podemos dizer que esse sistema, decorrente de uma forma cooperativa de gestão do capital acumulado, generaliza o fenômeno da exploração, unificando a forma das trocas nos campos da produção e do consumo “. [87]
Mas é precisamente a interação dessas relações sociais de produção que tendiam a ser perdidas de vista em Trotsky, obscurecidas pelo conceito puramente jurídico de “propriedade estatizada”. [88] O mesmo aconteceu com a dissociação mecanicista – ou mesmo idealista- das regras de repartição e distribuição de produtos de consumo com relação às relações de produção. Porque por trás das relações jurídicas, de acordo com a análise clássica de Marx e os princípios teóricos e metodológicos do materialismo histórico, operam e não podem deixar de operar as relações de produção, que são relações de fato, materiais do absolutamente imprescindível metabolismo social do homem com a natureza.[89]
Ao mesmo tempo, como disse Marx na Introdução à crítica da economia política, há uma relação dialética entre produção, distribuição, troca e consumo; onde as leis de repartição e distribuição de produtos vêm desde o princípio condicionadas pela distribuição prévia das condições de produção: meios de produção e força de trabalho. Ou seja, em quais mãos estão efetivamente os meios de produção e onde estão aqueles que possuem apenas sua força de trabalho, os trabalhadores assalariados, é decisivo para a posterior distribuição de meios de consumo.
“Consequentemente, os modos e relações de distribuição aparecem apenas como o inverso de agentes de produção.Um indivíduo que participa na produção, na forma de trabalho assalariado participa sob a forma de salários nos produtos, nos resultados de produção . A organização da distribuição é totalmente determinada pela organização da produção (…). De acordo com a concepção mais superficial, a distribuição aparece como distribuição dos produtos e, assim, mais afastada da produção e, portanto, independente dela. Mas antes de ser distribuição dos produtos, ela é: 1) distribuição dos instrumentos de produção; 2) distribuição dos membros da sociedade entre os diferentes ramos da produção (…). A distribuição dos produtos é manifestamente apenas um resultado dessa distribuição que se acha incluída no próprio processo de produção e determina a articulação da produção”.[90]
Porque, definitivamente, o que manda é a distribuição das condições da produção, enquanto que o trabalhador, nos países do Leste, permaneceu separado dos meios de produção. Na ausência da democracia operária, o trabalhador entra no processo de produção apenas como dono de sua força de trabalho e o burocrata como detentor efetivo dos meios de produção. E essas condições desiguais de produção determinam as desigualdades de troca.
Assim, em última análise, “a questão dos direitos de propriedade aparece relacionada e subordinada ao conceito de relações de produção. E, para além das palavras que se empreguem, as relações de produção são relações de poder efetivas sobre as pessoas e as forças produtivas, antes que relações de poder legal. Precisamente, se as relações de produção que foram impostas na URSS são analisadas, surge a inconsistência de se falar em “estado operário”. A propriedade do Estado deixou de ser uma ferramenta que o conjunto dos trabalhadores podia usar para avançar em direção a propriedade social dos meios de produção, e consagrou formas imprevistas de apropriação, que servindo à burocracia mantiveram ao proletariado soviético em condição de classe oprimida e explorada. A questão da propriedade estatal deve ser considerada em sua relação com outras categorias centrais do materialismo histórico, superando o enfoque legal que permanece na aparência das coisas”.[91]
A burocracia tornou-se assim, segundo a definição do próprio Trotsky, a “única camada social privilegiada e dominante” da sociedade soviética (e de todos os países do Leste), incorporando não apenas os interesses “objetivos” do “Estado operário”, mas os seus próprios.
Em outras palavras, embora seja incorreto conceber um estado proletário “platônico”, ignorando a distância de qualquer fenômeno real entre norma e fato, isso não impede que se assumam critérios básicos para especificar qual fenômeno social está à nossa frente, a fim de podermos definir um curso de ação para lutar por modificar a realidade. Porque “(…) os termos ‘ditadura do proletariado’, ‘socialismo’, ‘comunismo’, contêm programas e chamados à ação (…). A única maneira de nos orientarmos nesse campo é estabelecer uma série de conceitos fundamentais que derivam da crítica materialista da sociedade capitalista e do objetivo de acabar com a sociedade de classes. A ditadura do proletariado plasma, conscientemente, esse programa, e não pode ser de outra maneira, porque do que se trata é de organizar o trânsito para uma sociedade a qual se concebe sem classes ou exploração“.[92]
Conclusão
No final dos anos 30, no contexto de um justo critério defensivista da URSS sobre a Segunda Guerra Mundial, Trotsky parecia pronto para avaliar, de acordo com o imenso evento histórico que se avizinhava, o destino ulterior da URSS, cuja definição como Estado operário considerava uma “categoria histórica à beira da negação“. Isto erai consistente com um aspecto profundo da teoria da revolução permanente, baseada na concepção dinâmica desta: se as conquistas anteriores não são seguidas por novas conquistas e progressos no domínio da revolução internacional e nacional, o retrocesso e até mesmo a derrota é inevitável. Essa mesma concepção levara Lênin e Trotsky a insistir muitas vezes, no início dos anos 20, que estariam dispostos a “trocar a revolução russa pela alemã“. Em qualquer caso, o “Estado operário contra-revolucionário”, conforme definido na polêmica com a fração anti-defensivista do SWP americano, não poderia permanecer indefinidamente neste estado de contradição.
Trotsky colocava da seguinte forma: “Em relação a Aleksandrova, eu não acho que o problema da definição da URSS -“Estado operário” ou não – possa ser um obstáculo intransponível para uma abordagem política. Nas mesmas fileiras da Quarta Internacional, muitos camaradas se levantam contra a definição da URSS como um “Estado operário”. Na origem desta rejeição, existe – na minha opinião, na maioria dos casos – uma ausência de dialética na maneira de abordar os problemas. No essencial, esses camaradas têm a mesma apreciação da URSS que nós. Mas eles tendem a usar a categoria de “estado operário” como uma categoria lógica ou mesmo algo ético, e não como uma categoria histórica que atingiu o limite de sua negação. Será necessário um acontecimento histórico de grande importância, uma mudança de situação na URSS, o colapso da camarilha stalinista, para que esses camaradas digam: ‘sim; até agora tivemos um estado operário degenerado”. [93]
Com a Segunda Guerra Mundial, este limite histórico foi ultrapassado e na ausência da classe operária consciente e de correntes e partidos socialistas revolucionários, não havia forma de que as revoluções democráticas anticapitalista-nacionais pudessem ser “objetivamente socialistas”, uma contradição em seus próprios termos, como tentamos demonstrar ao longo deste ensaio. Porque no caso da revolução socialista, é axiomático para a melhor tradição clássica do marxismo revolucionário que a libertação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores. Esta é a grande lição que deixam as revoluções da segunda metade do século passado para as lutas revolucionárias do futuro, juntamente com a de que a libertação dos trabalhadores, longe de ser pura espontaneidade, é um metabolismo complexo, no qual a luta revolucionária pelo poder da classe trabalhadora tem como requisito indispensável – como aportara Lênin – seus organismos de autodeterminação e o partido dos socialistas revolucionários.
Notas:
[1].- Advertimos o leitor que este artigo e o seguinte (“O Segundo Pós-Guerra e o Movimento Trotskista”) são organicamente um único trabalho, que foi dividido apenas para a conveniência do leitor.
[2].- Karl Marx, El 18 Brumario de Luis Bonaparte, Buenos Aires, Polémica, 1975.
[3].- Concebemos este artigo como uma contribuição para o balanço teórico-programático do marxismo revolucionário, e esclarecemos que não o concebemos como um impedimento à constituição de Socialismo ou Barbárie com componentes provenientes de tradições diferentes das nossas.
[4].- Immanuel Wallerstein, El moderno sistema mundial, vol. 1, México, Siglo XXI, 1989, p. 15.
[5].- Insistimos nessa ideia de condições específicas para contrapor-se ao uso e abuso do trotskismo tradicional do pós-guerra do conceito de “excepcionalidade”; usado para todos os tipos de justificativas ou para teorizações ad hoc que justamente deixavam sem explicar essas condições “excepcionais”
[6].- Aqui cabe uma discussão sobre se a perspectiva de uma organização internacional revolucionária passa por uma nova Internacional revolucionária ou pela refundação da Quarta Internacional. Em nosso caso, acreditamos que isso deve ser deixado em aberto, em função do desenvolvimento real do processo da vanguarda revolucionária em escala internacional. Para mais elementos, veja “Uma nova corrente internacional é necessária”, nesta edição.
[7].- “A tradição não tem que nos pesar como um pesadelo, impedimento, embaraço, objeto de adoração e estúpida reverência (…); mas, por outro lado, a tradição é o que nos mantém na história, ou seja, o que nos relaciona com as condições laboriosamente adquiridas que facilitam o novo trabalho e possibilitam o progresso. E sem essa relação, não se pode senão bestas, porque somente o secular trabalho da história nos diferencia dos animais ”. Antonio Labriola, Socialismo y filosofia, Buenos Aires, 2004, Antidoto, p. 182
[8].- Mais de uma vez, Lenin insistiu que o marxismo “não é um dogma, mas um guia para a ação“. No mesmo sentido, temos essa extraordinária observação metodológica de Trotsky: “A teoria não é uma letra de câmbio que pode ser cancelada a qualquer momento. Se você falhou, você deve preencher suas lacunas ou revisá-lo. Vamos destacar as forças sociais que deram origem à contradição entre a realidade soviética e o marxismo tradicional. Em todo caso, não se pode errar na escuridão repetindo as frases rituais (…) que são uma afronta à realidade viva “. Leon Trotsky, La revolución traicionada,, Buenos Aires, Antidote, 1990, p. 125
[9].- Há que se recordar aqui que na pós guerra tendeu-se a se caracterizar como “revisionistas” às correntes que (suposta ou realmente) questionavam aspectos da estrutura teórico-programática legada por Trotsky. Em ambas as extremidades, ao “schachtmanismo” e ao “pablismo” – que expressaram efetivamente tendências à capitulação ao imperialismo e à burocracia stalinista – lhes coube este epíteto. As correntes que foram consideradas “ortodoxas” foram aquelas que se recusaram a seguir (desde 1953) os passos da capitulação do Pablo-Mandelismo. Acreditamos que a reação destas correntes contra o “pablismo” era muito progressiva, mas não de acordo com qualquer “ortodoxia” ou “revisionismo” em abstrato, mas com base em considerações de “análise concreta da situação concreta”, isto é , das posições que cada setor expressou. Porque, sem dúvida, pode-se capitular tanto sendo “revisionista” quanto “ortodoxo” (como de fato aconteceu uma vez ou outra no processo). Insistimos: para ambos os casos, há muitos exemplos na história do movimento socialista e revolucionário. Por razões de comodidade, nós chamamos o corpo central das correntes do trotskismo como o trotskismo “tradicional”, sem diminuir as grandes diferenças políticas que as atravessavam.
[10].- Diz Hal Draper: “O fato surpreendente deste esboço sobre as origens do movimento é baseado no período de leitura e estudo intensos de Marx sobre a Revolução Francesa. Isso deixa completamente fora todo o espectro dos jacobinos – não somente Robespierre e Saint Just, mas também Hebert e Marat – em favor de duas tendências pouco conhecidas: os social-girondinos, em torno do ‘Círculo Social’ e Abbe Fauchet e a ala esquerda revolucionária da ascensão (…) os `enragés´, que rejeitavam o jacobinismo e sua ditadura pela esquerda e desde o ponto de vista das classes trabalhadoras (Leclerc, Jacques Roux). Isso é especialmente interessante porque Babeuf e Bounarroti se assumiams como jacobinos-robespierristas; mas aos olhos de Marx, seu comunismo era um ramo especial das idéias jacobinas. Este é, de fato, o sentido em que eu uso o termo ‘jacobino comunismo’ para descrever a tradição babuvista-blanquista (…) Este fato tem sido negligenciado na literatura marxista desde que a interpretação dominante tem sido fortemente influenciada pelos historiadores “robespierristas” como Mathiez e forças políticas como o Partido Comunista Francês, incluindo historiadores capazes como Soboul. Uma situação análoga é observada com respeito à Revolução Inglesa: (…) é a visão similar de Cromwell em oposição aos ‘niveladores’ (Levellers) democráticos, sem mencionar os Verdadeiros Niveladores ou os escavadores (Diggers)”. Em Karl Marx Theory of Revolution, vol. III, Monthly Review Press, p. 361
[11].- Citado en Tony Cliff, Trotskismo después de Trotsky, Londres, Bookmarks, 1999, p. 26.
[12].- Esse é o caso das correntes “autonomistas” inspiradas nos escritos de John Holloway, que afirmam que se pode “mudar o mundo sem tomar o poder”, que tampouco se referenciam na classe trabalhadora. Na Argentina, essa posição é característica de movimentos como o MTD Aníbal Verón, de Luis Zamora e muitos participantes das “assembleias populares” ou membros da antiga vanguarda desmoralizada, das quais derivaram coletivos, como a revista Herramienta.
[13].- Sem dúvida, há incontáveis militantes e líderes revolucionários socialistas importantes, mas aqui queremos nos referir àqueles que resumem de uma maneira mais global essa tradição, já que foram os principais líderes de cada uma dessas expressões. A exclusão de Antonio Gramsci se deve apenas ao fato de ainda não termos estudado o suficiente. (NT – hoje assumido como referencial da corrente)
[14].- No entanto, deve-se dizer que, apesar de seus limites teóricos e programáticos e do fracasso global do projeto fundador que marcou a eclosão do final dos anos 80 e início dos anos 90, o morenismo encarnou no segundo pós-guerra uma das poucas tendências que conseguiu manter-se com um curso geralmente independente de aparatos pequeno-burgueses e contrarrevolucionários, o que não é um mérito menor, mas uma de suas contribuições específicas, positivas e válidas no momento do relançamento do marxismo revolucionário em direção a uma nova síntese.
[15].- Isto não implica, de modo algum, alinhar-se com as correntes que, nas diferentes batalhas da IV desde sua fundação, tenderam a posições ultra-esquerdistas, “anti-defesistas” e/ou espontaneístas, renunciando à construção da organização revolucionária. Vários desses setores acabaram perdendo a bússola e deixaram de discernir a fronteira entre revolução e contra-revolução. Nós desenvolvemos isso no artigo seguinte.
[16].- Ver a respeito os artígos de J. Bragga y R. Ramírez nesta mesma edição
[17].- Não podemos deixar de assinalar que companheiros com quem desenvolvemos parte desta eleboração sobre o balanço da ex-URSS e as revoluções do pós-guerra terminaram em curso político liquidacionista e/ou uma variante da seita utópica. O primeiro caso é o de Andres Romero, que, ao perder de vista a relação dialética entre a ação espontânea das massas trabalhadoras e o problema da aquisição da consciência e da necessidade do partido, praticamente passou a posições autonomistas à la Holloway (“Mudar o mundo sem tomar poder”) e/ou anti-leninistas como Werner Bonefeld e outros. Sua pregação anti-partido e sua falta de perspectiva de classe – inclusive se substitui a classe pelo conceito espantosamente passivo de “vítimas” proveniente da reformista Teologia da Libertação – não deixou nenhum espaço para qualquer coisa convincente. Isto expressou-se de modo flagrante em sua completa perda de pontos de referência no processo do Argentinazo, em que tudo tinha que ser subordinado ao projeto eleitoral de Luis Zamora. Outro setor se juntou à corrente internacional Utopia Socialista, hegemonizada por Socialismo Revolucionário da Itália, que vem teorizando uma concepção ‘anti-política´ e de substituição da centralidade da classe operária na revolução pelo vago conceito de “sociedade civil”. A completa perda de perspectiva de classe da política revolucionária levou-os a acabar apoiando a mobilização reacionária da classe média alta, como as do notório direitista Juan Carlos Blumberg, na Argentina.
[18].- Ver a respeito os artígos de J. Bragga y R. Ramírez nesta mesma edição
[19].- Assinalamos brevemente algumas das características distintivas das revoluções socialistas (triunfantes e derrotadas) na primeira metade do século: as três revoluções russas (1905, Fevereiro e Outubro de 1917), a Revolução Alemã (1918-9 e 1923), a Revolução Hungrara (1918), o grande ascenço operário na Itália (1918-1921), a segunda revolução chinêsa (1925-7) e a revolução espanhola (1931-9). Estas revoluções configuraram uma série de experiências com características próprias, marcadas decisivamente pelo selo que a classe trabalhadora lhes concedeu. Sob essas condições, todas essas revoluções, para além de suas diferenças e desenvolvimento desigual, foram caracterizadas por ter no centro a ação e os métodos de luta do proletariado, o desenvolvimento extremamente forte de tendências de democracia dos trabalhadores e de luta de tendências políticas, no quadro mais geral da expansão, nos cinquenta anos anteriores, de elementos de uma cultura operária e socialista amplamente difundida.
[20].- A respeito, deixamos anotada uma observação metodológica de Naville que nos parece inteiramente apropriada para o período pós-guerra: “(…) o período atual é pouco propício, pela simples razão de sua natureza transitória e das mutações aceleradas, para uma formalização do tipo dos quais elabora Marx em 1850. Para empregar um vocabulário proveniente dos saint-simonianos, estaríamos em um momento crítico, e não orgânico. Os períodos críticos são menos ajustados que os demais para a elaboração de um modelo global formalizado. É necessário que um modelo seja baseado em uma realidade orgânica e constitua um conjunto funcional bem definido e estável por um longo período de tempo (…) Tem este aspecto orgânico a época atual? (…) É exatamente o que falta.” Pierre Naville, El salario socialista, volume 2, p. 27. Esta observação metodológica notável nos dá uma pista sobre como os fenômenos “híbrido” e “transitório” do período pós-guerra devem ser tratados. A dialética materialista de Naville derruba, assim, o escolasticismo do modelo de uma economia que só poderia ser “operária ou burguesa”.
[21].- León Trotsky, La revolución permanente, La Paz, 1989, Crux, pp. 72-73.
[22].- León Trotsky, El Programa de Transición, La Paz, 1989,Crux, p. 60.
[23].- Isso não implica que no período do pós-guerra não houve revoluções com características diferentes. Pelo contrário, a revolução boliviana de 1952 foi uma das mais importantes e com características “clássicas”, isto é, verdadeiramente operária e socialista. Mas acabou em uma derrota, a que contribuiu também a política de capitulação do trotskismo pablista, que apoiou o governo nacionalista burguês do MNR. Também seguiu padrões “clássicos” a revolução portuguesa de meados da década de 1970, bem como – em geral – a ascensão do final dos anos 60 e início dos anos 70 na América Latina e na Europa Ocidental. Em todos os casos, infelizmente, essas revoluções ou processos revolucionários foram derrotados.
[24].- Como diziamos há vários anos: “(…) à luz das deformações do Estado soviético e sua degeneração completa posterior, devemos reafirmar mais do que nunca o caráter da ditadura do proletariado, em relação às próprias massas trabalhadoras, como representação da mais alta democracia operária, da “classe trabalhadora organizada como classe dominante“, tendendo ao máximo desempenho das massas (…) na direção e administração de todos os assuntos do Estado proletário. Isso está ligado (…) com o caráter da ditadura do proletariado, que, desde o início, deve ser somente um ‘semi-estado proletário’, um estado constituido de tal forma que “imediatamente começe a desaparecer e não possa deixar de desaparecer ‘, tendendo à abolição de todo Estado, de toda instituição permanente acima dos trabalhadores. Isto é, tendendo para a reabsorção das funções do Estado pela sociedade trabalhadora, processo que concretamente dará a mão e será marcado pelo ritmo da revolução internacional e da transição ao socialismo no campo econômico e social, numa combinação não linear, mas contraditória.
“(…) Intrinsecamente ligado ao anterior(…), a transição deve levar à liquidação do trabalho assalariado. Esta liquidação do trabalho assalariado, que sobreviveu na Rússia Soviética pelo seu atraso econômico e da pressão do imperialismo, mas também posteriormente pela degeneração burocrática do próprio Estado operário, é uma tarefa gradual, mas absolutamente de princípio, que o stalinismo também obscureceu, apenas porque fse baseou ma simples e completa exploração do trabalho como fonte de privilégios. E esta luta por sua liquidação e por organizar o trabalho conjunto em novos princípios e objetivos é absolutamente de princípios precisamente porque deve significar a própria revolução a nível do processo concreto de produção imediato. (…) Não nos esqueçamos que (…) Marx e Engels identificaram como a tarefa específica mais importante da revolução a liquidação da base económica de toda a exploração e opressão do homem pelo homem”. Roberto Saenz, “Problemas del Estado soviético según la visión de Lenin“, Crítica marxista revolucionaria, 1993. Como já dissemos, essas são tendências que estavam ausentes nos estados não-capitalistas no pós-guerra.
[25].- Quanto ao significado e importância de um verdadeiro processo de transição, vejamos esta observação aguda: “Uma das respostas que tradicionalmente deram Trotsky e seus seguidores a quem criticava a caracterização da URSS como um Estado operário foi que ao longo da história nem sempre a dominação de classe coincidiu com o grupo social que exerce o poder do Estado. Para Trotsky, a dominação de classe se exercia indiretamente através da burocracia, excrescência parasitária (…) No entanto, como assinalamos na crítica às posições de Trotsky, o argumento é abstrato se não nos questionamos até que ponto o exercício de poder por uma fração de classe, ou por qualquer grupo social, efetivamente aponta para o fortalecimento – pelo menos num sentido histórico – da classe que se supõe dominante (…) quando uma classe tem o poder, o que é feito através do Estado, tem um impacto positivo na reprodução das relações de produção das quais essa classe é a portadora dominante. Por outro lado, quando essa ação estatal vai sistematicamente contra a consolidação do poder daquela classe que deveria ser dominante, se produziu uma mudança na natureza de classe do Estado ”. Rolando Astarita, “Relaciones de producción y Estado en la URSS”, Debate marxista, 1998.
[26].- Manuel Martínez, “Crítica de las revoluciones objetivas (apuntes)“, mimeo, capítulo V, pp. 7-14 Embora concordemos com este texto, também temos diferenças importantes, especialmente naquilo que traz a incorreta caracterização de revoluções, em primeiro lugar, como “burocráticas”, o que sugere a ideia errônea de que esses não eram processos genuínos, para além de seus limites e natureza.
[27].- León Trotsky, “Estado obrero, Termidor y Bonapartismo”, 1º de febrero de 1935, em Escritos, tomo VI, Bogotá, Pluma, 1979.
[28].- Perry Anderson, El Estado absolutista, México, Siglo XXI, 1985, p. 413.
[29].- O próprio Trotsky enfatiza esse ângulo muitas vezes em seus escritos do final dos anos 20 e início dos 30: “Em um país onde os meios fundamentais de produção são de propriedade do Estado, a política de condução governamental desempenha um papel direto na economia. e, num certo período, decisivo. Portanto, a questão se resume em saber se a direção é capaz de entender a necessidade de uma mudança de política e se está em posição de realizar essa mudança na prática. Retornamos assim ao problema de determinar em que medida o poder do Estado permanece nas mãos do proletariado e de seus partidos, ou seja, em que medida o poder do Estado continua sendo o da Revolução de Outubro. Não se pode responder a esta pergunta a priori. A política não é governada por leis mecânicas. A força das diferentes classes e partidos é revelada na luta. E a luta decisiva ainda não foi travada “. “Prólogo à “La revolución desfigurada ” (1929), Escritos, volume II.
[30].- R. Astarita, op. cit. Por outro lado, embora Astarita faça uma série de observações de conteúdo e metodológicas uteis com relação às revoluções pós-guerra e à transição, onde se ressente a sua abordagem é quando, recorrendo a um modelo de análise tributário de Ernest Mandel, perde de vista o fundamento material da teoria da revolução permanente em si. Ou seja, a continuação da regra da lei do valor nas sociedades não-capitalistas, bem como a subsistência do trabalho assalariado e a produção de uma mais-valia nacionalizada através de formas relacionadas (embora não iguais) às do capitalismo.
[31].- Essa mudança toma forma no já mencionado artigo “Estado obrero, Termidor y bonapartismo“, em que Trotsky anuncia a consumação do Termidor (termo retirado da Revolução Francesa, no sentido de restauração reacionária) na URSS, mas apenas no terreno político, não social, para o qual a URSS mantinha seu caráter dem Estado operário.
[32].- Esse cuidado metodológico é reiterado ao longo das décadas de 20 e 30, e acreditamos que estava correto, porque uma avaliação mais abrangente só poderia ser feita a posteriori de eventos decisivos da luta de classes, que para Trotsky não seriam outros que não os da Segunda Guerra Mundial que se delineava.
[33].- Michel Pablo, Gerry Healy, Pierre Lambert, Ernest Mandel y Nahuel Moreno, isto é, os principais líderes do movimento trotskista no pós-guerra foram atingidos por esse objetivismo, de magnitude inédita na tradição anterior.
[34].- Uma visão similar da gênese do objetivismo é a de M. Martínez (op.cit.): “(…) pode-se dizer que o problema surge de uma interpretação fechada e absoluta da categoria do próprio Trotsky, que definiu firmemente o caráter operário do Estado soviético (…) apenas pela permanência da propriedade estatal dos meios de produção. A partir dessa definição, tomada como genérica, a maioria do movimento trotskista relativizou quase totalmente os fatores subjetivos. A aplicação fechada e genérica da categoria de Trotsky, na verdade, baseava-se apenas em um fato objetivo: a propriedade estatal dos meios de produção, tomando-a como propriedade estatal em sí supostamente progressista”.
[35].- H. Camarero, J. Dutra, A. Méndez y A. Romero, “Problemas de la revolución y el socialismo“, en Construir otro futuro, Buenos Aires, Antídoto, 2000, pp. 87-88.
[36].- C. Rakovsky, Los peligros profesionales del poder, en www.mas.org.ar.
[37].- Nas condições do início do século XXI, da globalização do capital e do colapso do aparato stalinista, não há possibilidade de que a tarefa da expropriação seja levada a cabo por outra revolução que não seja incorporada pela classe trabalhadora, suas organizações e partidos , a genuína revolução operária e socialista.
[38].- Na Iugoslávia, o tema político da revolução era um partido-éxército do aparato stalinista e seu sujeito social, as massas rurais e urbanas exploradas. Na China (como no Vietnã e na Coréia do Norte), o processo também foi liderado por um partido-exército stalinista à frente de uma revolução camponesa. No caso de Cuba, a revolução foi feita por um movimento armado pequeno-burguês – que só mais tarde se tornou parte do aparato stalinista internacional – liderando uma revfolta popular policlassista.
[39].- Virginia Marconi, China, la larga marcha, Buenos Aires, Antídoto, 1999, pp. 87-88. Também se poderia dizer que o partido-exército tinha a forma de “partido-movimento”, no sentido de que administrando porções de território e pequenas cidades, incluindo a organização da produção, adquiriu (embora em escala muito maior) formas análogas aos dos movimentos sem-terra e de desempregados de hoje.
[40].- León Trotsky, Peasant War in China and the Proletariat, 1932. Tomado do Leon Trotsky Internet Archive (www.marxist.org), 2003.
[41].- O critério metodológico de Trotsky deveria servir de alerta para tantos teóricos do “piqueterismo” no Argentinazo, bem como de explicação do surgimento de caudilhos à frente desses movimentos no estilo de Raúl Castells, que não casualmente é identificado com o pensamento de Mao Tse. Tung.
[42].- Citado em V. Marconi, op. cit., p. 71
[43].- L. Trotsky, Peasant War…, cit.
[44].- Sin embargo, considérese esta observación de Trotsky: “El centrismo burocrático, como centrismo, no puede tener un punto de apoyo de clase independiente. Pero en su lucha contra los bolcheviques-leninistas está obligado a buscar apoyo de la derecha, i.e., de los campesinos y la pequeño burguesía, contraponiéndolos al proletariado”, Peasant War…, cit.
[45].- V. Marconi, op. cit., pp. 77-8.
[46].- Le Monde diplomatique, versão em castelhano, Nº 64, outubro 2004.
[47].- Peasant War..., cit. Não por acaso, Peng Shuzhi (fundador do PC chinês e da Oposição de Esquerda com Chen Tu Siu) enfrentou a capitulação ao stalinismo de Michel Pablo no Terceiro Congresso da Quarta Internacional (1951): “O Congresso não votou um texto sobre a revolução chinesa, e ele se limitou a ouvir o relatório da comissão apresentado pelo camarada Peng Shuzhi (…) Houve aí, sem qualquer dúvida, a maior lacuna do Congresso (…) O longo relatório de Peng (..) .) avaliava que a China seguia sendo um estado burguês inclusive após a vitória revolucionária de outubro de 1949; e que existia na China uma ditadura jacobina pequeno-burguesa (…) Aos seus olhos, três perspectivas eram possíveis: 1) retornar a uma ditadura burguesa; 2) possibilidade de um desenvolvimento para a ditadura do proletariado sob certas condições especiais; 3) possibilidade de uma situação semelhante à da ‘Glacis’ (exceto o exemplo da Iugoslávia), desta forma, de assimilação à URSS; e esta terceira perspectiva é a mais provável.” Em “Os Congressos da IV Internacional”, Paris, La Breche-PEC, 1989, p. 112. Uma posição mais meritória ainda por vir de um dos principais líderes da oposição de esquerda na China e que sustentava a posição “oficial” da URSS como Estado operário.
[48].- É o caso, em especial, do PO da Argentina, que considera o movimento piqueteiro, enquanto dirigido em algumas de suas expressões por correntes socialistas, como constituindo um movimento socialista por si mesmo, o que é claramente um despropósito.
[49].- Nahuel Moreno diferenciava entre revoluções socialistas “inconscientes” e “conscientes” para diferenciar as revoluções do pós-guerra da de outubro de 1917. No texto a seguir, criticamos essa concepção que, por outro lado, constitui uma matriz comum de tendências como o PSTU. do Brasil e do MST argentino, com base (ainda que, seja justo dizer, vulgarizando-a ao extremo) nessa reformulação equivocada de Moreno da teoria da revolução permanente. Por exemplo, o MST viu no Argentinazo clara e simplesmente uma “revolução operária e socialista”, e a mesma avaliação fez o PSTU do outubro boliviano em 2003.
[50].- Moreno resumiu isso, de acordo com uma célebre expressão, dizendo que “a realidade tinha sido mais trotskista” do que as próprias previsões de Trotsky.
[51].- É aí que se nota a presença da classe trabalhadora, com seus hábitos, métodos e tradições de luta coletiva que partem da base material, isto é, determinadas pelas condições em que trabalham e formam seu caráter certos elementos distintivos da classe que, na ausência desta, logicamente, não entram na cena histórica.
[52].- Osvaldo Garmendia, Crítica a Nahuel Moreno desde el trotskismo, 1991, mimeo, versão corrigida em 1995.
[53].- Muitas vezes esquece-se que a visão de Preobrajensky tinha fortes elementos objetivistas e economicistas. Quando em sua valiosa obra La nueva economía (1926) teoriza sobre uma competição quase objetiva entre a “lei do plano” e a lei do valor na economia soviética, abre a porta para que a burocracia apareça como “agente objetivo” das necessidades do Estado operário. Isto se tem demonstrado completamente equivocado: não há “lei do plano” que por si só possa expressar os interesses da classe operária no seio da economia de transição. Para que a planificação flexível esteja realmente a serviço da classe trabalhadora, esta deve tomá-la em suas mãos de maneira efetiva e consciente.
Consideremos, por outro lado, o ponto de vista de Trotsky a este respeito: “A análise da nossa economia do ponto de vista da interação (tanto em seus conflitos como em suas harmonias) entre a lei do valor e a lei da acumulação socialista é, em princípio, uma abordagem extremamente proveitoso; mais precisamente, o único correto (…) Mas agora há um perigo crescente de que esta abordagem metodológica seja convertido em uma perspectiva econômica acabada que preveja o ‘desenvolvimento do socialismo num só país’. Há motivos para esperar, e temer, que os seguidores desta filosofia, que se basearam até agora em uma citação mal compreendido de Lenin, vão tratar de adaptar a análise de Preobrajensky tornando uma abordagem metodológica em uma generalização para um processo quase autônomo (…) A interação entre a lei do valor e a lei da acumulação socialista deve ser colocada no contexto da economia mundial. Então, ficará claro que a lei do valor que opera no âmbito limitado da NEP está complementada pela pressão externa crescente da lei do valor que domina ao marcado mundial e que está se tornando cada vez mais forte. ” Leon Trotsky: “Notas sobre cuestiones económicas” (1926), em Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición. Compilação de escritos de Leon Trotsky, Buenos Aires, CEIP, 1999, p. 365. Evidentemente, foi o próprio Preobrajensky quem escorregou à inclinação desta “filosofia objetivista” que apontara Trotsky.
[54].- Consideramos que essa especificidade do segundo pós-guerra dificilmente se repita. A posição mundial da burocracia naquele momento histórico foi realmente excepcional em virtude do grau de independência de que gozava, estando à frente de imensos Estados sem ter ao seu lado uma classe realmente proprietária. No momento presente, em caso de reiniciar-se uma dinâmica de revolução que vise a expropriação da burguesia, só vemos possível essa tarefa enfrentada pela classe operária. Não há outro setor social que possa levá-lo adiante, e muito menos nas condições do imperialismo em sua fase de mundialização.
[55].- A realização distorcida dessas tarefas nas mãos da burocracia recolocou ao fim, em outras condições, novas relações de opressão e exploração. Insistimos que este é o caso – por exemplo – da questão nacional nos países do Leste Europeu, mas também dos desastres provocados no campo pela coletivização forçada na Rússia ou o “grande salto adiante” no final dos anos 50 na China. De qualquer forma, o registro histórico-concreto dessas experiências exigiria outro tipo de abordagem que não estamos em condições de desenvolver aqui.
[56].- Le Monde diplomatique, ed. em castelhano, Nº 64, outubro 2004.
[57].- “¿Qué modificar y qué mantener en las tesis del II Congreso Mundial sobre la cuestión del estalinismo?”. Em Los Congresos de la IV Internacional, cit., p. 58.
[58].- Idem, p. 55. Fica claro que na Europa do Leste (sem qualquer tipo de revolução), assim como na China, Iugoslávia, Vietnã e Cuba, onde as ações de massa tomavam a forma de um movimento revolucionário, a revolução se fez por fora e sem nenhuma participação da classe trabalhadora. O “critério principal” que estamos apontando, o progresso na organização e consciência da classe trabalhadora, não se verificou de forma alguma.
[59].- Rosa Luxemburgo, “¿Desgaste o lucha?”. Em Debate sobre la huelga de masas, México, Pasado y Presente, 1975, p. 164.
[60].- Rosa Luxemburgo, “La teoría y la praxis”, idem, p. 244.
[61].- Agora mesmo temos o exemplo de muitas fábricas cooperativadas na Argentina, que mesmo de forma distorcida são uma imensa conquista em face da catástrofe econômica em que o país mergulhou, mas que está sendo reabsorvida sob uma orientação absolutamente economicista.
[62].- “A un siglo del `¿Qué Hacer?´ de Lenin “. Roberto Saenz, SoB 15. Na mesma linha Jorge Sammartino diz: “Porque ainda que a classe trabalhadora seja capaz de elevar-se bem acima do sindicalismo e o demonstrou ao longo do século XX, não só na experiência soviética 1905 ou 1917, senão na experiência dos conselhos de Turim (…), o conselhismo alemão, (…) ou as experiências dos anos 70 (…), nenhuma dessas experiências de auto-organização pode substituir o papel centralizador da experiência histórica, o programa e a teoria marxista, da qual apenas os partidos revolucionários podem ser portadores. Em última instância, se algo caracterizou o pensamento de Lenin e mantém toda a sua validade hoje é a distinção entre a classe trabalhadora (…) e o partido revolucionário. Uma distinção que também implica uma separação – sempre relativa – entre o campo especificamente político e no campo social, incluindo a luta de classes que surge como resultado da disputa espontânea pela repartição da mais-valia (…) com todas as críticas que possamos fazê-la, D. Bensaïd tem razão quando argumenta que as relações sociais de força não têm uma tradução automática no terreno político. De fato, este terreno tem sua independência relativa e é um campo específico “. Em “Contribución al rearme teórico y político del PTS“, na brochura “Debate al interior del PTS. Fundación de Socialismo Revolucionario“, Buenos Aires, 2004.
[63].- Para dar um exemplo, aí está o desastre da questão nacional-democrática em toda a Europa do Leste, trazida hoje ao paroxismo pela restauração simples e plena do capitalismo, mas também pela desastrosa herança stalinista.
[64].- Moreno definiu erroneamente e de forma reducionista, durante a década de 80, que o que caracterizaria o trotskismo seria a “democracia operária”, “revolução internacional” ou “centralidade da classe operária”. Entre outros, O. Garmendia criticou corretamente esta concepção, na medida em que, tomados isoladamente, estes elementos não fazem uma teoria específica da revolução.
[65].- Expressão, que saibamos, cunhada pelos companheiros de Socialismo Revolucionario de Italia.
[66].- Nesse sentido, tomamos as críticas de Pierre Naville a Bruno Rizzi, uma polêmica desenvolvida no final dos anos 50 e início dos anos 60: “Rizzi foi o primeiro a apresentar uma concepção sistemática da” burocratização “da economia e, consequentemente, da apropriação orgânica da sobreproduto social por uma classe de burocratas (…) a burocracia estatal é uma classe exploradora sui generis (…). Minha objeção é que essa análise superficial deixa sem explicação o mecanismo de produção e apropriação da mais-valia, e até mesmo a repartição do lucro (…). Apesar das mudanças em suas exposições sucessivas, Rizzi nunca explicou em que consiste a “exploração burocrática”, exceto referências históricas (analogia com a servidão feudal), ou descrições externas “. Naville, cit., Volume 3, pp. 263-4.
[67].- Construir otro futuro, p. 112.
[68].- C. Rakovsky, cit..
[69].- C. Rakovsky, “Declaración en vista al XVI Congreso del PCUS” (12-4-1930). En A. Romero, Después del estalinismo, cit.
[70].- León Trotsky, La revolución traicionada, pp. 233-4. Rsulta claro que este foi exatamente o curso dos acontecimentos históricos ao longo de décadas de controle burocrático sobre esses estados até a queda do Muro.
[71].- Andrés Romero, Después del estalinismo, p. 121.
[72].- Idem. Agrega Romero, citando a Henri Lefebvre: “A burocracia é ou não uma classe? Falso problema. Não existem ‘classes’ definidas estaticamente (…) Considerada dinamicamente, a burocracia: a) sereforça com o Estado, em detrimento de outros estratos e classes, inclusive da classe trabalhadora (…); b) torna-se, como Hegel imaginou, não um simples “estrato” no edifício social e político, senão o suporte-produto do Estado moderno (…); c) identifica-se com o núcleo central da classe média, que se fortalece e reforça ao envolvê-lo com um tecido social denso; d) se diferencia em estratos e sedimentos, sem perder sua função global: apoio e instrumento, produtos enqunto tais, do Estado.” E acrescenta: “Pode-se afirmar que a burocracia tende a constituir uma realidade sócio-política própria, tornar-se autônoma em relação à sociedade como um todo. Mas não chega a se constituír em classe”. Cit., p. 122.
[73].- Paradoxalmente, quase toda a “ortodoxia” ignorou a advertência de Trotsky de que “(…) as relações de propriedade estabelecidas pela revolução socialista estão indissoluvelmente ligadas ao novo Estado, que é seu portador. O predomínio das tendências socialistas sobre as tendências pequeno-burguesas é assegurado não pelo automatismo econômico, do qual ainda estamos distantes, mas pela potência política da ditadura. O caráter da economia depende, pois, inteiramente do caráter do poder “.
[74].- L. Trotsky, La revolución permanente, pp. 7 y 11.
[75].- Deve-se notar que Nahuel Moreno tinha grande consideração pelo trabalho de Naville, para além de que, até o fim de sua vida, ele permaneceu fiel à definição da URSS e dos países do Leste como Estados operários.
[76].- Trotsky, até sua morte, recusou-se a aceitar que na URSS eles estavam começando a se desenvolver relações de exploração (é por isso que ele fala de saque), que foi em nossa compreensão o que finalmente aconteceu, embora essas relações de exploração não foram orgânicas e não deram origem a uma nova classe exploradora, como sustentavam os defensores das teorias do coletivismo burocrático e do capitalismo de Estado.
[77].- Na década de 20 uma discussão muito rica e muito educativa se desenvolveu sobre este problema; para um aprofundamento a esse respeito, remetemos a Naville, El nuevo Leviatán, vol. 3.
[78].- Construir otro futuro, p. 111.
[79].- P. Naville, El nuevo Leviatán, tomo 2, capítulo 5, pp. 7-8.
[80].- Somente essa planiificação flexível baseada na democracia mais ampla dos trabalhadores é a verdadeira introdução do princípio da “racionalidade” na produção a que se referem, por exemplo, os colegas do PTS. Há muitos exemplos ilustrativos de que na URSS, antes da total ausência dessa democracia dos trabalhadores, a planificação, ao invés de introduzir elementos de racionalidade, gerou mecanismos de gestão absurdos e irracionais apenas para atingir formalmente os objetivos do plano burocrático.
[81].- P. Naville, cit., tomo 2, capítulo 3, pp. 150-152.
[82].- Trotsky, en su crítica al primer plan quinquenal, distinguía en las relaciones de producción de la sociedad transicional –aunque nunca desarrolló hasta el final este ángulo desde el punto de vista teórico– tres elementos: el dinero, la planificación estatal y la democracia de los trabajadores. Por supuesto, esto implica partir de reconocer el imperio de la ley del valor, que para Trotsky, en oposición al voluntarismo estalinista de los 30, operaba “no menos, sino más” que antes de la revolución. Y aunque su formulación no fuera tan sistematizada o taxativa, es indudable que para Trotsky la planificación consciente y la democracia de los trabajadores eran parte esencial de las relaciones sociales de producción. Trotsky, em sua crítica ao primeiro plano quinquenal, distinguia nas relações de produção da sociedade de transição – embora nunca tenha desenvolvido esse ângulo do ponto de vista teórico – três elementos: o dinheiro, a planificação estatal e a democracia dos trabalhadores. Naturalmente, isso implica partir do reconhecimento do domínio da lei do valor, que para Trotsky, em oposição ao voluntarismo stalinista dos anos 30, operou “não menos, mas mais” do que antes da revolução. E, embora sua formulação não tenha sido tão sistematizada ou exaustiva, é inquestionável que, para Trotsky a planificação consciente e a democracia operária eram parte essencial das relações sociais de produção.
[83].- El capital, tomo III, em El nuevo Leviatán, cit.
[84].- P. Naville, idem, p. 152.
[85].- L. Trotsky, La revolución traicionada, p. 104.
[86].- P. Naville, cit., p. 156.
[87].- Idem, p. 159.
[88].- Ainda que descritivamente, em A Revolução Traída (Capítulo IX) Trotsky mostrava as diferenças materiais e factuais que subsistem entre o dignitário (para quem a propriedade jurídica é tudo) e a criada, para quem, no limite, não era nada. Porque a estatização só havia mudado sua situação juridicamente mas não realmente.
[89].- No universo categorial de Trotsky para a análise do Estado soviético, fala-se constantemente das relações da distribuição e das forças produtivas. Mas permanece ausente na análise conceitual, se bem que não na descrição, a análise das relações de produção, que são o que necessariamente estruturam em toda sociedade a relação metabólica da produção material do homem com a natureza. A combinação de forças produtivas e relações de produção constitui o núcleo do modo de produção, enquanto base material da sociedade, embora, no sentido histórico do termo, os países do Leste não conformaram um tipo ideal de modo de produção, mas que constituíram formações sociais não-capitalistas híbridas e desigualmente desenvolvidas.
[90].- Karl Marx, Introducción general a la crítica de la economía política (1857), pp. 45-50. México, Pasado y Presente, 1984.
[91].- Construir otro futuro, p. 115.
[92].- R. Astarita, cit.
[93].- León Trotsky, “Cuestiones del trabajo ruso”, 17-2-39. Oeuvres, Tomo XX, París, ILT, 1980, p. 135.
Notas sobre a teoria da revolução permanente no início do século XXI
Segunda Parte
As Revoluções do Pós-Guerra e o Movimento Trotskista
Trotsky ganhou relevo no momento mais obscuro do século XX. Daí seu mérito imperecível e sua contribuição para a tradição do marxismo revolucionário e militante. Não temos a possibilidade de desenvolver aqui uma estimativa do valor do processo anterior à fundação da IV Internacional ou de sistematizar os debates em torno dela. Mas queremos assinalar com toda a clareza a nossa posição acerca da inquestionável legitimidade histórica da fundação da IV Internacional e do seu mérito de haver organizado o marxismo revolucionário no pior momento da história da luta das classes trabalhadoras, desde sua constituição em movimento dos trabalhadores, no século XIX.[1]
O Próprio Trotsky se mostrou consciente de sua obra quando valorizou a fundação da IV como a tarefa que ninguém – nesse momento histórico determinado – havia podido fazer por ele.
Desde este ponto de vista, é relevante anotar aqui os fundamentos teóricos da cerrada oposição de Isaac Deutscher (conhecido biógrafo de Trotsky) à fundação da IV Internacional, em função de uma concepção objetivista e capituladora que via a burocracia stalinista como “progressista” e “realizadora do legado de outubro”, tal como resume Alex Callinicos: “(…) Deutscher está completamente fascinado – pode-se dizer obcecado – por analogias entre a revolução burguesa (a francesa em particular) e a revolução bolchevique. (…) Deutscher postulava uma lei geral histórica [ou supra histórica – RS] segundo a qual as revoluções se moviam de uma fase de mobilização popular, na qual os revolucionários gozavam de apoio popular, para outra, na qual eles são levados pelos acontecimentos a estabelecer uma ditadura minoritária que preserve as conquistas da revolução ao preço da repressão (…) da extrema esquerda (..). O surgimento de Stalin, como Cromwell e Napoleão antes dele, era historicamente inevitável. Mais ainda, representava não a traição da revolução, mas sua continuação. (…) A questão subjacente ao modo de apresentação de Deutscher é que a classe trabalhadora russa e a classe trabalhadora internacional não estavam maduras senão para um papel passivo frente aos acontecimentos e que Stalin tinha que levar adiante a “revolução desde cima” na própria Rússia (1929-1932), para exportar a revolução a partir de 1940 em diante. (…) Esta abordagem elitista – a assunção, ainda que não explícita, de que o socialismo pode ser imposto desde cima sobre uma população que não o deseja ou sobre um povo ignorante, tem uma larga tradição no movimento trabalhista”.[2]
O desenvolvimento da Segunda Guerra Mundial significou um tremendo desafio para o nascente movimento trotskista. Trotsky foi assassinado em agosto de 1940 e o movimento deveria ver-se sem o seu mais experiente dirigente. De fato, ainda hoje há discussões dentro do trotskismo acerca da posição frente à guerra mundial, que na verdade combinou vários tipos de conflagração em seu seio: a) a guerra imperialista entre os países do Eixo e os Aliados; b) uma guerra de conquista e recolonizarão por parte da Alemanha nazista contra a URSS; c) uma guerra de libertação nacional no seio dos países ocupados pelo exército alemão; d) finalmente, uma série de batalhas contra o imperialismo nos países colonizados ou sem colonizados da Ásia e África. Isto causou uma tremenda complexidade a respeito da posição da IV ante a guerra, cuja especificidade não podemos abordar aqui.[3] Só cabe assinalar que todo este período histórico se caracteriza por um entrelaçamento de guerras e revoluções, no qual o critério de classe de análises e de situação política dos revolucionários alcançou dificuldades, por vezes, inéditas.
Em todo caso, podemos dizer que é quase comum assinalar que o desenvolvimento dos acontecimentos seguintes a Segunda Guerra não seguiu as previsões que inicialmente havia feito Trotsky antes de seu assassinato. O fracasso dos levantes revolucionários que se deram imediatamente após o término da guerra na Europa Ocidental e no Japão (em boa medida sufocados pelos PCs) somado ao fortalecimento e relegitimação do aparato stalinista depois da derrota do nazismo e do boom econômico que viveu o capitalismo entre os anos 1950 e 1970 e a afirmação da hegemonia imperialista mundial em mãos dos Estados Unidos, transferiram o centro do processo revolucionário aos países do chamado Terceiro Mundo, com menos peso de trabalhadores do que os centrais. O imperialismo assegura o centro do sistema e a burocracia aceita a “administração” de boa parte da periferia. [4]
Neste contexto, a IV, longe de fazer-se de massas, viveu de crise em crise, sob a pressão que lhe introduziu a aspiração de deixar a marginalidade política e a tremenda distorção das bandeiras do autêntico socialismo que significavam os supostos “Estados trabalhadores” em um terço do mundo. De fato, o trotskismo, no período do pós-guerra, esteve caminhando decisivamente com a atitude de tomar a frente de processos que deram lugar às revoluções da China, Iugoslávia, Cuba e Vietnam, assim como ao processo de descolonização na Ásia e na África e o significado do avanço do Exército Vermelho nos países do chamado Glacis (Europa do Leste). [5] Este debate se deu ao lado da discussão acerca do caráter social da URSS, logo depois do assassinato de Trotsky e da guerra mundial.
Sem Trotsky, a própria Segunda Guerra Mundial e a emergência destas complexas revoluções e/ou processos revolucionários significaram um desafio maiúsculo para a nova organização internacional e foram os motivos fundamentais que deram lugar à divisão da IV, já no ano de 1953.
Neste difícil contexto, várias correntes foram se delineando com o transcorrer dos anos: por um lado o “oficialismo” da IV Internacional, representado por Michel Pablo e Ernest Mandel. Por outro lado, o sector em torno do SWP norte-americano encabeçado por James Cannon, a metade da seção francesa sob a condução de Pierre Lambert e parte importante do trotskismo inglês, tendo a frente Gerry Healy formaram o Comitê Internacional, ao qual se somou, anos depois, a corrente de Nahuel Moreno. [6]
Por fora ficaram várias correntes como o atual SWP inglês (Tony Cliff), a corrente conhecida historicamente como The Militant, sob a condução de Ted Grant e a Lutte Ouvrière da França. Do mesmo modo, as correntes “antidefensivas” (da URSS): primeiro, o schachtmanismo (que fundou o Workers Party em 1940, antes da morte de Trotsky) e logo depois o grupo Socialismo o barbárie (1948).
Destas expressões, nos referimos centralmente às posições teórico-programáticas que são hoje mais significativas no âmbito internacional: o Secretariado Unificado (cujo partido principal e a LCR francesa), a Tendência Socialista Internacional (SWP inglês) e os partidos ou correntes que surgiram com a explosão do morenismo (PSTU brasileiro, MST e PTS da Argentina). Ao mesmo tempo, estabeleceremos também uma superficial, mas imprescindível delimitação a respeito da corrente “antidefensiva”.
Revoluções ou contrarrevoluções?
Não dedicaremos demasiado espaço neste trabalho à corrente “coletivista burocrática” (também chamada “antidefensiva”), devido ao fato de que não tem hoje expressão de importância. [7] Sem embargo, consideramos imprescindível deixar estabelecida sua completa falta de perspectiva e seu impressionismo, que os levou a uma tendência à capitulação ao imperialismo e, nos fatos, considerar as revoluções do pós-guerra como contrarrevoluções. Trata-se de uma completa falta de posição histórica e política, porque o ponto der partida básico de um socialista revolucionário é poder distinguir revolução de contrarrevolução, como também uma nação imperialista de uma dependente, semicolonial ou não capitalista.
Concretamente, houve duas importantes correntes “antidefensivas”. Uma, a inspirada por Marx Schachtman nos Estados Unidos, proveniente da ruptura do SWP americano, em abril de 1940 e que constituiu o primeiro grande divisor de águas na história da IV. [8] Junto com esta, no âmbito da seção francesa, a ruptura que deu lugar a Revista Socialismo o Barbárie de Castoriadis e Lefort em 1948. [9]
A tendência schachatmanista terminou assumindo um ângulo stalinofóbico totalmente desprovido de perspectiva histórica. Isto foi produto de uma análise superficial e redutivamente “endógena”, que tendia a perder a raiz materialista fundamental da unidade da economia mundial como totalidade (fundamento da teoria da revolução permanente de Trotsky). É assim que tendeu a considerar a URSS e os países não capitalistas como expressões de uma “regressão histórica” e de desenvolvimento de uma barbárie, frente as quais os países centrais do imperialismo apareciam como progressivos”. Porque, se o regime stalinista significava o “declive da civilização”, a negação “reacionária” do capitalismo resultava ser pior que aquele e devia se defender o capitalismo frente à “barbárie stalinista”.
O “antidefensivismo” rechaçava uma formação social que a nosso entender não era trabalhadora e muito menos socialista, mas que configurava sociedades não capitalistas e, nesse sentido, subordinadas e oprimidas pelo capitalismo mundial, de onde se haviam obtido uma série de conquistas, mas que se foram degradando.[10] Portanto, era uma obrigação defendê-las do imperialismo como tais, desde uma perspectiva de classe e independente. Aqui, este “antidefensivismo” se transformava em defesa do capitalismo mundial.
Na famosa discussão de 1939-1940, no seio do SWP dos EUA, Trotsky defendia “A linha marxista de conduta na guerra está determinada não por considerações sentimentais ou de moral abstrata, senão por apreciação social de um regime em suas relações recíprocas com outros regimes. Apoiamos a Abissínia não porque o Negus fosse política ou moralmente superior a Mussolini, mas porque a defesa de um país atrasado contra a opressão colonial assenta um golpe contra o imperialismo que é o principal inimigo da classe trabalhadora. Defendemos a URSS, independente da política do Negus de Moscou por duas razões fundamentais: a primeira, a derrota da URSS proporcionaria ao imperialismo novos e colossais recursos e prolongaria por muitos anos a agonia da sociedade capitalista; a segunda porque as bases sociais da URSS liberada do jugo da burocracia parasita podem ter um progresso econômico e cultural limitado, enquanto que as bases capitalistas não oferecem outra possibilidade senão a de uma maior decadência.” [11]
Esta posição nos parece metodológica e politicamente correta, além do que, em nosso conceito e desde o ponto de vista da atualidade, a defesa da URSS já estava esboçada não no estado operário, senão na formação social não capitalista.
A postura antidefensiva, por outro lado, derivou em uma posição de frente única com a social democracia imperialista contra a suposta barbárie “antitrabalhadora e antiburguesa” do stalinismo. Isto é, transladava-se sua atuação nos países capitalistas e imperialistas, onde se assimilavam mecanicamente os PCs à burocracia do Kremlin, somente para terminar nos braços da burocracia social democrata. Isto se pode ver em um texto de Schachtman de 1948: “O stalinismo é uma corrente reacionária, totalitária, antiburguesa e antitrabalhadora no movimento dos trabalhadores, mas não do movimento dos trabalhadores (…) Donde, como é a regra hoje em dia, os ativistas não sejam ainda suficientemente fortes para liderá-lo diretamente, daí a luta pelo controle do movimento dos trabalhadores se produza entre reformistas e stalinistas. Seria absurdo para os ativistas proclamar “neutralidade” e fatal para eles apoiar os stalinistas. Sem nenhuma dúvida, deveriam seguir a linha geral dentro do movimento dos trabalhadores, de apoiar o reformismo oficial frente ao stalinismo. Em outras palavras, onde não seja possível alcançar, nos sindicatos, a direção para os militantes revolucionários, preferimos a direção dos reformistas, que tratam de manter a seu modo um movimento dos trabalhadores, em lugar da direção dos stalinistas totalitários, que tratam de exterminá-lo.”[12]
Daí ao ingresso no Partido Democrático em 1958, ao apoio ao Estados Unidos em Cuba e na guerra do Vietnam e à presidência de Nixon na década de 1970 só houve um passo.[13]
A base teórica de tudo sito foi que esta tendência nunca pode definir, desde o ponto de vista do marxismo, em que consistia o “coletivismo burocrático” no marco, como dizíamos acima, de uma perda do fundamento materialista da revolução permanente e da unidade mundial como totalidade.
Neste marco, se assinalava incorretamente a existência de um novo “modo de produção”, inclusive superior ao capitalismo, assim como também de uma “nova classe exploradora” orgânica, mas nunca foi capaz de aportar uma análise materialista e a perspectiva histórica de tal circunstância. Sua posição resultou assim a uma transferência, com armas e bagagens, a um ponto de vista idealista e ahistórico, por fora do contexto das tendências histórico-materiais.
Concordamos, então, plenamente com a crítica de Pierre Neville a Bruno Rizzi, expoente histórico da posição “coletivista burocrática”: “Bruno Rizzi foi o primeiro a haver apresentado uma concepção sistemática da burocratização da economia e, portanto, da apropriação orgânica do subproduto social por uma classe de burocratas. (…) Esta tese foi retomada de distintas formas depois que Rizzi a expôs e também teve seus predecessores. Refiro-me aqui somente à substância: a burocracia do Estado é uma classe exploradora sui generis, no sentido que a burguesia capitalista era uma classe exploradora do proletariado assalariado. Minha objeção é que essa análise superficial deixava sem explicação dos mecanismos da produção e apropriação da mais-valia, inclusive aquele da repartição dos ganhos considerado como um fenômeno de exploração de uma classe por outra. Apesar das variações de suas exposições sucessivas, Rizzi nunca logrou explicar o que é a “exploração burocrática”, salvo por referências históricas (analogia com servidão feudal), ou descrições externas”.[14]
Pelo lado de Castoriadis e Lefort, também a perspectiva histórica era completamente errada. Falavam de um “capitalismo burocrático” com “estágio superior” do próprio sistema.
Qual é o significado histórico desse regime? Pode-se dizer que representa a última etapa do modo de produção capitalista, na medida em que a concentração de capital, fator essencial de desenvolvimento do capitalismo, alcança seu último limite, posto que todos os meios de produção estão a disposição de um poder central e são dirigidos por este, que expressa os interesses da classe exploradora. É também a última etapa do modo de produção capitalista, na medida em que realiza a exploração mais extrema do proletariado. Podemos, pois, defini-lo como o regime do capitalismo burocrático (…) tanto a burguesia como a burocracia são classes, na medida em que personificam a dominação do capital sobre o trabalho (…) a burocracia é uma classe exploradora, “relevo” histórico da burguesia. (…) Os Estados Unidos estão muito atrás da URSS no que respeita ao grau de concentração do capital. [15]
No caso desta expressão do “antidefensivismo”. Fica claro que o regime social da URSS era visto como um regime de exploração orgânico, ao que tendia todo o capitalismo mundial e de onde a burocracia constituía uma classe histórica de pleno direito. Inclusive o grau de exploração do trabalho seria maior do que sob o capitalismo imperialista e a URSS tendia a superação dos Estados Unidos enquanto sistema social. Em resumo, um impressionismo sem limites, uma total falta de correta perspectiva histórica que, como se disse, confundia os terrenos da revolução e contrarrevolução, rompendo com a base materialista da revolução permanente.
Revoluções burguesas?
No contexto da polêmica no movimento trotskista do pós-guerra e do debate em torno da natureza da URSS e das revoluções que estavam em curso, uma das correntes ou expressões que surgiram e se manteve à margem das distintas divisões e unificações entre as correntes trotskistas majoritárias foi a de Toni Cliff e a tendência por ele fundada, Socialismo Internacional.
O surgimento desta corrente teve lugar durante a polêmica acerca da guerra da Coréia, onde os integrantes do Socialist Review Group foram expulsos do Partido Comunista Revolucionário, principal organização trotskista da Inglaterra na década de 1940. [16]
Mas além do motivo inicial desta divisão, que veremos a seguir, esta corrente tendeu a configurar uma posição com um flanco programático forte: sua delimitação considerava que nem a URSS, a partir dos anos 1930, nem os demais países do Leste Europeu eram Estados operários.
“Um elemento que Trotsky enfatizava como prova do que era um Estado operário (ainda que degenerado) era a ausência de propriedade privada em ampla escala e o predomínio de propriedade estatal. Sem embargo, é um axioma do marxismo que o considerar a propriedade privada independentemente das relações de produção é criar uma abstração supra histórica. A história humana conheceu a propriedade privada do sistema escravista, do sistema feudal, do sistema capitalista, todas as quais são fundamentalmente distintas entre si. Marx ridicularizou o intento de Proudhon de definir a propriedade privada independentemente das relações de produção.”[17]
Sem embargo, a definição das revoluções do pós-guerra como “burguesas” e dando lugar a sociedades definidas como “capitalistas de Estado” – e a URSS, inclusive como imperialista – deu lugar a consequências políticas extremadamente sectárias e unilaterais, cujo problema principal foi também a perda de correta perspectiva histórica frente aos principais acontecimentos da luta de classe desse período. Via a burocracia russa como a negação parcial da classe capitalista tradicional, sendo ao mesmo tempo a mais verídica personificação da missão histórica da classe. [18]
Isso partia de uma compreensão equivocada da teoria da revolução permanente, no sentido de que, em meados do século XX, seguiriam sendo possíveis revoluções burguesas. É certo que a característica específica da revolução socialista é a intervenção das mais amplas massas operárias e populares de maneira consciente no processo histórico. E, efetivamente, esta condição essencial esteve marcadamente ausente ao longo de todas as revoluções do pós-guerra. Mas esta corrente cometeu o grave erro de apreciação de considerar todos estes processos como “revoluções burguesas”, uma avaliação que tendia a posicionar sua corrente totalmente por fora dos processos revolucionários tal como se deram.
Alex Callinicos, atual dirigente do Socialismo Internacional, resume as posições de sua corrente: “O Socialist Review Group assumiu uma aproximação similar durante a Guerra Fria, negando-se a apoiar nem o Bloco do Leste nem o do Oeste. Ao contrário, baseou suas esperanças na revolta da classe trabalhadora desde baixo, uma posição resumida no lema: “Nem Washington, nem Moscou, Socialismo Internacional”. Considerando o conflito Este – Oeste como Inter imperialista, esta luta implicava o derrotismo revolucionário primeiramente desenvolvido por Lênin durante a Primeira Guerra Mundial, mais que a stalinofobia schachtmanista. Mas em geral, a teoria de Cliff sobre o capitalismo de Estado fazia possível restabelecer a ideia do socialismo como auto emancipação da classe trabalhadora no lugar central que lhe dava Marx. Se não somente a União Soviética, mas também os Estados do Leste da Europa, China, Vietnam e Cuba representavam não um socialismo deformado, senão uma variante do capitalismo, então não podia haver questão de socialismo alcançado sem a auto atividade da classe trabalhadora”.[19]
O problema é que, para lá da correta preocupação por estabelecer uma compreensão do marxismo revolucionário de maneira autêntica, nos parece que a esta altura dogmática igualdade entre o imperialismo mundial e as sociedades não capitalistas – mas tampouco Estados trabalhadores – tendia a uma posição política sumamente incorreta frente a URSS e, sobretudo, frente as reais, ainda que distorcidas, revoluções em curso.
Por exemplo, na Guerra da Coréia, o Socialismo Internacional teve a incorreta posição de que o enfrentamento entre as duas Coreias era uma guerra entre imperialismos rivais, o que nos parece um desposicionamento total acerca do conteúdo central desse conflito, de tal magnitude que ceifou a vida de dois milhões de pessoas. Recordemos que a Coréia do Sul recebia o apoio dos Estados Unidos, que acabava de explodir a bomba atômica, e a Coréia do Norte, o da China, que acabava da sair da revolução.
Insistimos em que, além de toda outra consideração, a posição de Tony Cliff frente à Guerra da Coréia foi totalmente equivocada. E isto era o produto político direto da definição teórica da URSS e China como “capitalismos de Estado”, que tendia erroneamente a igualar os Estados Unidos e estes países como “imperialistas”, com a gravíssima consequência de perder de vista as relações de opressão entre países realmente imperialistas e outros que configuravam sociedades não capitalistas, impossíveis de assimilar ao imperialismo. Já voltaremos a isto.
Outro elemento que mostra a debilidade da postura da SI é a pergunta acerca de qual dos regimes sociais era mais progressista. Porque ainda até mesmo se não considerasse o regime social dos países do Leste como Estados trabalhadores, havia que defende-los como formações sociais não capitalistas, subordinadas em última instância à economia capitalista mundial, como assinalava Trotsky no debate com os “antidefensistas”.
Os mesmos problemas de posicionamento surgiram a respeito das revoluções do pós-guerra: “(…) as grandes revoluciones do Terceiro Mundo – China, Cuba, Vietnam – (…) os trotskistas as viam como confirmação da teoria da revolução permanente de Trotsky e afirmavam que delas resultavam novos, embora deformados, Estados trabalhadores. Cliff rechaçou esta conclusão, dado que implicava em que o socialismo podia ser alcançado sem a auto atividade da classe trabalhadora (…) Cliff aduziu vários fatores, sobretudo a subordinação política da classe trabalhadora nos países atrasados, sua dominação por políticas de colaboração de classes, usualmente por intermédio do stalinismo – para dar conta da passividade do proletariado no Terceiro Mundo. O vazio resultante foi preenchido por outra força social, a intelectual urbana (…) Os novos regimes revolucionários não eram, sem embargo, Estados trabalhadores do tipo que foram, senão ao contrário, novos capitalismos de Estado burocrático, reprodução do padrão stalinista original. Cliff descreveu estes processos como “revolução permanente desviada”: a dinâmica social analisada por Trotsky, na ausência de um movimento da classe trabalhadora dirigida pelo estado marxista. Levava a uma variante particular de revolução burguesa.” [20]
Isto, evidentemente, não deixava de ser unilateral e errôneo, além, insistimos, da justa delimitação frente a estas revoluciones, que não foram trabalhadoras e socialistas, como as definiram a maioria das correntes trotskistas tradicionais. Mas, a nosso entender, defini-las como “revoluções burguesas” tem a séria dificuldade de atribuir um papel revolucionário à burguesia em pleno século XX, em condições nas quais, desde o século XIX, se havia transformado em uma classe reacionária. E isto os obrigaria, então, a definir as sociedades onde se fez a revolução como países dominados essencialmente por relações sociais de produção feudais, quando está estabelecido por toda a investigação histórica que já era dominante o capitalismo e quando Trotsky, em sua polêmica com o stalinismo, assinalou que, no século XX, terminara a já artificial divisão entre países “maduros e imaturos” para a revolução socialista.
Por circunstâncias específicas, [21] na saída do pós-guerra, entre elas o imenso peso alcançado pela URSS, as capas pequeno-burguesas e burocráticas usufruíram uma genuína mobilização revolucionaria das massas populares em seu benefício, configurando revoluções democrático-nacionais anti-imperialistas e anticapitalistas, mas não trabalhadores nem socialistas, nas quais o processo de transição ao socialismo esteve bloqueado dede o começo.
A dizer, a progressiva expropriação da burguesia foi revertida de contra aos próprios trabalhadores, a serviço de sua opressão e exploração. Foram processos revolucionários genuínos, mas expropriados de massas populares desde o princípio e revertidos, posteriormente, contra elas.
Junto com isto, desde o ponto de vista da formação social, a concepção capitalista de Estado estabelecia uma absoluta homogeneidade do mundo muito difícil de sustentar. Porque ao assinalar que os países onde foi massivamente expropriado o capital seriam essencialmente iguais aos países capitalistas e imperialistas normais se perdia totalmente de vista as diferenças específicas entre uns e outros.
Como disse Naville, “Cliff está entre aqueles para os quais a economia da URSS é simplesmente a de um capitalismo de Estado. Sobre este ponto concorda com Muniz, Bordiga e outros. [Mas] não admite que este capitalismo seja equivalente a um “coletivismo burocrático” (Rizzi) ou a um regime “burguês-burocrático” (Munis). Em seu livro, Estalinismo na Rússia, uma análise marxista (1955), aporta sua contribuição explicando porque a burocracia – à qual considera uma classe orgânica – não se apropria da mais valia da mesma forma que a burguesia, problema que Rizzi havia sido incapaz de resolver (…) Cliff admite que a regulação da atividade econômica pelo Estado … é uma negação parcial da lei do valor (…) Mas na URSS não há evidentemente nem supressão do intercâmbio (das capacidades de trabalho, dos produtos e serviços), nem o desaparecimento da função capitalista da regulação pela lei do valor. Portanto, se a burocracia domina esses intercâmbios não é apropriando-se legalmente da mais valia, porque ela não é, segundo Cliff, proprietária do aparato da produção. Esta diferença não impede que se trate de uma exploração flagrante, senão somente que opera de uma forma nova, sobretudo juridicamente”.[22]
Esta diferença específica, como assinala Naville, é o que perdia Cliff com a avaliação de que os países do Leste tinham um modo de produção orgânico (capitalismo de Estado) e a burocracia, era uma nova classe capitalista sui generis também orgânica. Porque, insistimos, uma coisa (que defendemos) é a unidade da economia mundial e o continuado império da lei do valor, tanto nos países capitalistas como nos não-capitalistas que se desenvolveram ao longo do século XX. Mesmo quando essa lei do valor fora parcialmente negada nos países não capitalistas, como corretamente disse o próprio Cliff. Mas outra muito distinta era estabelecer uma homogeneidade praticamente total entre ambos os tipos de países, desconhecendo, repetimos, as diferenças entre eles e considerando orgânico o modo de produção da URSS e a burocracia como classe.
Uma incorreta igualdade do mundo
Isto se combina com outras consequências vigentes hoje da teoria do capitalismo de Estado, que nos perecem sumamente graves e unilaterais. Por exemplo, a posição de que os países semicoloniais não teriam nenhuma importância nem funcionalidade para o imperialismo, pelo menos desde a segunda pós-guerra. Assim, o problema da relação entre o imperialismo e as nações semicoloniais (a opressão nacional imperialista e as tarefas democrático-revolucionárias frente a ela) não parece ter nenhuma entidade real. Este equívoco segue presente em vários trabalhos contemporâneos desta corrente.[23]
“A teoria do capitalismo de Estado de Cliff e sua extensão na teoria da economia armamentista permanente teve duas consequências mais. Primeiro, proveu as bases para a compreensão do desenvolvimento do Terceiro Mundo (…) se questionavam certos elementos da teoria do imperialismo de Lênin e em particular a ideia de que as colônias (por essa época crescentemente ex-colônias) jogaram um papel essencial para os países avançados, como mercados, bases de matérias primas e locais de investimento (…) O Terceiro Mundo era, de conjunto, de uma importância econômica declinante para as metrópoles ocidentais. Este deslocamento no centro de gravidade econômica havia tornado possível o desmantelamento relativamente pacífico dos impérios coloniais europeus depois de 1945. (…) esta modificação da teoria do imperialismo de Lênin os possibilitou questionar a crença, muito influente na esquerda europeia desde os anos 1950, de que os movimentos de liberação nacional no Terceiro Mundo representavam o principal desafio ao capitalismo. (,,,) A principal divisão no mundo (…) era entre o capital internacional e o trabalho internacional, sem importar o estabelecimento nacional da luta.”[24]
Mas este “sem importar” resume um problema imenso, tremendo: a completa perda de vista do fato de que o capitalismo imperialista mundial constitui um âmbito hierarquizado de países de natureza distinta, onde existe, junto com a clivagem central das classes, a clivagem nacional, isto é, países dominantes e países dominados.[25] Esta questão, longe de atenuar-se, reforçou-se na atual fase de mundialização do capitalismo imperialista.
A este respeito, dizia Trotsky: “Em política, o mais importante e, em minha opinião, o mais difícil é definir, por um lado as leis gerais que determinam a luta de morte que se libera em todos os países do mundo moderno, e por ouro lado, descobrir a combinação especial destas leis para cada país. Toda a humanidade atual, desde os operários britânicos aos nômades etíopes, vive amarrada ao jugo do imperialismo. Não há que esquecer nem um só minuto. Mas isto não significa que o imperialismo se manifesta da mesma maneira em todos os países. Não. Alguns países são os condutores do imperialismo, outros, suas vítimas. Esta é a linha divisória fundamental dos estados e nações modernas.”[26]
Esta tendência dos companheiros a perder de vista este fato tão elementar, a igualação entre países como Argentina e Brasil com a Inglaterra (para colocar um exemplo) constitui uma posição unilateral e insustentavelmente sectária. Ainda que se esgrime a correta preocupação por sustentar uma perspectiva de classe e independente, se perde completamente de vista a opressão nacional dos países imperialistas com respeito as nações dependentes ou semicoloniais, e a necessária defesa destas frente ao imperialismo.
Esta posição, historicamente, constituiu uma reação sectária frente aos processos progressistas como a descolonização que, apesar de manter-se no terreno burguês, deram lugar a lutas heroicas com a luta na Argélia, em fins dos anos 1950 e princípios dos 1960 e que cruzaram nesses anos a vida do movimento trotskista.
Com respeito a situação atual, podemos ler em um recente trabalho de Chris Harman: “As referências a Argentina como semicolônia estão muito difundidas na esquerda argentina. Em alguns casos significa simplesmente um sinônimo de empobrecimento; em outro, significa explicitamente que a burguesia local carece de soberania política porque é economicamente débil e, portanto, forçada a entrar em uma posição subordinada em suas relações econômicas com o capitalismo dos países mais ricos e poderosos. Isto é cometer um erro teórico fundamental. Uma colônia carece de independência política. Uma vez que alcança independência política – isto é, deixa de estar dominada militarmente por alguma potência – deixa de ser uma colônia. O fato de que não pode obter uma mítica independência econômica do sistema mundial não vem ao caso. (…) O termo semicolônia só pode ser corretamente atribuído a países nos quais a ocupação militar direta torna absurda a pretensão de independência política.”[27]
Esta postura é a que nos parece insustentável e comete o gravíssimo erro de confundir o status de um país colonial com o de um semicolonial ou dependente, corretamente distinguidos na elaboração de Lênin como “formas transitórias de dependência encobertas em uma independência somente formal”. Porque na presente fase do capitalismo produziram-se mudanças nas relações entre o centro do mundo (…) e a periferia atrasada e semicolonial.
Obviamente, esses países eram e seguem sendo semicolônias (…) Esquematizando, podemos dizer que, no século XX, essas relações passaram por duas situações prévias à presente fase de mundialização. A primeira é aquela que analisou Lênin em 1915, em seu clássico O Imperialismo, fase superior do capitalismo. Nesse momento, a maioria dos povos e países atrasados erma diretamente colônias, principalmente das potências europeias. Mas, advertia Lênin, entre os dois grupos fundamentais de países – os que possuem colônias e as colônias – existiam excepcionalmente diversas formas transitórias de dependência estatal(…) formas variadas de países dependentes que, desde um ponto de vista formal, são politicamente independentes, mas que na realidade se encontram envolvidos nas redes da dependência financeira e diplomática (…) no segundo pós-guerra, produto, por um lado, da grande revolução anticolonial que varreu a Ásia e a África; por outro lado, da hegemonia mundial do imperialismo ianque que não possuía grandes colônias e o que lhes parecia intolerável que seus danificados competidores europeus as conservassem. A diversidade de formas transitórias de dependência passou a ser a regra e não a exceção.[28]
É precisamente isto que não viam, nem veem, os companheiros ingleses: a subsistência de uma relação de subordinação política (independência somente formal) que excede a existência ou não de tropas ocupando um país. [29]
Neste ponto, se mantém plenamente a validade de abordagem de Lênin sobre a “questão nacional” como um problema eminentemente político e não de uma abstrata e suposta “independência econômica” – abordagem economicista a qual Lênin nunca atribuiu, que se confronta com a unidade da economia mundial e com a impossibilidade de construir um capitalismo ou um socialismo “em um único país”. Os companheiros perdem de vista esta luta por uma real independência política que, para ser realizada de maneira consequente – como repetia Trotsky – requer hoje mais do que nunca a revolução proletária.
Esta mesma abordagem unilateral – que insistimos, tem raízes na própria teorização do capitalismo de Estado e que converte seu anti-imperialismo em algo sumamente abstrato, se apresenta de maneira mais crua ainda em outro trabalho. Ali se a dizer explicitamente que: “Rechaçar a tagarelice sobre o fim do imperialismo usualmente significa insistir na continuada relevância de análises de Lênin, sem reconhecer as mudanças ocorridas desde essas análises foram realizadas. Não obstante, havia um problema real. A verdadeira força da abordagem de Lênin se sustentava na insistência de que as grandes potências ocidentais eram levadas a dividir e redividir o mundo entre elas, levando por um lado à guerra e por outro, à dominação colonial direta. Isto dificilmente encaixava em uma situação na qual a possibilidade de guerra entre os estados ocidentais parece crescentemente remota e as colônias ganharam a independência.
Sem embargo, a maior parte da esquerda redefiniu o imperialismo para referir-se simplesmente à exploração do Terceiro Mundo pelas classes capitalistas ocidentais, ignorando o impulso que fazia a guerra entre as potências imperialistas, tão central na teoria de Lênin, e na prática vendo o sistema em seu conjunto como uma versão do ultra imperialismo anunciado por Kautski. Ao mesmo tempo, simplesmente substituíram as referências ao colonialismo por referências ao neocolonialismo ou semicolônias.”[30]
Mas esta postura, uma vez mais, tende a deixar de lado não só a continuada vigência das relações de opressão entre os países imperialistas e a vasta zona semicolonial do mundo sem que, pior ainda, não reconhece de nenhum modo que na atual fase de mundialização do capitalismo imperialista, as relações de subordinação, submetimento, espoliação e sem colonização dos países não imperialistas, longe de atenuar-se, reforçaram-se de maneira evidente.
O anti-imperialismo que sustentam os companheiros de torna moral, abstrato e sem substância, na medida em que não existem relaciones hierarquizadas de opressão no âmbito mundial, o que fica é uma insustentável homologação de todo o espaço do mundo.
Estas posições tiveram também origem na colocação desta corrente a respeito dos processos de descolonização no pós-guerra e fazem as vezes de justificação de posições passadas, mas, também aqui, a correta delimitação a respeito das direções nacionalistas burguesas do pós-guerra, ante o fato de que estas efetivamente impediram uma dinâmica revolucionária anticapitalista e socialista, não subtrai que o Socialismo Internacional tenha tido, tal como nos países onde tiveram lugar revoluções reais anti-imperialistas que expropriaram o capital, uma posição completamente sectária e por fora do processo real. [31]
A burocracia como agente da revolução socialista.
De sua parte, o problema que puxou o pablomandelismo é que não soube conservar uma posição independente a respeito dos aparatos burocráticos e capitulou permanentemente a uma ou outra variante deles.
Partindo do reconhecimento dos processos do pós-guerra como revoluções (salvo no glacis), não só se excederam no sentido de concebe-los como processos proletários e socialistas que davam lugar a novas Estados proletários – o que foi mais ou menos comum a todo o tronco principal da IV – senão que chegaram sua direções como empiricamente revolucionárias. Isto conduziu, logicamente, a uma profunda adaptação[32]: a Tito, na Iugoslávia, a Mão, ne China, a Castro, em Cuba, aos sandinistas, na Nicarágua (que nem sequer haviam tomado medidas anticapitalistas), as direções guerrilheiras latino-americanas em geral.[33]
Neste método de confundir um processo com sua direção e, ao mesmo tempo, atribuir às direções um caráter revolucionário socialista que indubitavelmente não tiveram,[34] levou a que essa corrente encarnara toda uma tradição de oportunismo e adaptação,[35] que terminava vendo a burocracia stalinista como agente da revolução socialista.
Porque o critério metodológico marxista revolucionário elementar que falhou e segue falhando no pablomandelismo é o de não perder nunca de vista que a principal conquista que deve obter a classe trabalhadora em cada passo de sua luta é o progresso de sua organização e ação independente. Ao deixar de lado este critério elementar, o SU fez escola na adaptação e na total perda da independência dos revolucionários. Daí vem a tática do “entrismo sui generis” (o ingresso dos PCs ao longo dos anosm1950 e dos 1960), o posicionamento de princípios contra a construção de seções da IV em Cuba ou Nicarágua, etc.
O pablomandelismo esteve marcado por um tipo de objetivismo particular, que via na natureza das direções burocráticas rasgos contraditórios, mas possuindo atributos revolucionários. Uma compreensão de revolução socialista da mão da burocracia stalinista, sempre obrigada a optar entre o imperialismo e as massas revolucionárias e inclinando-se pela revolução. Naturalmente, se isto era assim, o movimento trotskista perdia todo o sentido.
Este problema se manifestou quando o III Congresso Mundial, de agosto de 1951, declarou acerca dos países do leste europeu que: “A assimilação estrutural destes países à URSS deve ser considerada essencialmente completa e a estes países como tendo deixado de ser basicamente países capitalistas (…) é sobretudo em virtude de sua base econômica caracterizada por novas relações de produção e de propriedade próprias de uma economia estatizada (…) devemos considerar estes Estados como Estados proletários deformados (…) há resultado que a ação revolucionária das massas não é uma condição indispensável necessária para que a burocracia seja capaz de destruir o capitalismo.”[36]
Mas Trotsky (que havia vivido em tempo real as expropriações stalinistas na Polônia – 1939-1940) comparava esta medida revolucionária em seu caráter – a expropriação dos expropriadores – mas alcançada de forma militar-burocrática, a abolição da servidão na Polônia pelas forças de ocupação de Napoleão. A revolução socialista aparentemente podia, como a revolução burguesa, ser imposta desde cima… Trotsky, sem embargo, qualificou assim este juízo: O critério político principal para nós não é a transformação das relações de propriedade (…) mas é para além do importante que esta medida possa ser em si mesma, senão a mudança na consciência e organização do proletariado mundial, a elevação de sua capacidade para defender conquistas anteriores e obter novas. Deste ponto de vista, o único decisivo, as políticas de Moscou, tomadas como um todo, retêm completamente seu caráter reacionário e se mantêm como o obstáculo principal no caminho da revolução mundial.”[37] Isto é o que deixou completamente de lado o pablomandelismo.
Michel Pablo, secretário geral da IV Internacional, foi quem levou mais longe a nova linha de que os países do leste europeu eram tipos de Estados proletários in extremis. Em 1949, introduziu a noção de que haveria adiante séculos de Estados proletários deformados. Em abril de 1954, Pablo escrevia: “tomada entre o desafio imperialista e a revolução mundial, a burocracia soviética se alinha com a revolução mundial”. Pablo tornou-se um apologista do stalinismo. Se fossem existir séculos de estados proletários deformados, qual era o papel dos trotskistas ou para a revolução proletária? O stalinismo se fazia parecer como progressista e o trotskismo, irrelevante. [38]
Toda esta conceptualização, nada tem o que dizer, estava em aberta oposição à elaboração de Trotsky, que em nenhuma parte havia dito que a burocracia tivera uma dupla natureza, nem muito menos que fora empiricamente revolucionária, como disseram Pablo e Mandel. Trotsky havia falado de uma outra coisa: de um papel duplo da burocracia na URSS (segundo ele, vendo-se obrigada a defender a propriedade estatizada, mas faze-lo com métodos burocráticos, em definitivo, minando-a), mas uma só natureza: inteiramente contrarrevolucionária. Inclusive, como temos dito, Trotsky chegou a caracterizar a própria URSS, no período do pacto Ribbentrop-Molotov, como Estado operário contrarrevolucionário.
Mas deixemos falar o próprio Michel Pablo: “A realidade social objetiva para nosso movimento está composta essencialmente do regime capitalista e do mundo stalinista (..) querendo-se ou não, estes dois elementos constituem a realidade social objetiva “tout court”, porque a imensa maioria das forças opostas ao capitalismo se acham atualmente dirigidas ou influenciadas pela burocracia soviética.”[39]
Tal como criticava nesse momento a progressista fração majoritária do PCI da França, [40] a realidade social mundial já não estaria estabelecida fundamentalmente pela luta de classes entre o proletariado e a burguesia imperialista mundial, senão por uma suposta luta superestrutural entre “campos”, donde somente cabia optar por um deles. Ante essas supostas condições objetivas, para Pablo havia que optar pelo mundo stalinista. [41] Esta teoria dos “campos” fazia parte da orientação de capitulação a que se levou a maioria da IV Internacional nessas décadas e o marco para a perda da independência das organizações revolucionárias, desde a irrupção do stalinismo nos anos 1920.[42]
Segue dizendo Pablo: “Por outra parte, o papel jogado pela direção stalinista bloqueia, como na URSS, o livre desenvolvimento socialista (…) e põe todas as conquistas obtidas em perigo permanente. É, sem dúvida, necessário, para uma justa orientação dos marxistas revolucionários, recordar não somente que o processo objetivo é em ultima análise o único determinante, que prima sobre todos os obstáculos de ordem subjetiva, senão também que o próprio stalinismo é, de certo modo (…) um fenômeno contraditório.”[43]
Portanto, temos, por um lado, um objetivismo feroz que pretende que o processo objetivo passe por cima de todos os obstáculos porque é o único determinante; é dizer, a revolução socialista é um processo objetivo (para que fariam falta, então, os programas, a luta de partidos e a IV Internacional ?).[44] Por outro lado, somado ao anterior, a burocracia stalinista era um fenômeno contraditório, que teria um lado plano e claramente revolucionário.[45]
Disse Pablo: (…) a questão iugoslava (…) e a vitória chinesa, assim como outras revoluções coloniais atuais (…) têm demonstrado que os partidos comunistas conservam a possibilidade, em certas circunstâncias, de tomarem uma orientação revolucionária, a dizer, de verem-se obrigados a empreender uma luta pelo poder. Estas circunstâncias se revelaram durante e depois da Segunda Guerra Mundial (…). Nessas circunstâncias excepcionais, o movimento de massas não encontrou outro lugar que os partidos comunistas para canalizar, para obrigar a estes partidos a ir mais além em sua direção, além do que o Kremlin não desejara e, literalmente os colocou no poder.”[46]
É significativo que nesta passagem de Pablo se encontrem muitos lugares comuns nos quais caiu a maioria do trotskismo tradicional no pós-guerra. Aparece a famosa excepcionalidade, as direções que se veem obrigadas a ir mais longe, etc. Também é significativo que, ao longo de todo o texto, o poder, a seca e em abstrato, aparece de fato transformado em sinônimo da revolução socialista, a qual, não casualmente, não se alude uma só vez como tal.
Na mesma linha: Nós, trotskistas, que sempre temos defendido a teoria de que a revolução chinesa não podia vencer senão sob a direção política do proletariado e da vanguarda revolucionária, defendemos as conquistas obtidas, assim como cada passo dado na direção da instauração de um poder democrático dos operários e campesinos pobres chineses. Damos apoio crítico ao PC chinês e ao governo de Mão Tse Tung e reclamamos nossa existência legal como tendência comunista do movimento operário. [47]
Tipicamente, o pablomandelismo outorgou um apoio crítico deste tipo a quase todas as direções contrarrevolucionárias do pós-guerra, que aparecem completamente formosas e levando adiante o poder democrático dos operários e campesinos.
Este apoio a medidas parciais supostamente progressistas cria uma confusão sobre o caráter reacionário do conjunto da política da burocracia e impede assim o acionar global e independente que corresponde a uma política genuinamente revolucionária.
No caso de Pablo, esta capitulação é justificada metodologicamente mediante a apelação descarnada ao empirismo, contra a próprio status da teoria no marxismo: “Enquanto nós, que jamais temos dado a primazia a teoria – não imposta qual – sobre a vida, (afirmação que se opõe a uma compreensão verdadeira, não mística, não esquemática, não dogmática do que é o marxismo) damos (..) uma explicação (…). esta época de transição desorienta aos escolásticos do marxismo, aos partidários das formas puras, porque defende uma linha mais complicada, mais sinuosa, mais liberta que a que os clássicos do marxismo haviam esboçado ate a experiência da revolução russa. (…). A gente que se desespera pela sorte da humanidade, porque o stalinismo todavia se mantém e obtém vitórias, reduz a história à sua medida. (…) esta transformação ocupará provavelmente um período histórico inteiro de vários séculos que estarão cheios de formas e regimes transitórios entre o capitalismo e o socialismo, necessariamente afastados das formas puras e das normas”. [48]
Trata-se de uma abordagem empirista e não marxista, ao serviço da adaptação aos tremendos limites dessas revoluções (e a suas direções), a nosso entender, nem operárias, nem socialistas. [49] E, o que é pior, ao serviço da adaptação a suas direções burocráticas e pequeno burguesas, e alienadas da classe trabalhadora e da tradição autêntica do socialismo revolucionário.
Em todas as décadas transcorridas desde então, esta raiz em uma concepção completamente objetivista e de capitulação aos aparatos burocráticos nunca foi superada, nem sequer hoje, como mostra o caso de DS, no Brasil.
Em um texto do balanço de Daniel Bensaïd, um dos dirigentes atuais do SU, afirma-se a respeito das revoluções do pós-guerra: “Esses eventos esboçavam questões políticas e estratégicas novas, para as quais somente a compreensão da revolução russa não aportava respostas. Como determinar a formação de um novo Estado proletário: a partir da conquista do poder, que é um ato político (…) ou partir das transformações sócio estruturais, que são necessariamente um processo desigual? Como explicar as revoluções vitoriosas sem partido revolucionário, contra a vontade de sua suposta direção? A resolução de 1951, sobre a guerra iugoslava (…) aporta a esta questão elementos de resposta.” [50]
O que dizia esta resolução? Que a revolução iugoslava confirmava em todos os pontos a teoria da revolução permanente. O que estamos tentando demonstrar aqui é uma falsidade e uma mistificação completa acerca do verdadeiro caráter das revoluções do pós-guerra: que, ao não se dar o ato político da real conquista do poder o caráter proletário do Estado. O que não pode lograr-se pelo mero expediente de transformações sócio estruturais nas mãos de classes, ou setores de classes, alienadas da, ou distintas da própria classe operária.
Sem embargo, apesar do caráter de análise-justificação dos “balanços” de Bensaïd,[51] é interessante que se observa ali a mesma lógica que operava por trás das posições de Pablo, que por sua vez expressa elementos comuns a todo o resto do trotskismo “tradicional”: (…) aferram-se a uma fórmula bastante geral de Trotsky, segundo quem, em circunstancias excepcionais, os pequenos burgueses e inclusive os stalinistas serão suscetíveis de ir mais além do que o que eles queriam na via de ruptura com a burguesia. A interpretação extensiva desta fórmula apresenta vários inconvenientes. Para começar, sua imprecisão (…) se há suficientes circunstâncias excepcionais e se as exceções podem se multiplicar, por que não imaginar que as experiências chinesa e iugoslava poderiam repetir-se? Isto é, por outro lado, o que presumia Pablo em “Oú allon-nous?”, ao generalizar as consequências possíveis da pressão das circunstâncias objetivas sobre os partidos comunistas. A exceção tende assim a converte-se em regra: a crise e a pressão das massas podem levar diferentes PCs a empreender o combate e a chegar mais longe que os objetivos fixados pela burocracia soviética.”[52] Típico raciocínio muito presente em todas as correntes trotskistas tradicionais, que viam a burocracia estendendo revoluções socialistas por todo o globo.[53]
Mistificação da acumulação burocrática
No terreno teórico, foi Ernest Mandel o autor de uma insustentável mistificação da economia dos chamados Estados proletários. Mandel segue, grosso modo, Preobrajensky, autor do importante trabalho, A Nova Economia (1926), mas com quase 40 anos de distância. Disse Naville sobre a obra de Preobrajenski: (…) saber se os fundos excedentes deviam ser chamados de mais-valia ou sobre produto, na medida em que se trata de caracterizar não somente o que existe senão também as tendências de desenvolvimento. Isto era, no melhor dos casos, uma aposta para o futuro. Hoje em dia, sabemos que essa aposta não foi ganha.”[54]
Resumindo: sabemos que a acumulação não se fez no sentido da transição socialista, senão no de fortalecimento da posição da burocracia. E isto é importante assinalar porque o princípio incorreto sobre o qual se apoiava toda a análise de Preobrajensky era que na URSS a classe trabalhadora não podia explorar a si mesma: “Formalmente os produtores dominantes e a burguesia dominante se encontravam na mesma posição: nem um, nem outra podiam explorar a si próprias. Mas isto é assim por razões completamente diferentes. O conteúdo da dominação, sobretudo desde o ponto de vista econômico, não é o mesmo. no caso da burguesia, ela não se pode explorar a si mesma porque vive da exploração dos produtores assalariados. No caso dos produtores, não podem explora-se a si mesmos porque já não há uma classe antagônica a qual explorar e todo o ganho vem deles mesmos e subsidiado por eles.”[55] E logo agregava: “há outra análise formal: o fato de que subsiste assim mesmo uma exploração derivada, ligada às formas de partilha da mais-valia e do lucro. Para o capitalismo, esta partilha é concorrencial (a competência) e fundada sobre o me3rcado livre (…) Para a classe trabalhadora organizada em poder dominante, esta partilha está planejada e não regida pela competência, mas esse planejamento não implica menos contradições. Rivalidades, conflitos, desigualdades: ali se encontra a fonte das espoliações burocráticas e isto não é, em geral, possível mais porque há na classe dos trabalhadores assalariados que o sustenta (a este planejamento) um princípio de exploração mútua manifestada pelo renovado jogo da lei do valor.
“No fim das contas, a fórmula segundo a qual a classe trabalhadora não pode explorar a si mesma é um sofisma destinado a obscurecer os fenômenos de espoliação inevitáveis em uma sociedade de transição e que, se não são esclarecidos pelo que são, eternizam as relações de desigualdade que bem podem, à larga, reconstituir relações de exploração entre classes de uma novo gênero. Não nada impossível nela,”[56]
Milimetricamente foi isto que se passou nas sociedades onde foi expropriado o capital. Mas Mandel não se apercebeu de nada disto no tempo real, dado que escrevia, na mesma época do texto de Naville, seu Tratado de Economia Marxista, uma obra insustentável embelezamento e mistificação da economia soviética em geral e da acumulação nas mãos da burocracia em particular. De fato, partilhava-se a posição metodológica do próprio Stalin de que no mundo havia duas economias com dois princípios distintos.
A crítica a Mandel neste terreno é fundamental, porque sua análise opera como justificação teórica da adaptação ao stalinismo e às direções burocráticas. Aqui, o conceito de mistificação é importante, porque levam a definições que fecham e obstruem a visão acerca dos verdadeiros problemas e contradições sociais que atravessavam essas sociedades. Mandel, ao perder o ponto de vista crítico, não dava conta das contradições sociais que atravessam inclusive aos fenômenos de “conquistas” ou de sociedades capitalistas.
Vejamos um exemplo: “Contrariamente ao que afirmam numerosos sociólogos que se esforçam em utilizar o método de análise marxista, a economia soviética não revela nenhum dos aspectos fundamentais da economia capitalista. Somente as formas, os fenômenos superficiais podem induzir a erro o observador que busca sua natureza social (…) A acumulação soviética é uma acumulação de meios de produção como valores de uso. (…) A economia capitalista forma um todo (…) Pelo contrário, a economia soviética, ainda conservando determinados laços com a economia capitalista mundial, se subtrai às oscilações conjunturais da economia mundial.”[57]
Assim, arranca Mandel sua mistificadora análise da economia soviética em mãos da burocracia; um ponto de vista desastroso por onde se olhe. Porque dizer que a economia soviética não revelava nenhum dos aspectos fundamentais da economia capitalista não só era insustentável na década de 1960, senão inclusive na década de 1930. Subsistiam – e não podiam deixar de subsistir – dois aspectos absolutamente fundamentais da economia capitalista: a continuidade da lei do valor e o trabalho assalariado. E estes dois aspectos servem para deixar assentado que a economia dos países do Leste (como tampouco nenhuma economia verdadeiramente de transição) pode se subtrair ao império das leis do mercado mundial capitalista. Desenvolveremos isto mais adiante.[58]
Mas a este dislate se agrega outro: o embelezamento da acumulação em mãos da burocracia, que consistiria plenamente em acumulação como “valores de uso” (no caso dos meios de produção). A dizer, por fora dos critérios de lucro e ao serviço da pura utilidade social e comum. Isto não é completamente falso porque a base da produção em todos os ramos e esferas da economia era o trabalho assalariado. Isto é, que a força de trabalho continuava sendo uma mercadoria e que a contradição principal na URSS era a oposição a norma capitalista de apreciação das capacidades de trabalho e a apropriação estatal-coletiva da mais-valia (que terminava em mãos da burocracia), como explicamos no artigo anterior, segundo o modelo que propõe Naville das “cooperativas”. [59]
A verdadeira base disto era que Mandel seguia Stalin na ideia de que há dois mundos econômicos distintos, com dois princípios econômicos regentes distintos e que, portanto,
A lei do valor não regia nas sociedades não capitalista, por isto disse Mandel que a economia soviética não revela nenhum dos aspectos fundamentais da economia capitalista.
Mas é um fato que a desproporção entre os distintos ramos da economia e a verdadeira irracionalidade da planificação em mãos da burocracia faziam que a lei do valor, que seguia imperando nas sociedades não capitalistas, terminou se impondo. Não se pode burlar a lei do valor, nem sequer em uma verdadeira sociedade de transição, porque seu império vem necessariamente das imposições do domínio do mercado mundial. O que sim é possível, mediante uma planificação democrática flexível que reconheça a continuidade deste império do valor, é dirigir a acumulação de meios produção em um sentido que, ao final, signifique uma elevação do nível de vida e cultural das massas. Mas não é isto o que se passou na URSS, onde, como já havia definido Leon Trotsky, a parte do leão da acumulação foi crescentemente para nas mãos da burocracia.
Não se trata de um mero problema de formas; essas formas eram a expressão de um conteúdo: a continuidade do império da lei do valor. Inclusive, em muitos casos, o voluntarismo burocrático induzia a erro aos analistas, porque sob as formas de arbitrariedade administrativa se ocultava a continuidade das leis e restrições herdadas do capitalismo e reproduzidas ao serviço da acumulação em mãos da burocracia.
Há incontáveis passagens da obra de Mandel que ilustram o caráter mistificador-justificador de suas análises e sua capitulação aos aparatos burocráticos. Vejamos:
“Certo que a industrialização rápida tem a forma de uma acumulação primitiva realizada por uma violenta subtração referente ao consumo operário e campesino, da mesma forma em que a acumulação primitiva do capitalismo se baseou no incremento da miséria popular. Mas, salvo no caso de uma contribuição estrangeira em grande escala, toda acumulação acelerada somente pode realizar-se pelo incremento do subproduto social não consumido pelos produtores, seja qual for a sociedade onde se manifeste semelhante fenômeno. E isto não tem nada de especificamente capitalista.”[60]
Este estabelecimento idílico é absurdo quando é evidente que a acumulação foi parar nas mãos da burocracia. A argumentação de que toda acumulação acelerada se deve fazer às expensas dos produtores imediatos não é mais que uma grosseira racionalização da exploração (não orgânica) por parte da burocracia.
Continua Mandel: “A acumulação capitalista é uma acumulação de capital, a dizer, uma capitalização da mais-valia que tem por fim produzir mais mais-valia mediante esse capital. O ganho é enfim o motor da produção capitalista. A acumulação soviética é uma acumulação de meios de produção como valores de uso. O ganho não é o fim nem o motor principal da produção. Somente representa um instrumento acessório nas mãos do Estado, para facilitar a realização do plano e verificar sua execução por cada empresa.”[61]
Consideremos, em troca, a crítica de Naville a este mesmo livro de Mandel: “(…) nem a fórmula de Konrod, nem a de Mandel têm em conta que a relação que supõe esta contradição [entre os valores de produção e os de consumo] é assalariado (..). O desaparecimento do mercado, que deixa a lugar à planificação (embora imperfeita), não liquida a exigência da rentabilidade dos custos de produção mais baixos possíveis. Dito de outro modo, a produtividade – relação entre trabalho humano (salário) e a utilidade dos produtos – não deixa de ser um dos critérios de ganho. (…) Os produtos não podem dar lucro se o valor não difere da soma de elementos de custo de produção (…). A busca de uma mais-valia crescente está dada pela necessidade, inelutável, no socialismo de Estado como no capitalismo, de evitar a baixa tendencial da taxa de lucro (…). É neste sentido que o trabalho vivo luta sempre por subtrair-se ao influxo do trabalho morto, e é sempre neste sentido que a busca de uma taxa máxima de acumulação segue sendo uma lei destes regimes. [62]
Mandel vai mais longe em sua admiração pela planificação stalinista: “[A] competição é o que determina a anarquia da produção capitalista (…) Pelo contrário, a planificação real, na medida em que o conjunto dos meios de produção industrial se encontram nas mãos do Estado, que pode assim determinar centralmente o nível e o ritmo do crescimento da produção e da acumulação. No marco desta planificação subsistem sim elementos de anarquia, mas seu papel é comparável precisamente ao dos elementos de planificação na economia capitalista: corrigem mas não suprimem as características sociais da economia. Submetida à tirania do lucro, a economia capitalista se desenvolve segundo leis precisas (…). A economia soviética escapa completamente à essas leis e à esses aspectos particulares.[63]
Assim, Mandel toma o caminho mistificador da suposta dualidade de princípios reatores: “Assim mesmo, é abusivo considerar a economia soviética simplesmente como consequência de tendências de desenvolvimento que saem á luz na economia capitalista contemporânea.: “(…) De fato, a economia soviética representa a negação dialética destas tendências (…) A sociedade soviética é a destruição, a negação das principais características da sociedade capitalista (…).[64]
O certo é o contrário: mais do que a negação dialética destas tendências, as formas desenvolvidas nos países do Leste estavam casadas com aquelas do capitalismo, na medida em que, como Dizia Marx na Crítica do Programa de Gotha, se tratava não de uma sociedade construída inteiramente sobre uma nova base, mas tal e qual como favia saído da velha sociedade capitalista. E, sobre esta base, um princípio – e fato material – era comum às duas economias: a subsistência do trabalho assalariado, sobre a base da continuidade da lei do valor.
A dialética materialista de Pierre Naville, mais trotskista que Mandel, partia de uma posição oposta: considerar o conjunto da economia e política mundiais como regida por um princípio, e não dois. Esta unidade era na verdade tributária da teoria da revolução permanente de Trotsky sobre a URSS, na Revolução Traída. Este ponto de Naville desenvolvido nos sete tomos do O Novo Leviatã, é de uma enorme solidez e vigência.
“É preciso deixar de lado as visões que fazem do mundo um acordo provisório entre dois universos completamente distintos, separados e inimigos por isto (…) Os conflitos que os opõem e atravessam não provam que o mundo econômico e político seja duplo em seus princípios. Não é suficiente que existam dois campos inimizados para suprimir a própria razão do antagonismo que é a unidade (…). Era preciso a cegueira de déspota ignorante (Stalin) para deduzir de um antagonismo a definitiva ruptura de uma unidade que é a própria essência das relações tecidas pelo capital, cuja herança o socialismo não pode mais que aceitar, sob pena de abortar.[65]
E, em referência direta a Mandel: “(…) é preciso investigar se a economia mundial atual pode ser julgada por um modelo único e, nesse caso, quais são os postulados admissíveis. Quase todas as obras didáticas, tanto nos Estado socialistas, como nos capitalistas, estabelecem uma dicotomia de princípios. Este erro foi repetido por um autor que se diz trotskista, Ernest Mandel (Tratado de Economia Marxista, 1962).[66]
Continua Naville: “(…) não se pode prover uma explicação correta das transformações parciais na economia mundial decompondo-a por princípio. A própria ruptura introduzida pelo regime soviético não estabelece uma heterogeneidade radical. É, pelo contrário, uma visão unitária do sistema em seu conjunto o que permite compreender o alcance dos antagonismo, de suas diferenças e de suas modificações parciais. A abolição dos poderes do grande capital privado na URSS (…) não implica na abolição das leis econômicas gerais que regem o funcionamento das relações capitalistas em uma escala mundial. (…) O valor de troca segue sendo o regulador de todas estas relações,]. O que muda, o que é novo, é o poder que detém o Estado de modificar, em favor de relações não capitalistas, uma estrutura que depende em sua origem das relações capitalistas mundiais das que surgiram.[67]
Em resumo, as leis da economia mundial seguem sendo os únicos pontos de referência,os parâmetros a partir dos quais avaliar o sentido das evoluções e transformações sociais não capitalistas. Não pode haver outros desde o ponto de vista do marxismo, desde o ponto de vista da totalidade da economia capitalista mundial, a qual toda a sociedade de transição se verá necessariamente submetida.
O stalinismo: uma burocracia operária?
É sobre a mistificadora base anterior que Ernest Mandel desenvolveu a caracterização da burocracia stalinista como burocracia operária. Muitos outros trotskistas tomaram esta caracterização da burocracia no pós-guerra, até mesmo quando este grosseiro embelezamento do stalinismo dificilmente se pode encontrar no próprio Trotsky. [68] Por exemplo, onde Trotsky falava do duplo papel da burocracia stalinista, no sentido que ela se veria obrigada guardar e defender a propriedade nacionalizada, ao mesmo tempo que minando-a dada a sua natureza contrarrevolucionária, o pablo-mandelismo via uma dupla natureza da burocracia, como se fosse metade revolucionária.[69] Já nos referimos a isto na crítica a Pablo.
Mas não nos queremos deter neste trabalho no lado político da questão, senão ir mais fundo na discussão da caracterização social da burocracia stalinista.
Deve-se partir em diferenciar o stalinismo soviético das burocracias daquelas dos sindicatos e dos partidos social-democratas e comunistas do Ocidente. Neste caso, a burocracia efetivamente tendia (e em muitos casos ainda tende) a configurar-se como uma expressão de simples parasitismo social, vivendo da cotização dos afiliados, na medida em quem a classe exploradora propriamente dita da classe trabalhadora, nos países capitalistas, é, naturalmente, a burguesia.
As organizações sobre as quais se apoia esta burocracia sofreram ao longo dos anos um crescente processo de estatização (estudado muito intensamente por Trotsky em Os sindicatos na época do imperialismo), isto é, de dependência da arrecadação e financiamento estatal. Hoje, temos muitos casos de burocracias empresariais, que evidentemente se encontram no limite da definição clássica das burocracias nos países capitalistas.
Mas não queremos nos referir a isto aqui,[70] senão al caso específico da burocracia stalinista à frente de enormes Estados em um terço do globo e que não tinha a seu lado uma classe proprietária capitalista. Nestas condições, cremos que a definição da burocracia stalinista como “burocracia proletária”, isto é, como fazendo parte da classe trabalhadora, é um desastre teórico e um embelezamento político que não resiste a menor análise.
A idéia que a burocracia soviética, como burocracia sindical no Ocidente, não cortou seu cordão umbilical com a classe trabalhadora e que seus interesses específicos e decisões políticas podem ser vistas dentro do marco de uma relação parasitária especial com o proletariado leva à conclusão de que a luta de classes nos países capitalistas continua sendo um processo bipolar, capitalismo versus classe trabalhadora (com a burocracia operando no geral como policiais do capital no mundo do trabalho.[71]
Mais além do que viemos dizendo de que a burocracia dos Estados burocráticos consistiu em um tipo específico de burocracia, não assimilável à dos países ocidentais (aspecto ausente da análise de Mandel), a caracterização da burocracia soviética não havia cortado seu cordão umbilical com a classe trabalhadora é contraria aos fatos. Já em 1928, Christian Rakovsky, em Os perigos profissionais do poder, havia estudado de maneira intensa este problema. Nem o próprio Trotsky, que o cita em A Revolução Traída, se atreveu a desmenti-lo. Porque não se tratava de um mero caso de parasitismo social: a burocracia se apropriava da parte do leão do excedente, isto é, vivia da exploração da classe trabalhadora, além do que não chegara a se constituir em uma classe exploradora orgânica. E se a burocracia viva da exploração da classe trabalhadora, não podia se constituir como parte dessa mesma classe. No texto que citamos ocorre o mesmo que com muitos outros escritos de Mandel e outros dirigentes do trotskismo tradicional: a correta negação de que a burocracia fora uma nova classe orgânica permite deslizar para ap mais crasso embelezamento dessa mesma burocracia como parte da própria classe trabalhadora.
Até o final de seus dias, Mandel manteve esta caracterização. Assim se pode ver em seu último trabalho teórico, O poder e o dinheiro – uma caracterização marxista da burocracia (1922). [72]
Nele se mantém a caracterização da burocracia stalinista como burocracia proletária: “as burocracias do partido e do Estado se fundem com os administradores burocráticos da economia para integrar uma endurecida e inamovível capa social (Trotsky a chamou de casta), que usa seu monopólio do poder para manter e estender suas posições sócio materiais. O fato de que agora a burocracia proletária exerce o poder estatal multiplica todas suas características anti classe proletária, conservadoras, parasitárias, já visíveis nas burocracias sindicais e partidárias do movimento de massas trabalhadoras.[73]
Um simples dado serve para ilustrar a inusitada magnitude do fenômeno no caso da Rússia: na década de 1980, imediatamente antes da queda da burocracia stalinista e do retorno massivo à restauração, a burocracia soviética estava composta por 18 milhões de pessoas.
A posição de Mandel é insustentável porque, a partir de estágio de seu desenvolvimento, a diferenciação funcional que se foi dando como produto das tarefas de condução do Estado transformou-se em diferenciação social, como dissera Rakovski. Mandel o cita no trabalho que estamos comentando, mas sem preocupar-se em dar conta que Rakovski afirma que a burocracia stalinista que vinha se estabelecendo no poder estava deixando de fazer parte da classe trabalhadora e se tornando em uma outra categoria social.
“Não me deterei aqui na diferenciação que o poder introduzido no seio do proletariado e que é qualificado mais acima como funcional. A função modificou o próprio órgão, a dizer, a psicologia daqueles que se encarregaram de diversas tarefas de direção na administração e economia do Estado mudou a tal ponto que, não só objetiva, mas também subjetivamente; não só material, mas também moralmente, deixaram de fazer parte desta mesma classe trabalhadora.”[74]
Corresponde diferenciar definitivamente entre o parasitismo social – as burocracias que vivem do aporte dos afiliados sindicais ou inclusive os aportes obtidos via Estado – e a natureza social totalmente distinta da burocracia que vive da exploração da própria classe trabalhadora.
“Se a direção soviética manteve uma relação de exploração com os trabalhadores, não pode pertencer à classe que explorava. A oposição entre a classe trabalhadora e a burocracia era de caráter muito mais intenso e irreconciliável do que aquele que derivaria de uma distribuição desigual ou da existência de privilégios. Neste aspecto, são importantes as observações de Rakosvski: (…) Aquele esboçou muito cedo que a burocracia se havia diferenciado socialmente da classe trabalhadora: Trotsky o cita em A Revolução Traída, mas não deriva as consequências para a caracterização da burocracia.[75] (…) Assim como os exploradores asiáticos estavam separados dos camponeses por um abismo social – a exploração – sem ser proprietários, também estavam os burocratas soviéticos com respeito às massas trabalhadoras.”[76]
Conclusão: não se pode ser parte da mesma classe social que se explora. Em definitivo, a concepção das burocracias proletárias levaram ao paroxismo a capitulação aos aparatos burocráticos. A definição correta é que configuraram uma capa social pequeno burguesa, socialmente alienada da classe trabalhadora e politicamente contrarrevolucionária.
Revoluções socialistas “objetivas”
O morenismo teve uma particularidade em relação às correntes anteriores: partindo do caráter revolucionário dos processos do pós-guerra, teve, em geral, uma política independente em relação às direções que estiveram a frente delas. Neste sentido, encarnou uma tradição de não capitulação ou adaptação aos aparatos e direções pequeno burguesas e burocráticas.
Isto levou, por exemplo, a uma posição política prática sumamente correta e de princípios, em relação a um dos fenômenos mais importantes nas décadas de 1960 e 1970, na América Latina: os movimentos guerrilheiros, frente aos quais, apesar das imensas pressiones e concessões parciais, não capitulou.
Junto com isto, a corrente morenista teve outras características progressistas: a busca permanente de abrir caminho para os reais processos da classe trabalhadora e de sair da marginalidade política; o haver sustentado, praticamente ao longo de toda sua trajetória, o esforço por ser parte de um marco internacional de relações com as correntes do trotskismo europeu, etc.
Sem embargo, crise do morenismo requer uma explicação. E parte do fundamental desta é que no momento de seu apogeu (década de 1980) sintetizou uma elaboração e teorização que, partindo de um pressuposto metodológico correto sob a necessidade de analisar e dar conta dos novos fenômenos, deu lugar a uma reelaboração globalmente incorreta da teoria da revolução, em chave objetivista.
Esta reelaboração objetivista[77] foi se construindo ao longo dos anos nos quais, de maneira abusiva, reconheceu-se às revoluções do pós-guerra (caracterizadas como “de fevereiro”, por analogia com o fevereiro russo de 1917) um caráter operário e socialista objetivo que não tiveram. O que, ademais, estava aparentado com uma determinada valoração do caráter da URSS (Estado Operário degenerado) e uma concepção também errônea do caráter da revolução e transição socialista.
Estes dois elementos, uma reelaboração objetivista da teoria da revolução e uma concepção com características burocráticas e cambiantes da revolução e da transição, somada às pressões e gravíssimos erros oportunistas que se foram acumulando durante a construção do velho MAS, deram lugar a uma explosão definitiva da corrente morenista nos finais de 1980 e princípios de 1990. [78]
Notas:
[1]Queremos deixar assinalada nossa reivindicação da tradição trotskista e seu compromisso com a classe trabalhadora mundial: desde os heroicos e abnegados militantes trotskistas nos campos de concentração da URSS, os quartistas caídos na luta contra o nazismo na Europa, a luta do trotskismo vietnamita contra a burocracia de Ho Chi Minh ou os cem companheiros do PST argentino caídos sob a genocida ditadura militar.
[2]Alex Callinicos, Tortskismo, Lomdres, Minessota Press, 1990.
[3]Nahuel Moreno introduziu uma interpretação a respeito da guerra – como parte de sua reelaboração da teoria da revolução nos anos 1980 – que nos parece correta, porque tendia a deslizar para a posição de que se tratava uma guerra entre regimes, perdendo de vista o essencial caráter social de guerra anti-imperialista. Neste marco, é um fato que custou às correntes orientar-se em circunstâncias nas quais, produto da ocupação nazista, se desenvolveram genuínos movimentos de libertação nacional monopolizados por uma condução burocrática stalinista com uma orientação nacionalista estreita. Este último aspecto é assinalado, corretamente a nosso juízo, pelo historiador trotskista Pierre Broué. Permanece pendente, então, a realização de um trabalho crítico sobre a posição do trotskismo na Segunda Guerra.
[4]Analisar esta dialética de conquistas / concessões do imperialismo a fim de salvar o principal (o coração do sistema capitalista) requereria um desenvolvimento para além dos limites deste texto. não obstante, deixamos assinalada aqui sua importância para a compreensão da dinâmica da luta de classes no pós-guerra.
[5]Isto é, países não conquistados por intermédio de revoluções, senão desde cima, pelo Exército Vermelho, em termos da demagogia “nacional” contra a propriedade nazista. Sobre isto, ver François Fejtö, História das Democracias Populares, Paris, Editions du Seuil, 1969.
[6]Devemos dizer que esses momentos configuraram uma reação progressiva (no terreno político, embora sem lograr estabelecer uma superação no terreno teórico e programático) ante as capitulações do pablomandelismo naqueles anos. Logo virá a reunificação de 1963 entre o pablomandelismo e o SWP dos Estados Unidos (a qual se somaria Moreno). Lambert e Healy se mantiveram por fora, sustentando esqualidamente o CI até sua dissolução na década de 1970. nessa década se produz a ruptura definitiva de Moreno com o SWP e logo com o pablomandelismo, produto de suas profundas tendências oportunistas.
[7] Exceto pelo grupo inglês Alliance for Workers Liberty, não se conhece na atualidade outro grupo que reivindique a tradição de Schachtman, que terminou capitulando em 1958 com sua entrada no partido Democrata e que na década de 1960 apoiou os Estados Unidos na guerra do Vietnam. Do mesmo modo, só se manteve de maneira independente Hal Draper, que conseguiu realizar uma importante obra teórica sobre Marx, se bem que com o grave déficit de uma valoração totalmente unilateral do legado de Lênin e sem nunca chegar a revisar a concepção idealista do “coletivismo burocrático”.
[8] Caracterizada por Trotski como “tendência pequeno burguesa”, o que mais tarde terminou se confirmando, além do que tampouco a tendência de Cannon logrou manter a independência de sua corrente, que terminou capitulando definitivamente ao castrismo em começos da década de 1980 (logo depois da morte do próprio Cannon).
[9] Como assim também a corrente de C.R.L. James nos Estados Unidos na mesma época, uma tendência espontaneísta-idealista, de que são tributários hoje intelectuais como Harry Cleaver, na linha de John Holloway.
[10] Em nossa concepção, a URSS configura nas primeiras décadas (logo depois da revolução de outubro) um estado trabalhador de pleno direito, transformando-se, como produto da contrarrevolução stalinista, em um Estado burocrático com restos proletários comunistas, como o definira Christian Rakovsky. No caso das revoluções na China, Iugoslávia, Cuba e Vietnam, assim como dos países do Leste da Europa – de onde também se obtiveram conquistas como a expropriação da burguesia, a independência do imperialismo, a reforma agrária e a unidade nacional – estas conquistas foram distorcidas desde o começo, dando lugar diretamente à configuração de Estados burocráticos, à imagem e semelhança da URSS.
[11] Leon Trotski, En Defensa do Marxismo, Buenos Aires, Yunque, 1975, p. 156.
[12] Toni Cliff, Capitalismo de Estado em la URSS, Barcelona, Em Lucha, 2000, p. 231
[13] Cremos que Alex Callinicos tem razão quando afirma que em deifinito (como a definira Trotsky oportunamente) a tendência de Schachtman foi de um setor que cedeu à pressão da pequeno-burguesa imperialista.
[14] Pierre Naviile, El Nuevo Leviatã, vol 3. El Salário Socialista, Paris, Anthropos, 1970, pp. 263-4.
[15]Cornellius Castoriadis, La sociedad burocrática, vol. 2, Barcelona, Tusquets, 1976, pp. 14-20.
[16] Esta chega a ter 400 militantes; logo se dividiu ao redor do problema do “entrismo” no Partido Trabalhista da corrente de Cliff, “o motivo direto (da expulsão) foi a negativa de Cliff em definir a Coréia do Norte como mais progressista que a Coréia do Sul na guerra imperialista que estava dividindo o país”, tal como eles mesmos relatam em Capitalismo de Estado na URSS, ed.cit., p. 11.
[17]Toni Cliff, Trotskismo After Trotski, Londres, Bookmarks, 1999. p. 31.
[18]Em P. Naville, op. cit, p. 295.
[19]Alex Callinicos, Trotskismo, cit.
[20]Idem, pp. 83-84.
[21]Que estavam marcadas pelo peso inmenso do aparato burocrático stalinista na URSS, os acordos de Yalta e Postdam e o caráter de conflito “pautado”, dentro do sistema mundial de Estados, que assumiu a luta Leste-Oeste, que “enchalecaron” em grande medida por todo este período histórico a luta de classes.
[22]P. Naville, op. cit., pp. 292-4.
[23]Ver, por exemplo, “Analysing Imperialism” de Chris Harman, em Internacional Socialism 99. Uma crítica a uma posição similar é a de Roberto Ramírez a Robert Brenner: “O Boom y la borbuja”. Em SoB 15.
[24] A. Callinicos, Tortskismo, cit.
[25]A este respeito ver o importante trabalho de Roberto Ramírez “La Mundialização do capitalismo imperialista e nosso programa, em www.mas.org.ar
[26]Leon Tortsky, “Combatir al imperialismo para combatir ao facismo”, em Escritos Latinoamericanos, Buenos Aires, CEIP, 2000, p.95.
[27]Chris Harman, Argentina: Rbelion at the Sharp Ende of the Worda Crisis”, Internacional Socialism94, pp43-44
[28]Roberto Ramírez, cit., pp.38-9.
[29]A forma de raciocínio sectário se caracteriza precisamente por seu formalismo, por não ver os matizes, as nuanças, que como dizia Trotsky em alguns de seus textos dobre a Espanha e França, são as circunstâncias mais comuns que se nos apresentam os revolucionários na vida política.
[30]Chris Harman, “Analysing Imperialism, Internacional Socialism 99, p. 32.
[31]Os companheiros não fizeram um balanço deste curso e se mostram muito dogmáticos, muito pouco críticos a respeito de sua própria tradição. É certo que, provindo de posições muito sectárias, faz já alguns anos estão em giro correto para os movimentos de massas reais, mas, em vários casos, com lados oportunistas.
[32]Era a crítica de Alex Callinico em Trotskyism, p. 46.
[33]Logo, em seu período já abertamente “democratizante” (termo que estpa afeto ao PO argentino), o desliza foi ainda maior: capitulou-se a Perestroika (reestrturação) e à Glasnost (transparência) de Gorbatchev e se chegou a considerar o mesmíssimo Boris Yelsin (em Ou v ala URSS de Gorbatchev) como uma suposta ala esquerda destas políticas consideradas como progressistas. Vejamos: “No atual estado da informação (…) uma conclusão se impõe: o dever dos marxistas revolucionários – e além deles, de todas as forças de convicção socialista-comunitsa real na URSS e fora da URSS, a respeito da experiência crítica da URSS é de apoiar de maneira crítica ou de rechaçar cada reforma concreta posto em prática pela equipe dirigente da URSS, segundo sirva ou não aos interesses da classe trabalhadora . Ou v ala URSS de Gorbatchev?, Paris, La Breche, 989, pp -328-9. Novamente a clássica linha não independente de “apoio crítico” a burocracia ou a alguma de suas alas. Esta linha, expressa em apoio ao governo nacionalista burguês de Paz Estensoro na Bolívia em 1952, na oportunidade de uma das poucas revoluções trabalhadoras e socialistas reais do pós-guerra, se transformou em traição aberta ao processo. Ver a respeito, R. Sáens, “Crítica al Romantismo anticapitalista”. SOB 16.
[34]Esta discussão coloca um problema de método frente às revoluções e processos revolucionários: a dupla exigência de não ser normativistas na hora de considerar os processos reais da luta de classes, mas, ao mesmo tempo, saber identificar seus limites de classe e socialista, avaliá-los tal como são e não como quiseram que fossem,. É uma obrigação intervir no processo tal qual é, mas não para adaptar-se a ele, senão para dar uma luta estratégica para que se transformem em trabalhadores e socialistas.
[35]O caso mais grave desta tradição oportunista é, hoje, a participação de Miguel Rosseto, da Tendência democrática Socialista do PT, como Ministro do Desenvolvimento Agrário do governo burguês de Lula. A DS é parte atual do governo burguês do SU (seu segundo partido depois da LCR francesa) e inclusive na tradição desta corrente o passo de tomar parte plenamente em um governo burguês não tinha antecedentes, salvo no Lanka Sama Samaja Party (LSSP) do Ceilão, nos anos 1960, mas este partido foi, nessa oportunidade, expulso do SU. O caso DS deu lugar a acaloradas discussões diplomáticas – sem consequência pratica alguma – no SU, que convive com a vergonha de uma verdadeira traição em tempo real.
[36]Alex Callinicos, Trotskyism, cit.
[37]Idem, p. 33.
[38]Tony Cliff, Trotskyismo after Trotsky, cit. pp. 17-18.
[39]IOú Allon-nous?, em Los Congressos de la IV Internacioal, ed. Cit., p. 29.
[40]Marcel Bleibtreu, integrante da maioria do PCI, opõe a ele um conhecido artigo chamado Onde vai o camarada Pablo?. Sua posição configurou uma correta resposta frente a orientação liquidacionista de Pablo, que deu lugar, em 1953, à ruptura mais importante da IV no pós-guerra (de fato, Pablo expulsou a oposição da Internacional). Este sector, como temos dito, constituiu uma posição progressista frente ao curso do pablo-mandelismo,, ainda apesar de seus limites teóricos. Nahuel Moreno se somou a este setor, integrado também pelo SWP dos Estadis Unidos, durante os anos 1950.
[41]Não é demais assinalar a falta de perspectiva de toda a fração majoritária pablo-mandelista da IV Internacional nesses anos, cuja análise-justificação desta política capituladora vinha dada pela suposta iminência da III Guerra Mundial dos Estados Unidos contra a URSS. Isto, apesar de que faziam anos que já se haviam firmado os acordos de Yalta e Postdam e começava o boom econômico do pós-guerra. Esta atitude revelava, ademais, uma total incompreensão dos acordos de Estado que havia estabelecido a burocracia da URSS com o imperialismo, de peso decisivo em todo o pós-guerra; esta corrente do trotskismo assumiu integramente a scenificación – na essência, contrarrevolucionária – da luta entre os dois campos: EEEUU e a URSS que não foi mais do que um conflito pactuado e inteiramente dirigido contra as massas trabalhadoras de todo o mundo.
[42]Nessa década. Stalin impôs a subordinação do nascente Partido Comunista Chinês ao Kuomitang) partido nacionalista burguês. Com referência à crítica da teoria dos campos e seu significado capitulador, existe um trabalho muito valioso e atual de Nahuel Moreno, A traição da OCI (1981), dirigido, paradoxalmente, contra o mesmo setor que na década de 1950 se levantou corretamente contra Pablo na França: a corrente orientada por Pierre Lambert, que nestes textos não podemos abordar em extensão. Este trabalho de Moreno é muito recomendável por seu caráter educativo sobre como se deve fazer política revolucionária e independente.
[43]M. Pablo, cit.
[44]O objetivismo foi, sem dúvida, uma marca registrada de quase todo o trotskismo do pós-guerra, incluindo o morenismo. Disse Pablo: Os acontecimentos mais profundos, mais revolucionários, mais determinantes – nos ensina a teoria marxista-leninista do capitalismo em sua fase imperialista – são provocados apesar e contra todos os obstáculos subjetivos, a pesar e contra a linha traidora das direções tradicionais social-democrática e stalinista de massas, pelas contradições inerentes ao regime social atual, pela exasperação inevitável destas contradições (…) “Oà allons-nous?, p. 35. Ou seja, produto do processo objetivo apesar e contra as direções, a revolução socialista progrediu sem descanso. Temos escutado este tipo de raciocínio no mais profundo da crise do velho MAS em fins de 1980.
[45]Já voltaremos sobre isto quando questionemos não só a caracterização política que o pablismo fazia da burocracia stalinista, senão da análise comum a muitas correntes do trotskismo tradicional acerca de sua natureza social.
[46]M. Pablo, cit.
[47]M. Pablo, cit, p. 46.
[48]M. Pablo, cit, pp. 28, 35 e 41.
[49]Neste caso, a referência ao modelo da revolução russa como não aplicável às revoluções do pós-guerra cumpre o papel de deixar sem marco de referência a análise dos limites e o próprio caráter dessas revoluções.
[50]Daniel Bnesaïd,, em Combates e debates da IV Internacional, Françoise Moreau, Quebec, Vientos do Oeste, 1993.
[51]Ver a respeito a crítica de J. P. Dives ao folheto de Bansaïd, Os trotskismos.
[52]D. Bensaïd, cit., p. 22.
[53]Em começos dos anos 1980, Moreno caiu nesse desastroso enfoque. Porque a “Atualização do Programa de Transição” transformava a “exceção” em regra das revoluções (passadas e por vir), assentando as bases teóricas e estratégicas dos desvios objetivistas e oportunistas que levaram à explosão da corrente morenista. Já voltaremos a isso.
[54]Pierre Naville: El Nuevo Leviatan, El salário Socialista, volume 3, p. 165. Naville adverte que um princípio comum (e equivocado) entre a maioria das tendências do bolchevismo na década de 1920 era que a classe trabalhadora não podia explorar a si própria. Se estava no poder e era dominante, como ia explorar a si mesma? Finalmente, a história demonstrou que a classe trabalhadora deixou de ser dominante em todos os terrenos. E que, como lição da experiência histórica, deve-se saber que logo depois da exploração capitalista orgânica, sucede uma forma de exploração não orgânica, a exploração mútua. Esta é inevitável em condições do mercado mundial capitalista e é tarefa da transição tender a reabsorver e dissolver esta última forma de exploração do trabalho.
[55]Pierre Naville, El Nuevo Leviatan, O salário socialista, volume 3. ed. Cit., p. 118.
[56]P. Naville, cit., p. 119.
[57]Ernest Mandel, Tratado de Economia Marxista, México, ERA, 1988. Parágrafo a parágrafo, os capítulos dedicados a economia da URSS são uma lamentável acumulação de lugares comuns.
[58]Cabe reconhecer que Nahuel Moreno, em que pese os déficits de sua própria posição, teve o mérito de seguir empiricamente a Naville rm alguns fundamentos de sua abordagem. Sobre esta base realizava uma crítica justa ao pablomandelismo: Completando esta cadeia que aparta o revisionismo do marxismo, aceitando a concepção dos teóricos da burocracia do socialismo em um só país, o pablismo aceitou as premissas do stalinismo de que no mundo atual existem dois mundos econômica politicamente antagônicos: o do imperialismo e o dos Estados trabalhadores burocratizados. Isto não é assim nem no terreno político, nem no econômico. não há dois mundos econômicos em escala mundial. Há uma só economia mundial, um só mercado mundial dominado pelo imperialismo. Dentro desta economia mundial dominada pelo imperialismo, existem contradições mais ou menos agudas com os Estados trabalhadores burocratizados onde se expropriou a burguesia. Mas não são contradições absolutas (…). A economia de todos os Estados operários, burocratizados ou não, está subordinada – enquanto o imperialismo siga sendo mais forte economicamente – à economia mundial controlada pelo capitalismo. É por isto que a economia dos Estados burocratizados seguiu como uma sombra os ciclos da economia capitalista mundial. Nahuel Moreno, Actualización del Programa de Transição, p. 68.
[59]Modelo no qual, como temos assinalado, aparece abolido um dos princípios da exploração capitalista, a propriedade privada dos meios de produção, pero subsiste outro: a norma capitalista de apreciação das capacidades de trabalho (usando a expressão de Naviile). Isto mesmo rege para o caso do argentinazo: sejam as fábricas recuperadas ou, como cooperativas de distribuição, os movimentos e trabalhadores desocupados. Ali impera a auto-exploração ou a distribuição da miséria. Isto não prejudica a expressões como conquistas dos trabalhadores na luta, mas permite ter um ponto de vista crítico acerca delas.
[60]E. Mandel, op. cit., p. 174.
[61]idem
[62]P. Navlle: El Nuevo leviatan, El salário socialista, vol. 2, pp. 122-132.
[63]E. Mandelk, cit., p. 175.
[64]E. Mandel, cit. p. 178.
[65]P. Naville, cit.
[66]idem
[67]P. Naville, op. cit., p.19.
[68]“A burocracia soviética é incomensuravelmente mais poderosa que todas as burocracias reformistas dos países capitalistas juntos, dado que tem em suas mãos o poder do Estado, som suas vantagem e privilégios” Leon Trotsky, Como venció Stalin a la oposição (12-11-35), em Escritos, tomo VIII, vol. 1, Bogotá, Pluma, 1977.
[69]Moreno criticou em várias oportunidades isto, ainda que teve idas e vindas a respeito da caracterização da burocracia como trabalhadora. A considera assim e La dictadura revolucionária do proletariado, donde chaga a conceber a revolução política como uma luta de um setor da classe trabalhadora contra outro. Sem embargo, em outros textos dos anos 1980, esboça a caracterização da burocracia como socialmente pequeno burguesa. Veremos mais adiante.
[70]Isto esboça uma elaboração específica que está alem dos limites deste trabalho e que marca uma diferença a respeito do ocorrido nos países do Leste.
[71]E.Mandel, Por que a burocracia não é uma nova dirigente, Mandel Archive, www.angelfire.coclasse mprred
[72]Texto que aparece como muito vulgar ao leitor em castelhano, provavelmente como produto de sérios problemas de tradução.
[73]E. Mandel, El Poder y el dinero, México, Siglo XXI, p. 107.
[74]Christian Rakosvski, Los Peligros profesionales del poder, www.mas.org.ar
[75]Diferentemente de Astarita, cremos que Trotsky, que havia avaliado quase milimetricamente as relações sociais na URSS e que não quis das esse passo em meados dos 1930 – quando para ele se tratava de uma revolução ainda viva – atuou corretamente no metodológico, desde seu ponto de vista.
[76]Rolando Astarita, “Relações de produção e estado na URSS”, Debate marxista n. 9, novembro de 1977. trata-se de um trabalho valioso e pedagógico que, não obstante, tem o sério problema de não lograr dar uma definição materialista das raízes histórico-sociais nas quais se assentava a degeneração da URSS. Isto havia sido muito bem revolvido na elaboração de Naville, que Astarita rechaçou. Por isso, ficou abstrata sua avaliação da formação social real da URSS e demais estados burocráticos; reinivindicou, inclusive, a elaboração a nosso juízo incorreta de Bruno Rizzi. Mais grave ainda é que isto ocorreu porque Astarita tende a ser tributário de Mandel em um ponto fundamental, que é não partir da unidade de princípios reatores da economia mundial. E, portanto, não parece que nos Estados burocrático houveram reinado as imposições da lei de valor. Astarita considera que este ângulo implica assumir uma visão capitalista de Estado, o que nos parece um erro.
[77]Recordamos aqui a opinião de Leon Trotsky acerca das razões e consequências políticas das concepções objetivistas: “Desde há muito, o camarada Vereecken caraterizou o POUM de forma totalmente errônea, pensando que, sob a pressão dos acontecimentos, este partido, por assim dizer, evoluiria automaticamente em direção a esquerda e que nossa política na Espanha deveria limitar-se a um apoio crítico ao POUM. Os acontecimentos ao confirmaram em absoluto o prognóstico fatalista e otimista, extraordinariamente característico do pensamento centrista, mas de maneira alguma do pensamento marxista.” Leon Trotsky, Espana revolucionaria, Antídoto, 2004, p. 250. Estas graves consequências políticas das análises e as políticas objetivistas se verificaram obviamente na crise do velho MAS.
[78] Há dois partidos ou correntes principais que se reivindicam morenistas: o MST argentino e o PSTU brasileiro. Mais além do que tradição e equilíbrio são dois planos não necessariamente iguais, podemos dizer que, no caso destes dois partidos, nenhum logrou passar o menor equilíbrio da incorreta síntese objetivista dos anos 1980: nem no que faz a teoria da revolução, nem tampouco a respeito dos países do Leste. Em todo caso, tratam-se de versões que de uma ou outra maneira são vulgarizações dessa elaboração de Moreno, o que não faz mais do que agravar os problemas que já tinham. Portanto, a crítica teórico-programática a Moreno aqui vertida cabe também, com muito maior motivo, a estas correntes.
Notas sobre a teoria da revolução permanente no início do século XXI
Terceira Parte
As revoluções do pós-guerra e o movimento trotskista
Sujeitos, tarefas e caráter da revolução
Partamos de insistir que, metodológicamente, Moreno tinha uma posição correta e não dogmática, no sentido de assinalar que “sempre temos intentado teorizar sem ignorar os problemas reais”. Mas, Moreno, de maneira totalmente equivocada, explicitou que entendia que o “erro” da teoria de revolução permanente era que estava assentada sobre os sujeitos e não sobre o processo objetivo: “Vou me adiantar a dizer qual é a mecânica da teoria de Trotsky: uma mecânica que (…) tem algumas falhas. Porquê opina Trotsky que se passa da revolução democrático burguesa à revolução socialista? Por uma combinação objetiva de tarefas ou pelo que no marxismo ou em sociologia se chama sujeito histórico? (…) Segundo Trotsky, como se passa da revolução democrática à revolução socialista? Pelo sujeito ou por um processo inevitável no qual a revolução democrático-burguesa, ao ir contra setores da burguesia, tornar-se-á socialista inevitavelmente? Pode ser que o carro esteja em declive e avance sozinho. Isso significa que resolver as tarefas democráticos burguesas significa começar a atacar o capitalismo: se você se coloca na ladeira, o carro vai sozinho (…) Acreditamos que os fatos mostraram que há um grande erro no texto escrito do teoria da revolução permanente (…) Havia processos de revolução permanente que expropriaram a burguesia e fizeram a revolução operária e socialista sem serem liderados pela classe trabalhadora e sem serem liderados pelo partido comunista revolucionário. Ou seja, os dois sujeitos de Trotsky, o social e o político, até hoje, não chegaram na hora (…) Esta segunda formulação da teoria da revolução permanente de Trotsky (…) tem a defeito grave que (…) gira em torno dos sujeitos “[1}
De fato, as revoluções do pós-guerra configuraram um enorme desafio teórico e político. É um fato que eles eram quase completamente originais naquilo que torna o corpo central da teoria da revolução permanente, porque a experiência histórica anterior havia sugerido que não havia possibilidade de medidas anticapitalistas sendo tomadas sem a classe trabalhadora e a organização socialista revolucionária. no centro do processo. Mas não foi isso que aconteceu no pós-guerra, mas, ao contrário, o que foi dado, em certo sentido, é a hipótese de que Trotsky, repetidamente – justificado pela polêmica contra a concepção stalinista da “revolução por etapas”- recusou-se a considerar: que líderes burocráticos e pequeno-burgueses foram mais longe no caminho do confronto com a burguesia e o imperialismo e chegaram mesmo à expropriação da classe capitalista.
A novidade era que a norma no pós-guerra era que essas lideranças burguesas e burocráticas “iam além” e expropriavam a burguesia: na China, na Iugoslávia, na Coréia, em Cuba e no Vietnã, através de revoluções e nas Glacis. completamente por cima. É claro que, com uma diferença fundamental: que esses processos não foram um “curto episódio em direção à ditadura do proletariado”, mas que o congelamento da revolução naquele estágio se tornou permanente.
O enigma teórico a ser explicado era, então, como havia sido possível que essas direções e setores sociais tivessem aparentemente substituído a classe trabalhadora na tarefa de “realizar a revolução socialista”. Moreno tenta explicar isso com base no fato de que a “solução das tarefas democráticas burguesas” (combinação objetiva das tarefas) pretendia começar a atacar o capitalismo. E, então, na medida em que isso ocorre como um fato objetivo (“o carro é colocado na encosta”), o sujeito que realiza isso não tem a menor importância. À medida que o processo se desenvolve “sozinho”, a revolução se torna “objetivamente socialista”, “inevitavelmente” socialista. Por isso, foi necessário “virar” a teoria da revolução permanente, “colocar de pé”. Em vez de girar em torno dos assuntos, devia girar em torno do processo “objetivo”.
Para justificar essa análise, Moreno se baseou em sua interpretação particular do debate de Trostsky com Preobrajensky sobre como uma revolução deveria ser caracterizada. Moreno diz, como parafraseando E. Preobrajensky (em seu debate com Trotsky em torno do caráter da revolução chinesa no final dos anos 20): ” ‘Você começa dos sujeitos, o sujeito histórico, a classe trabalhadora, Isso é um raciocínio ruim, porque você tem que se afastar da realidade e ver o que a realidade dá. Nem todas as realidades serão como a russa. Então, se na China a revolução é democrático-burguesa, não está fora de questão que um pequeno partido burguês faça a revolução. No campesinato russo não ocorreu, mas não está descartado que isso ocorra na China. A realidade muda. Por que você está tão certo de que este é o assunto? Pode ser que sim, pode ser que não. Não feche a possibilidade de outros assuntos. É um raciocínio muito subjetivo, em vez de objetivo. Se se quer fazer uma revolução democrático-burguesa não está descartada que uma corrente pequena burguesia a faça que, arranque de lá os imperialistas. Se isso acontecer, com sua teoria, ficamos sem linha. É uma teoria extremista: generaliza a revolução de outubro e estamos apenas entrando no Oriente, e não sabemos realmente como é a coisa. Não vamos nos apressar. Essa é a crítica [de Preobrajensky a Trotsky]. ” [2]
Na verdade, em nosso entendimento, o que Preobajensky estava procurando substanciar era que, ao contrário da posição correta de Trotsky, ele acreditava que a revolução chinesa não poderia superar o estágio democrático burguês resultante de circunstâncias “objetivas” (as tarefas), entendida de maneira mecânica e nacionalista: para Preobajensky, a revolução chinesa só poderia ser burguesa.
Mas Moreno, no entanto, usa as circunstâncias objetivas ao contrário de Preobajensky, argumentando que esta foi a resposta que Trotsky lhe deu em sua última carta, para justificar que, mesmo na ausência da classe trabalhadora e do partido no centro do processo, as “circunstâncias objetivas” e a natureza das tarefas, os rumos burocráticos foram forçados a ir mais longe até chegar à expropriação da burguesia (o que aconteceu) e, portanto, consumar a transformação da revolução democrática em operária e socialista (o que opinamos que não aconteceu).
Por isso ele diz: “(…) houve uma grande revolução. Fidel Castro armou as massas e decidiu dar-lhes as terras, sem expropriar o imperialismo. O imperialismo bloqueou-o; depois, ele foi forçado a se defender cada vez mais e a adotar mais e mais medidas. Isso quer dizer que, forçadas pelas circunstâncias, avançaram muitos quilômetros a mais do que planejavam, muitos quilômetros a mais do que achávamos que chegariam. Uma estação que é chamada “expropriação de toda a burguesia”. [3]
E ele acrescenta: “Trotsky estava certo em como o trem marchava, mas ele não acertou na estação em que ele pararia. Trotsky disse: ‘O trem tem que marchar e marchar (…) e não parar (…) E se quem dirige o trem não é a classe trabalhadora e o partido revolucionário marxista, o trem não avança, ou avança muito pouco ‘ E nós dizemos: “A revolução é tão forte, tanto que, embora a liderança oportunista e a pequena burguesia não tenham sido socialistas, agora são forçadas muitas vezes a fazer uma revolução socialista, por causa da pressão“. Pode-se comparar a um trem em movimento: se não for dirigido pelo partido bolchevique, o trem pára. Isso foi cumprido. O que Trotsky disse? : ‘para a cinquenta quilómetros’ (…) Existe uma estação chamada ‘expropriação da burguesia’. Dirigido por líderes pequeno-burgueses – dizia Trotsky – o trem nunca chega à estação de expropriação da burguesia. E os fatos mostraram que o trem chega, pressionado pelas massas, pressionado pelo imperialismo “. [4]
O problema aparece, precisamente, quando se trata de especificar o quanto mais longe o trem da revolução havia ido. Até onde sabemos, muito menos do que a vasta maioria do trotskismo do pós-guerra considerava, e até mesmo o que Moreno considerou: não deram lugar a revoluções genuinamente operárias e socialistas, nem abriram a transição.
Mas Moreno acabou caindo no gravíssimo erro – e caminho sem saída – de reconhecer que as lideranças burocráticas e / ou pequeno-burguesas tinham liderado revoluções de forma clara e simplesmente “operárias e socialistas objetivas ou inconscientes” (de “Fevereiro”), que levaram a novos Estados operários.
“A revolução de fevereiro é diferente da de outubro, mas está intimamente ligada a ela; deve ser o prólogo obrigatório à de outubro para a revolução seguir em frente. Fevereiro é uma revolução operária e popular que confronta os exploradores do imperialismo, da burguesia e dos latifundiários ligados à burguesia e que destroem o aparato estatal burguês (…). Por causa da dinâmica de classe e do inimigo que enfrentam, ambas são revoluções socialistas. A diferença entre os dois está nos diferentes níveis de consciência do movimento de massas e, principalmente, na relação do partido revolucionário marxista com o movimento de massas e o processo revolucionário em curso. Dito sucintamente, a revolução de fevereiro é inconscientemente socialista, enquanto a revolução de outubro o é de forma consciente. Poderíamos dizer – flertando com Hegel e Marx – que o primeiro é uma revolução socialista em si, enquanto o segundo é para si mesmo “. [5]
Porque, segundo Moreno, “fevereiro é uma revolução socialista, categoricamente socialista, que destrói o aparato estatal capitalista através da luta revolucionária armada dos trabalhadores (…) Neste século (…) não há mais revoluções democrático-burguesas; há apenas revoluções socialistas, embora com ou sem o amadurecimento do fator subjetivo (…). Todas as revoluções atuais são socialistas pelo inimigo que enfrentam – a burguesia e seu aparato estatal – e pelo caráter de classe daqueles que as fazem, os trabalhadores “. [6]
Em nosso entendimento, todas essas definições estão mal. A revolução de fevereiro de 1917 tinha sido democrática burguesa, com a peculiaridade de abrir o processo da revolução socialista, consumada em outubro de 1917. Mas, ao contrário da revolução russa de fevereiro, as revoluções do pós-guerra não tinham essa peculiaridade de abrir o processo de revolução socialista, mas, precisamente, evitar essa possível dinâmica. Este é um fato histórico hoje incontestável antes do colapso ignominioso desses Estados.
Ao mesmo tempo, havia outro grande problema nessa tipificação: como estamos tentando demonstrar, consideramos um erro grave falar de revoluções socialistas “inconscientes”. Porque, em nossa visão, a experiência histórica mostrou que, neste tipo histórico de revolução, a revolução socialista, não há substituição válida: ou é incorporada pela própria classe trabalhadora, ou é outro setor ou fração de uma classe que toma seu lugar, em função não dos interesses dos trabalhadores, mas de seus próprios interesses. O máximo que o processo “objetivo” deu é a dinâmica anticapitalista das revoluções do pós-guerra. Mas a equalização das conotações anticapitalistas e socialistas é um passo que a experiência histórica do pós-guerra não permite dar.
Portanto, o que temos são diferentes tipos de revoluções, não apenas a revolução “operária e socialista”. Porque no período pós-guerra foram desenvolvidas revoluções democrático-nacionais, anti-imperialistas e anticapitalistas, mas nenhuma propriamente socialista, como ocorrera após a Primeira Guerra Mundial. Porque os fatos mostraram que a revolução socialista não pode ser “inconscientemente” socialista. Este é um tremendo erro, porque, mais uma vez, reiteramos que sem a classe trabalhadora liderando o processo com seus próprios métodos de luta, consciência e organização, não há revolução socialista.
A revolução socialista não pode ser consumada como um produto das “circunstâncias objetivas“, das “tarefas” que supostamente cumprem, sem importar se a classe trabalhadora, como tal, não tenha nem arte nem parte nela, nem como essas tarefas são cumpridas. No caso da revolução propriamente socialista, existe necessariamente uma relação dialética entre as tarefas, o sujeito e os métodos pelos quais eles são levados adiante. Essa dialética da revolução socialista exclui qualquer possibilidade de revolução de natureza supostamente “inconsciente” ou “objetivamente” socialista, determinada “objetivamente” pelo mero caráter das tarefas. Porque se essas tarefas são realizadas por outros setores que não a classe trabalhadora – e, portanto, com outros métodos -, acabam servindo a esses setores e não à classe trabalhadora.
Em suma, estamos na presença de uma completa revisão objetivista da teoria da revolução [7], que por sua vez é tributária da posição teórica majoritária da Quarta Internacional. Como a experiência histórica no pós-guerra demonstrou, não são apenas as tarefas que determinam o caráter da revolução: é também decisivo o sujeito e o modo (métodos) em que essas tarefas são impelidas. [8]
Anticapitalistas, mas não socialistas
Moreno, em seguida, aponta como se explicaria que setores “pequeno-burgueses” objetivamente realizaram as tarefas da classe trabalhadora: “as leis do desenvolvimento desigual e combinado (…) dizem que setores de uma classe podem fazer revoluções de outra classe” (…) para nós, nesse período do pós-guerra essa lei foi dada, mas invertida: setores da pequena burguesia fizeram tarefas operárias. Isso demonstra o papel da classe média. A classe média é condenada, coitadinha, por não ter política própria, porque está no meio: ou está com a burguesia ou ratá com a classe trabalhadora. Mesmo quando atua de forma independente, não pode ter sua própria política, porque não há economia pequeno-burguesa dominante: ou as grandes fábricas (…) pertencem ao povo e ao Estado, ou pertencem aos grandes monopólios (…)
“(…) na China, derrubar o imperialismo e dar a terra aos camponeses é o socialismo, já é a revolução socialista. Na China não há senhores feudais: os camponeses são explorados pelos mercadores usurários do povo. Então, se lhes dermos as terras, expropriamos a classe burguesa chinesa. Se não, não há saída. Quer dizer que se trata do próprio processo objetivo. Se há um processo de revolução democrática, essa revolução será socialista por seu próprio conteúdo. E o mesmo se você derruba o imperialismo, se as fábricas forem expropriadas; isto é, expropriar as maiores fábricas, os portos, tudo o que tem a ver com a essência da estrutura econômico-social chinesa. Então, não me interessa o sujeito. Seja qual for o sujeito, ele tem que fazer a revolução socialista “. [9]
Segundo Moreno, então, a revolução é necessariamente operária e socialista, produto da aplicação da teoria do desenvolvimento desigual e combinado (no contexto da economia mundial dominada pelo imperialismo). Assim como a pequena burguesia jacobina se encarregara da fase mais radical da revolução burguesa na grande revolução francesa; assim como o proletariado assumiu na revolução russa a realização das tarefas da revolução burguesa que a própria burguesia não pôde realizar, seguindo esse esquema, no caso da China e das revoluções do pós-guerra, a pequena burguesia teria sido aquela que encarnou e executou as tarefas da revolução proletária, mesmo na ausência completa do próprio proletariado.
Isso se baseava em outro fundamento teórico: a partir da própria análise de Trotsky do caráter anticapitalista das tarefas no século XX, emergiu que a revolução se tornaria socialista por determinações e circunstâncias “objetivas”. Vamos ver isso mais de perto:
“Isto, em suma, tem a ver com o caráter da revolução do nosso tempo. Existem apenas dois polos: a revolução operária e a contrarrevolução imperialista burguesa. Todos os fenômenos contemporâneos são atravessados por essa realidade. Não há terceiras variantes: em todos os países do mundo há ditaduras burguesas (das mais variadas formas) ou ditaduras operárias, mesmo que sejam burocráticas. Não há possibilidade de uma ditadura pequeno-burguesa, porque não pode haver uma economia dominante das relações de produção pequeno-burguesas. É por isso que a ditadura deve ser definida pela classe dominante “. [10]
Mas isso foi baseado em um grave erro de apreciação: a assimilação de tarefas anticapitalistas como operárias e socialistas. Porque, de fato, a reforma agrária, a independência do país do imperialismo e a expropriação foram tarefas que nas revoluções do pós-guerra tomou um caráter anti-capitalista. Mas o erro foi que elas foram assimiladas, através de um esquema mecânico e econômicista, às revoluções operárias e socialistas. Pois, no sentido histórico os polos são e não podem deixar de ser as classes fundamentais: a classe capitalista ea classe operária. Mas, em tempo real – inclusive o destacou Moreno – se estava vivendo o fenômeno de fortalecimento colossal do aparato stalinista, que, por uma totalmente imprevista, original e específica circunstância histórica tinha se elevado em um Estado (e estados), como resultado da degeneração de uma revolução socialista e um verdadeiro estado operário. Portanto, em termos circunstanciais, tinha aparecido na cena histórica um “terceiro jogador” condenado a perecer, não orgânico, mas que não consideramos de modo algum parte da classe trabalhadora, nem sujeito de realização das tarefas da classe operária (substituindo-a), que exigia uma compreensão particular: a burocracia stalinista. [11]
Em suas mãos, reiteramos, a expropriação e o planejamento estatal constituíram medidas anti-capitalistas, mas de maneira alguma operárias e socialistas, de modo que não deram origem a novas ditaduras proletárias, muito menos à abertura da transição.
Com a queda final da burocracia no final da década de 1980, voltou-se à “normalidade”, o que mostra que a análise das classes fundamentais, no sentido histórico do termo, permaneceu plenamente válida. Mas as lições a serem aprendidas do fenômeno da burocratização total da revolução não podem ser incluídas sob um pseudo-esquema classista que desarme os genuínos socialistas revolucionários do futuro em face dos perigos da degeneração burocrática.
Retornando a Moreno, seu esquema economicista acaba fornecendo o fundamento “material” do objetivismo: “A outra coisa que deve ser acrescentada à teoria da revolução permanente é, primeiro, que as revoluções democráticas hoje são anticapitalistas e antiimperialistas, e o imperialismoé a expressão máxima do capitalismo. E, por essa via, inevitavelmente se avança, tem que se transformar em revolução socialista. “.12]
E mais adiante: “É uma ditadura burocrática do proletariado.[13] Por quê? Em que instituição se apoya? Esse foi o grande problema teórico (…) É apoiado, então, em uma instituição que é chamada de país ou estado (…) Se a economia muda de burguesa para proletária, então está se apoiando em uma nova instituição, que é o Estado proletário (…) É um Estado, isto é, indica a classe que toma posse.[14] É uma ditadura do proletariado porque é baseada em uma classe. Mais do que em uma classe, ela depende da liquidação de uma classe (…) A burguesia é liquidada e, como não pode haver outra economia que não esteja funcionando, surge um novo tipo de país, que origina um novo tipo de Estado. Podemos chamar a esse estado de proletário ou transitório. Talvez seja melhor chamá-lo de transicional.“[15]
Aqui são interessantes certas sutilezas de Moreno – também visíveis em Atualización … -, no sentido de que, ao invés de depender da classe trabalhadora, o novo Estado depende da “destruição da burguesia“, bem como da abordagem ou da dúvida sobre nomear o novo estado como “operário” ou como “transitório” … Essas sutilezas ou hesitações remetem à enorme dificuldade de assimilar a conotação anticapitalista à de operária e socialista. [16]
Porque, em última análise, em nosso entendimento, em circunstâncias muito determinadas e específicas, sob o império mundial dos aparatos durante a maior parte do período do pós-guerra e de como o stalinismo emergiu fortalecido após a guerra e a frente de imensos territórios, de maneira não-orgânica e congelando um possível processo de transição para o socialismo, a dominação da burocracia de fato surgiu, usufruindo a expropriação da burguesia como “mais que uma mera burocracia, mas menos que uma classe orgânica”.
Ou seja, as circunstâncias “objetivas” alcançaram determinar uma dinâmica democrática, antiimperialista e anticapitalista popular da revolução, mas, na ausência da classe trabalhadora no centro do processo, não conseguiram configurar uma revolução operária e socialista nem conduziram verdadeiramente para novos estados operários. Porque, insistimos, a experiência histórica mostrou que as conotações anticapitalistas e socialistas não são sinônimas[17], como opinou a maioria do trotskismo pós-guerra. E acreditamos que isso é o que explica o paradoxo das supostas revoluções “operárias e socialistas” na completa ausência da classe e dos genuínos partidos socialistas à frente do processo.
Esse paradoxo levou Nahuel Moreno a um verdadeiro impasse teórico-programático, no qual toda a perspectiva autêntica do socialismo acabou comprometida, como produto de um entendimento que, em um plano teórico, terminava aproximando-o do revisionismo pablista. Porque sendo forçado, pelo marco teórico em que trabalhava, a reconhecer que as lideranças traidoras haviam chegado tão longe no estabelecimento e usufruto de genuínos Estados operários (ainda que degenerados ou deformados), que lugar poderia ser deixado assim para o socialismo revolucionário?[18]
Uma concepção substituista e burocrática da transição
Sobre a base incorreta anterior, Moreno acabou desenvolvendo um conjunto de posições sobre a revolução e a transição para o socialismo profundamente equivocada, que estava relacionada às concepções objetivistas da revolução socialista que temos criticado.[19]
O texto mais global de Moreno sobre essas questões é “La dictadura revolucionaria del proletariado”. Basicamente, postula-se alí que haveria duas possíveis ditaduras do proletariado: a ditadura revolucionária do proletariado e a ditadura burocrática do proletariado, que em nossa opinião estava completamente errada. Porque, como temos desenvolvido neste trabalho, sem a classe trabalhadora liderando o processo de transição socialista, simplesmente, não há ditadura do proletariado. É isso que a experiência histórica indica. E, portanto, falar da ditadura “burocrática” do proletariado certamente se refere a uma ditadura, mas de outro setor social que não é o proletariado, o que Moreno passa por alto.
Nestas condições, o texto atua como justificativa total para a chamada ditadura “burocrática” do proletariado, confundindo o período “ditatorial” dos bolcheviques com um fenômeno qualitativamente diferente, como era a burocratização da URSS. Porque, até onde sabemos, os bolcheviques no poder, nas condições impostas pela guerra civil, cometeram vários erros que, para agravar as coisas, foram erroneamente teorizados especialmente pelo próprio Trotsky em textos como “Terrorismo e Comunismo”, onde se fazia virtude dessas necessidades peremptórias impostas pela guerra civil.
Mas o Termidor Soviético era algo muito diferente: não se tratou de erros dos revolucionários, mas de uma contrarrevolução política e social levada a cabo por uma burocracia que, longe de ser “operária”, deixara de pertencer à própria classe operária e configurava uma nova categoria social.
O trabalho de Moreno confunde completamente esses dois processos e, ao mesmo tempo, não possui nenhum balanço crítico da atuação dos bolcheviques no poder.[20] Desta forma, desarma completamente para a luta contra um tremendo fenômeno das revoluções anticapitalistas do século XX: o fato de sua burocratização, um processo específico não previsto nesta escala pelo marxismo clássico, e hoje um elemento fundamental da aprendizagem. revolucionário da classe operária em relação ao século XXI.
A elaboração de Moreno parte de um critério oposto ao do próprio Trotsky, que subordinava a luta pela “defesa” da URSS à estratégia da revolução contra a burocracia. Em Moreno, esse critério aparece completamente invertido: tudo se justifica em virtude da dominação do imperialismo em escala mundial.[21] Um domínio que evidentemente existe, mas que não pode servir para justificar as imposições da exploração burocrática e da opressão sobre a classe trabalhadora desses países.
Ele diz em seu texto: “A partir do ano de 1949, Pablo, Hansen e Moreno aprofundaram e expandiram a hipótese ‘altamente improvável’ de Trotsky do governo operário e camponês que se torna uma ditadura do proletariado, e se a combinou com a muito elaborada para a URSS stalinista de “estado operário degenerado”, para começar a dar a nova categoria de “estado operário deformado”. É um mérito imperecível da nossa Internacional, que tenha aceito essa nova categoria sem grandes transtornos. Uma vez que isso aconteceu, o país ou estado tornou-se operário e sua superestrutura estatal, ditadura do proletariado.” [22]
Mas esse “mérito imperecível” [23] … rapidamente pereceu. Porque, à luz do equilíbrio das revoluções do pós-guerra, nem o Estado “se tornou” operário, nem suas “superestruturas” formaram “ditaduras do proletariado” na total e completa ausência de toda dominação econômica e política do proletariado nessas sociedades. De qualquer forma, o mérito estava em permanecer independente dessas direções burocráticas. É claro que, nesse texto, Moreno permaneceu na péssima companhia de Pablo, o maior capitulador da burocracia stalinista.
A partir desse erro de apreciação sobre o verdadeiro caráter das revoluções do pós-guerra se encadeiam uma série de argumentos insustentáveis: a) a revolução socialista é necessariamente uma revolução minoritária; b) na revolução socialista há dois, e apenas dois, elementos essenciais: a mobilização das massas e do partido. Os organismos de poder e autodeterminação dos trabalhadores – sejam sovietes ou outros – são totalmente táticos; c) entre a sociedade atual e o futuro comunismo, haveria três e não apenas duas etapas, como indica o marxismo clássico; d) O “Estado e a Revolução”, texto clássico de Lenin, seria “antediluviano”, ou seja, antes da experiência de Outubro e, portanto, “superado” pelos eventos históricos; e) os direitos individuais e coletivos dos trabalhadores são necessariamente opostos na luta pela revolução socialista e da transição; f) também se opõem necessariamente os direitos sociais (ou de classe) e direitos democráticos considerados “individuais”, então, fundamentalmente, se tratava de lutar e defender uma suposta “democracia dos nervos e dos músculos” nesses Estados; g) a burocracia é considerada parte da classe trabalhadora. A revolução anti-burocrática é analisada como um processo “no interior da própria classe trabalhadora”, isto é, a revolução de um setor da classe trabalhadora contra o outro, a “burocracia operária”. Pablo poderia ter assinado isso sem inconvenientes.
O texto, como dissemos, acaba sendo um desastroso pedido de desculpas e justificativa do papel da burocracia nos países não capitalistas e se desarma completamente contra o fenômeno específico da burocratização da revolução proletária, ao embelezar os estados onde se impôs a dominação política e econômica da burocracia stalinista.
A crítica sistemática deste texto de Moreno ocuparia muito mais espaço do que temos aqui, por isso nos referiremos apenas a alguns dos problemas que consideramos mais espinhosos.
Um dos principais núcleos teóricos é a contraposição mecânica entre as liberdades “formais” (ou políticas) e as chamadas “liberdades econômico-sociais” nos Estados operários. Contraposição que, nestes termos, é completamente errada, porque não discrimina entre restringir esses direitos à burguesia (como um produto necessário da ditadura sobre essa classe exercida pelos trabalhadores)[24]; ou aos próprios trabalhadores, que, como regra geral e exceto em circunstâncias excepcionais, deveriam tender a gozar da mais ampla democracia.[25]
Nunca se deve esquecer que, sob o capitalismo, as chamadas liberdades “formais” – direito de reunião, liberdade de imprensa, direito de eleger autoridades políticas, etc. – não são (e não poderiam ser) consistentemente cumpridas. , Porque os trabalhadores não têm acesso igual à mídia e não podem tê-lo; porque sob o capitalismo o sufrágio universal é um engano; porque trabalhando 12 ou 14 horas é impossível ter o tempo e o interesse para assumir a administração da “coisa pública”, etc.
Aqui, então, o que Moreno faz não é nada mais que uma justificativa crua para a dominação da burocracia sobre os trabalhadores. A posição de Marx e Lenin era a oposta: era necessário acabar com a exploração do homem pelo homem, reduzir a jornada de trabalho, realizar a revolução socialista, dar lugar à “emancipação humana em geral” justamente para criar as condições materiais. para que o exercício dos direitos políticos (“o autogoverno dos trabalhadores”) fosse algo real e não meramente formal, como é para as amplas massas após as revoluções burguesas.
Disse Lenin: “Na sociedade capitalista, enquanto se desenvolva nas condições mais favoráveis, temos uma democracia mais ou menos completa na república democrática. Mas essa democracia está sempre fechada dentro dos estreitos limites da exploração capitalista e, portanto, é sempre, na realidade, uma democracia para a minoria, apenas para as classes possuidoras, apenas para os ricos. A liberdade da sociedade é sempre, mais ou menos, o que era nas antigas repúblicas gregas: liberdade para os proprietários de escravos. Sob as condições da exploração capitalista, os escravos assalariados modernos são tão sobrecarregados pelas necessidades e pela miséria que “a democracia não pode preocupá-los”, “a política não pode preocupá-los”. No curso atual e pacífico dos acontecimentos, a maioria da população é excluída da participação na vida política e social “. [26]
Moreno parece não entender isso. Não se trata de estabelecer uma oposição mecânica entre uma suposta “democracia de nervos e músculos” – que, por outro lado, não existia – [27] e as chamadas liberdades “formais”, mas de como realizar uma e as outras. consequentemente. Porque, tal como Moreno apresenta a questão, a única coisa que pode ser útil é a justificativa da explosão do domínio político da classe trabalhadora pela burocracia. Moreno parece não entender que, sem a democracia dos trabalhadores, não há, não pode haver, nem um estado operário nem uma sociedade de transição. E que a burocracia, precisamente para poder manter a maior parte da superprodução social na URSS e em outros estados não capitalistas, se cuidava, como da peste, de todos os indícios de reivindicação de liberdades “formais”. [28]
Disse Moreno: “Dentre as liberdades, os verdadeiros marxistas sempre reivindicaram, em primeiro lugar, aquelas que têm a ver com relações econômicas e trabalho; isto é, com os nervos e músculos dos trabalhadores (…). A mesma coisa temos que fazer com as liberdades democráticas: considerar fundamentalmente o que tem a ver com as horas de trabalho e o padrão de vida do trabalhador “. [29] Mas estas últimas liberdades não são “democráticas”, mas econômicas mínimas. Moreno aqui confunde dois tipos diferentes de reivindicações de natureza distinta e dissolve as reivindicações democráticas justamente em um texto em que tenta teorizar sobre a ditadura do proletariado. As demandas econômicas anticapitalistas são essenciais, porque levam a acabar com a exploração do homem pelo homem e também porque são a base material para uma outra condição fundamental: que os trabalhadores tenham tempo livre e possam realmente exercer conscientemente sua ditadura, endereço e controle sobre a sociedade.
De fato, nas sociedades não-capitalistas havia pleno emprego por um longo período, mas esse pleno emprego coincidia com a repressão sistemática de qualquer demonstração de livre iniciativa por parte dos trabalhadores. Porque mesmo em uma verdadeira sociedade de transição, as conquistas da classe trabalhadora não podem ser avaliadas apenas do ponto de vista econômico, mas outro ângulo fundamental será aquele que leva ao desenvolvimento da consciência e da organização independente dos trabalhadores. Moreno deixa totalmente de lado esse critério ao contrapor mecânica e formalmente às liberdades econômicas e as liberdades políticas.
Como resultado, o embelezamento do stalinismo não tem limites: “Na China, o proletariado é organizado em sindicatos e os camponeses em comunas que são legais e abrangem dezenas de milhões de trabalhadores. Este fato por si só faz uma enorme diferença em relação ao regime de Chiang-Kai-Shek (…). O mesmo se aplica ao papel, impressoras, rádios, salas de reunião. Antes estavam nas mãos da burguesia e do imperialismo; agora estão nas mãos da classe trabalhadora e do campesinato, embora controlados pela burocracia. Portanto, a revolução dos trabalhadores chineses, embora dirigida pela burocracia, significou uma expansão colossal da “democracia proletária” (…) “.[30]
Este é um verdadeiro “conto chinês“, porque ignorando que não era a organização independente do proletariado e do campesinato recai-se no erro comum ao conjunto do trotskismo “tradicional”: tudo estava “nas mãos da classe trabalhadora”, só que “controlado” pela burocracia … Na realidade, na transição autenticamente socialista, “nas mãos de” e “controlado por” só pode ser sinônimo, se não, não é uma transição para o socialismo. Não pode haver substitutismo de classe que valha: se esses meios não estão realmente nas mãos da classe trabalhadora, outra camada social, a burocracia, toma o seu lugar; também a política tem horror ao vazio. É outro setor de classe que tomou o lugar da classe trabalhadora e se aproveitou da expropriação dos meios econômicos e políticos de produção e dominação da sociedade a seu serviço, não para “servir indiretamente” à classe trabalhadora.
Como todo esse problema é ignorado, a elaboração acaba por cair na justificativa mais grosseira da burocracia e, paradoxalmente, leva diretamente a posições muito semelhantes às do pablismo, o que mostra em que medida essa estrutura teórica errônea era compartilhada por todo o trotskismo tradicional no período pós-guerra. É o que explica as recaídas permanentes e o paradoxo de Moreno para dar a razão na teoria àqueles a quem combateu politicamente toda a sua vida.
Disse Moreno: “Por esta razão, todas as ditaduras do proletariado estão entrincheiradas nas suas fronteiras com exércitos, polícia, burocracia estatal (…). Mas, ao mesmo tempo, o fato de que em todos esses países vemos o mesmo fenômeno de um “estado capitalista sem capitalismo” deve nos fazer pensar que há razões objetivas profundas que fazem que em todos os Estados operários isolados o fortalecimento da ditadura do proletariado seja uma necessidade“. [31]
É, mais uma vez, uma justificativa da burocracia (as “razões objetivas” de sua necessidade), indo sem solução de continuidade das imposições por necessidade sob o poder bolchevique à típica desculpa “anti-imperialista” dada pela burocracia para a burocracia justificar e manter sua repressão e exploração na classe trabalhadora nesses países. A abordagem unilateral “defensiva” de Moreno, que cobre todo esse trabalho, embeleza a burocracia stalinista em vez de dar as ferramentas para derrotá-la.
Esse raciocínio chega a extremos sem precedentes: “Com o surgimento da necessidade indiscutível de fortalecer a ditadura do proletariado em toda uma etapa, descartou-se uma das premissas teóricas fundamentais do marxismo (…) Existe uma lei que pode ser contrariada, mas não anular: durante o atual estágio da ditadura do proletariado, do confronto mortal com o imperialismo e no qual as fronteiras nacionais continuam a existir, é inevitável o fortalecimento da ditadura operária, do Estado proletário. Nesta conclusão há uma “coincidência” entre Stalin e Trotsky. [32]
Ponto de vista desastrosamente unilateral, porque na verdade a sobrevivência das fronteiras nacionais e o baixo desenvolvimento das forças produtivas no país onde se realize a revolução – e ainda mais em condições de isolamento – vai representar uma série de medidas “exceção”. Mas o problema é o que se entende por “fortalecimento da ditadura operária”, que é aqui, para Moreno, a “mão de ferro” de uma minoria da classe acima de todo o resto da própria classe trabalhadora. Para nós se deve apontar para o contrário: procurar permanentemente ampliar a base de apoio da mesma ditadura do proletariado, tentar chegar mais e mais camadas da classe operária e dos explorados e oprimidos para que assumam a gestão da economia, dos negócios da sociedade e da repressão da própria minoria burguesa e dos setores que a acompanham. Se isso não for alcançado, a experiência indica que um gendarme social acaba se elevando acima das massas e, pouco a pouco, deixa de fazer parte da classe trabalhadora até se tornar outra categoria social. E isso, longe de “fortalecer” a ditadura oprária, não faz outra coisa liquidá-la.
A raiz desses problemas está na teorização do “substitucionismo” revolucionário. Isso se refere a uma questão já abordada por Georg Lukács em História e Consciência de classe sobre a “prematuridade” da revolução socialista nos países atrasados. Ou seja, a circunstância histórica da oportunidade de revolução em países com baixo desenvolvimento de forças produtivas e culturais, onde a classe trabalhadora se vê colocada no poder sem ter tradições de comando e dominação nem nível sociocultural para dirigir os assuntos da sociedade.
Foi, sem dúvida, um problema real e um drama terrível na Rússia depois que os bolcheviques tomaram o poder, do qual o próprio Lênin era consciente e que certamente estará presente no caso da tomada do poder pela classe trabalhadora em qualquer país semi-colonial. E não apenas neles, em condições de terrível barbarismo econômico, social e cultural imposto pelo imperialismo globalizado no início do século XXI. Mas daí para teorizar que a revolução socialista deve ser necessariamente de minorias é, na verdade, transformar a necessidade em virtude e o oposto da valorização de todo o marxismo clássico no sentido de que a revolução socialista é a “primeira verdadeira revolução das maiorias do mundo em virtude dos interesses dessas mesmas maiorias”. Isto é, a primeira revolução verdadeiramente “popular”.[33]
Para Moreno, no entanto: “Por razões objetivas e, portanto, alheias à vontade dos marxistas, a classe trabalhadora como um todo não pode fazer a revolução e exercer o poder imediatamente após tê-la tomado. Trotsky é definitivamente claro sobre isso: “uma revolução é” feita “diretamente por uma minoria”. O sucesso de uma revolução só é possível, no entanto, quando essa minoria encontra mais ou menos apoio, ou pelo menos uma neutralidade amigável, por parte da maioria (…). Por tudo isso, o proletariado não pode tomar o poder somente através de organizações (…) que o englobam como um todo, o que seria o mesmo que dizer todo o proletariado. É a classe que é e continuará a ser dividida em setores antagônicos durante a tomada do poder e até mesmo sob a ditadura do proletariado. Haverá uma minoria consciente do projeto revolucionário, outros que serão neutros e também aqueles que permanecem prisioneiros da ideologia burguesa ou reformista, portanto, ser contrarrevolucionários”. [34]
Obviamente, durante a revolução e a transição seguira havendo “estratificações” e desenvolvimento desigual dentro da própria classe trabalhadora, não só do ponto de vista de certos aspectos econômicos profissionais, mas também no desenvolvimento de sua consciência política. Isto é o que justifica materialmente, entre outras coisas, a necessidade da atuação da vanguarda e do partido revolucionário sobre o conjunto dos trabalhadores e do resto das classes exploradas e oprimidas. Mas a partir daí teorizar que a revolução socialista é um novo caso histórico (tal como a revolução burguesa) caso histórico de uma revolução das minorias é um passo que não é legítimo dar. Porque a verdade, como eles já haviam apontado tanto Marx e Rosa e Lênin, é sim o contrário: é uma “revolução das maiorias”, “popular”, ainda que não um sujeito “povo” em geral, indeterminado desde o ponto de vista de classe, senão da classe trabalhadora no centro do processo, estabelecendo sua hegemonia sobre os demais setores oprimidos. Isto é, uma determinada aliança de classes dos explorados e oprimidos da classe trabalhadora. Mas isso pressupõe então a revolução socialista como uma revolução de maiorias, não de minorias.
Neste sentido, Lenine afirmao oposto do que Moreno diz: “Se tomarmos como exemplo as revoluções do século XX [até 1917], devemos reconhecer, é claro, que as revoluções portuguesas e turcas são burguesas. Nenhum delas, no entanto, é uma revolução ‘popular’, pois em nenhuma delas a massa do povo, sua imensa maioria, se manifesta ativamente, de forma independente, em qualquer grau notável, com suas próprias demandas econômicas e políticas. Em contraste, ainda que a revolução burguesa russa de 1905-1907 não se registrou sucessos tão “brilhantes”, como alcançaram em certos momentos as revoluções portuguesa e turca, foi sem dúvida uma revolução ‘real’ ‘popular’, uma vez que a massa das pessoas, a maior parte desta, as ‘mais baixas camadas’ sociais, esmagadas pela opressão e exploração, alcançaram de forma independente e estamparam em todo o curso da revolução a marca de suas próprias demandas, suas tentativas de construir a seu modo uma nova sociedade no lugar da velha sociedade que estava sendo destruída “.[35]
Da visão de Moreno, por outro lado, se revela uma concepção em que as formas de autodeterminação e poder dos trabalhadores (quaisquer que sejam as organizações nas quais essas formas se incorporem) não têm a menor importância: tudo é sobre “a mobilização das massas” e “o partido”. Mas, enquanto a organização dos revolucionários é um fator absolutamente imprescindível da revolução socialista, isso não pode significar que os organismos de luta e auto-organização das massas não são um fator específico e valioso por si mesmo. Em todo caso, nos mesmos termos de Moreno, podemos dizer que os socialistas revolucionários têm três estratégias, e não duas: a mobilização das massas, a construção do partido revolucionário e a formação de organizações de luta e de auto-organização da classe trabalhadora.[36]
Continuamos com Moreno: “Para os revolucionários, a única garantia de que seu avanço não vai parar é se opor às instituições burguesas – inclusive ás operárias, em certa medida – a mobilização permanente da classe trabalhadora e dos trabalhadores. É por isso que apoiaremos os soviétes apenas se servirem para mantê-lo e aprofundá-lo; mas se o atrasam ou institucionalizam, diremos: ‘abaixo os soviétes””.[37]
Não se trata de vincular a uma ou outra forma de organização, seja sovietes, sindicatos ou comitês de greve. Neste ponto, Moreno está certo: se eles não servem à luta e estão subordinados ao poder burguês, é necessário colocar a necessidade de outro organismo. Em julho de 1917, Lênin apontou os comitês de fábrica como uma alternativa aos sovietes subordinados ao governo burguês de Kerensky. Mas algo totalmente diferente, e um erro no qual Moreno incorre, é sugerir um questionamento a todo o organismo de autodeterminação da classe trabalhadora como tal, como se promovê-los não fosse também uma parte central de nossa estratégia. Assim, há uma concepção substitutiva sem limites e a consideração da classe trabalhadora apenas como uma massa de manobras para a mobilização. [38]
Disse Moreno: “Depois de tomar o poder, os líderes da revolução perceberam que o partido era a instituição mais importante para desenvolver e consolidar a ditadura do proletariado; que o poder tinha que estar nas mãos do partido apoiado nos soviétess. Lênin começou a insistir que o fator decisivo da ditadura do proletariado era o monopólio estatal por parte do Partido Comunista “.[39]
Acima de tudo, junto com essa idéia reducionista de poder nas mãos do partido e não nos organismos de poder dirigidos pelo partido, que não é a mesma coisa, Moreno subscreve uma teoria falsa, delineada por Trotsky durante um certo período, sobre a necessidade de um partido único na ditadura do proletariado. Dai à justificação da proibição errônea de frações e tendências no Partido Bolchevique (1921) é apenas meio passo. Na verdade, essa conceituação desastrosa perde de vista o fato de que o esvaziamento dos sovietes transferiu todas as pressões sociais para o partido, e que a proibição de tendências e frações acabou dando origem ao monopólio do poder no partido – na ausência de qualquer regime real. da democracia partidária – nas mãos de uma burocracia inquestionável,a stalinista.
Como se compreende que Moreno tenha evitado uma lição histórica decisiva da experiência do século passado, a saber, que a luta de tendências e o jogo da democracia operária é absolutamente essencial para a transição, e que não tenha tirado nenhuma conclusão sobre a burocratização da revolução? A única explicação possível passa pela estrutura teórica comum acima mencionada de todo o trotskismo tradicional do pós-guerra.
Assim, resume Moreno, “a revolução é feita pelos trabalhadores mobilizados revolucionariamente com suas organizações de massas, mas o poder e a direção a tem o partido revolucionário“. Uma vez no poder, o partido usará as engrenagens ‘organizacionais’ mais apropriadas para cada estágio da luta de classes, sem fazer um fetiche de nenhuma delas.”[40]
Aqui se confunde organizações de natureza diferente. O próprio partido revolucionário, para “preservar-se” como tal, precisa que o poder esteja nas mãos dos organismos da própria classe operária e de sua vanguarda. Precisa do jogo da democracia dos trabalhadores em seu seio. Em certo sentido, é preciso continuar a cumprir, juntamente com o seu papel de direção e governo do Estado operário, seu papel crítico como uma organização política revolucionária de certa forma independente das instituições do Estado proletário. Precisa não ver reduzida a sua atividade às tarefas puramente administrativas, se quiser preservar-se como uma organização política revolucionária que luta para impulsionar a transição nas condições de atraso econômico e cultural das massas e do cerco imperialista. Ou seja, ele precisa continuar cumprindo o papel de “tribuna popular” indicado por Lênin em O que fazer?, um papel diferente e superior ao de mero funcionário sindical, político ou estatal.
Outra questão é que, efetivamente, o partido luta para que a classe trabalhadora e sua vanguarda tomem o poder sob sua direção; o partido luta para obter a maioria e dirigir os organismos de poder, estar à cabeça deles e tomar o poder à frente desses organismos. Se o partido não fizesse isso perderia seu status revolucionário: o partido deve lutar e não pode deixar de lutar pelo poder.[41]
Ao mesmo tempo, o partido, se pretende manter seu caráter revolucionário sob a ditadura do proletariado, deve lutar para liderar essas organizações, mas não se confundir com elas. [42] De certa forma, é como administrar um sindicato ou um movimento sob condições “normais”. É um contrapeso político imprescindível não para evitar as responsabilidades revolucionárias, mas, ao contrário, para não cair no oportunismo.
Além disso, e visto de outro ângulo, se assim não fosse, o partido se tornaria um fim em si mesmo, sem qualquer controle por parte da mesma classe. Não seria mais aquele que toma e exerce poder através de suas organizações de luta e do partido, mas, que esse poder seria exercido de forma clara e simples pelo partido, do qual todas as outras instituições e mesmo a própria classe trabalhadora não mais seriam que meros instrumentos. [43]
Em nossa opinião, as formas de organização dos trabalhadores, como sovietes, sindicatos ou movimentos, são mais “transitórias” do que o partido revolucionário, que é a forma mais concentrada e estável de organização da vanguarda dos trabalhadores. Ao contrário da demagogia anarquista e de sua posição na época da revolta de Kronstadt de “sovietes sem partido”, o agrupamento de pessoas em torno de ideias sobre a sociedade, sobre como liderá-la, etc., é absolutamente inevitável. E o agrupamento dessas pessoas em uma organização e a cristalização dessas ideias em torno de um programa é um partido, seja qual for o nome. Assim, a luta das tendências políticas da classe trabalhadora, a luta dos partidos, é, como já assinalamos, conatural à luta socialista: traz o conteúdo intangível da democracia operária
Revoluções socialistas excepcionais?
As conclusões precedentes nos levam inevitavelmente à controvérsia atual com algumas correntes importantes na América Latina quanto à sua posição ante o balanço e às lições programáticas desta experiência histórica. Aqui vamos nos referir centralmente ao PTS argentino, dado que, em relação ao PSTU brasileiro e ao MST argentino, como dissemos, lhes cabe as mesmas críticas que a Moreno.[44] Em relação à PO Argentina, remetemos ao texto de Isidoro Cruz Bernal na edição anterior de nossa revista.
O PTS, juntamente com as correntes acima mencionadas, caracteriza-se como uma organização que não conseguiu tirar lições teórico-programáticas da queda dos países do Leste e da antiga URSS. Se apresenta como a ortodoxia da ortodoxia no sentido de ater-se praticamente à letra escrita de Trotsky. Qualquer retrabalho sobre isso é automaticamente considerado um “desvio” político: esse é o sentido do uso abusivo do conceito de “centrismo”. [45] Veremos que, em sua maioria, o PTS permanece quase completamente sem critério em relação ao legado teórico-programático do tradicional trotskismo pós-guerra, atravessado por desvios oportunistas e centristas e pela capitulação aos aparatos burocráticos.
Essa abordagem contrasta com o ponto de vista metodológico do melhor marxismo. Antonio Labriola, por exemplo, – inspirador, neste aspecto, do próprio Trotsky – aponta contra aqueles que, como os maus idealistas, “pensam carregar nos bolsos o esquema universal de todas as coisas“, e assinala que o verdadeiro marxismo é aquele que compreende que a realidade nos desafia constantemente a um novo esforço de trabalho e interpretação, e que esse esforço é conatural à experiência histórica e prática. Vamos ver a seguinte passagem:
“O que diferencia esse sentido da gênese é o discernimento crítico e, consequentemente, a necessidade de especificar a pesquisa. Isto é, a aproximação do empirismo quanto ao conteúdo do processo e a renúncia à pretensão de carregar no bolso o esquema universal de todas as coisas. Os evolucionistas vulgares procedem, em vez disso, assim: uma vez compreendida a noção abstrata do devir (evolução), colocam tudo dentro dela (…) E assim faziam também os repetidores de Hegel com seu ritmo transcendente e perpétuo da tese, da antítese e da síntese. A principal razão para a correção crítica que o materialismo histórico aplica ao monismo é a seguinte: que o materialismo histórico parte da práxis, do desenvolvimento da atividade laboriosa e que, assim como a teoria do homem que trabalha, também considera a ciência como um trabalho Deste modo, consuma o significado implícito das ciências empíricas, a saber, que com o experimento nos aproximamos da produção das coisas e temos a convicção de que as próprias coisas são um fazer, ou seja, uma produção “.[46]
Mas o PTS carece dessa estrutura no campo da elaboração teórico-programática e, insistimos, foi quase completamente incapaz de tirar conclusões profundas sobre a maior parte da experiência da classe trabalhadora no período do pós-guerra.
Uma crítica insubstancial
Sua posição em relação às revoluções do século XX tem sido em torno da crítica à elaboração objetivista de Moreno: “o “trotskismo” de Moreno é baseado em uma “teoria da revolução” adaptada ao “modelo” das revoluções do século XX. fase de 43-48 (…) e pós-guerra, que Moreno chamou de “fevereiro triunfante” e a filha direta dessa teoria globalizada nos anos 80: “a revolução democrática”.” [47]
Na crítica das supostas “revoluções democráticas”, em termos gerais, concordamos. Como já o desenvolvemos em outros lugares, não vamos nos deter aqui neste aspecto. [48] Sucintamente, podemos dizer que o questionamento desta categorização passa por destacar como devia se posicionar sobre os processos que Moreno erroneamente chamou “revoluções democráticas”, as quedas de governos ditatoriais na década de 80 na América Latina. O PTS, tomando a avaliação de Trotsky da revolução de novembro de 1918 na Alemanha [49], argumenta que se tratava de “abortos da revolução socialista”. Para Trotsky, “quanto a revolução alemã de 1918, é evidente, que não foi o coroamento democrático da revolução burguesa, mas a revolução proletária decapitada pela socialdemocracia; ou para colocá-lo mais precisamente: uma contrarrevolução burguesa forçada pelas circunstâncias a resistir, após a vitória sobre o proletariado, formas pseudo-democráticas”.[50]
Esta posição fecha a possibilidade que derivava da análise de Moreno, que tendia a ver estes processos como uma etapa preliminar necessária no caminho da revolução proletária[51], o que abria a porta aos graves perigos oportunistas e etapistas que foram parte substancial da crise do antigo MAS. O problema do PTS está em outro lugar: a crítica insubstancial do tronco principal do trotskismo pós-guerra, sendo que essa “crítica” aceita todas as suas premissas teórico-programáticas.[52]
Os camaradas partem de um pressuposto comum tanto a Moreno quanto a todo o trotskismo “tradicional”: “A teoria da revolução de Moreno” (…) parte do seguinte aspecto da teoria da revolução permanente: toda tarefa democrática em um país semi-colonialista é anticapitalista por causa da base econômica desta semi-colônia, que ocorre dentro da estrutura da economia mundial capitalista e, portanto, é objetivamente socialista. Até aqui, correto “. [53]
Mas, no “até aqui” já se foi comprado todo o pacote da elaboração objetivista errada que admite (por razões “econômicas”) a existência de revoluções socialistas “objetivas”. Assim, não está claro qual substância permanece na crítica teórico-programática do PTS à maioria do “trotskismo de Yalta”.[54] Sem mencionar que Trotsky nunca teorizou nada sobre “revoluções socialistas objetivas”.
Na realidade, o PTS cai no mesmo erro de todo o trotskismo do pós-guerra, que associou mecanicamente a conotação “anticapitalista” à de “socialista”. Era correto perceber que, no século XX, a execução das tarefas democráticas deixadas pendentes pela revolução burguesa obrigava a uma dinâmica de expropriação das classes capitalistas. Mas, toda a experiência do pós-guerra testemunha que o cumprimento dessas tarefas – de uma maneira inconsequente, por outro lado – em nenhum caso significou que a classe trabalhadora automaticamente se transformou na classe social e/ou politicamente dominante. E que, portanto, dar esse passo de homologação da conotação anticapitalista com a operária e socialista é profundamente errado e douram esses processos, onde, por definição, a classe trabalhadora, suas organizações e sua consciência estavam completamente ausentes.
Agregam os camaradas: “Moreno, agindo com o mesmo método de contrapor falsamente ao conteúdo social da revolução com a classe que o comanda – uma” armadilha teórica “, segundo Trotsky – converte-a de uma revolução objetivamente socialista para uma revolução automaticamente socialista. Com isso, se torna um objetivista, separando as tarefas de uma revolução da classe e direção que as realiza. “[55]
Isso está correto, porque, na polêmica com Preobrajensky que já desenvolvemos, Trotsky critica precisamente a separação mecânica entre tarefas e sujeitos. Mas se o PTS concorda com isso, como explica que “objetivamente” as revoluções do pós-guerra foram “operárias e socialistas” e que deram origem a “estados operários” – como todo o “trotskismo de Yalta” disse – mesmo em total ausência da classe trabalhadora como sujeito central e consciente?
Há uma contradição irremediável aqui, que não pode ser salva pela fuga metodológica à “excepcionalidade” dos anos 43-48, o que não explica nada. Os companheiros do PTS usam o argumento das “condições excepcionais” criadas no período imediato do pós-guerra – preferimos falar de “especificidade” dessas condições, apenas para evitar cair nesse mesmo erro -, para salvar a teoria principal, que permanece, como tal, sem explicação.
“Este período 1943-1948 (…) abriu condições excepcionais, produto da maior guerra mundial sofrida pela humanidade, e foi quando os stalinistas foram forçados a ir” mais longe do que eles próprios queriam em sua via de ruptura com a burguesia ‘. Em (esse período), o que Trotsky não descartou como exceção em alguns países ocorreu como uma situação excepcional em um nível global, generalizada, e grandes conquistas foram alcançadas para o proletariado e para as massas do mundo: os novos estados “operários deformados” da China, Europa do Leste e Coréia “.[56]
O que escapa aos camaradas é que Trotsky viu essa possibilidade apenas como um “curto episódio em direção à verdadeira ditadura do proletariado”, o que evidentemente não se deu. Isto é o que havia que ser explicado.
Em um trabalho crítico sobre concepções do PTS se diz que “(…) a excepcionalidade prevista por Trotsky ‘se generalizaou (…) no período 1943-1948 e não em todo o pós-guerra’. Este esforço para atender as previsões de Trotsky em umaa realidade não foi assim (…) alheio ao esforço para compreender os processos revolucionários como eles ocorreram, leva à conclusão de que eles teriam condições excepcionais nesse período não para o surgimento de governos de trabalhadores e camponeses que foam um pequeno episódio na via da ditadura do proletariado, como Trotsky assinalou em sua ‘hipótese altamente improvável’, senão para conseguir ‘grandes conquistas para o proletariado e as massas do mundo’ (. ..). As datas (…) não correspondem em absoluto com a realidade, porque a revolução chinesa triunfou apenas em 1949, e a Guerra da Coréia anti-imperialista em 1952, o que torna incompreensível a alegação de que a excepcionalidade prevista por Trotsky se cumpriu apenas entre 1943 e 1948. Por outro lado, essa falta de rigor confirma o caráter insubstancial da crítica à elaboração de Nahuel Moreno [e da maioria do trotskismo pós-guerra. RS], além de não escapar do objetivismo e rejeitar qualquer esforço para rever os erros do trotskismo relativas ao estabelecimento de estados ‘novos operários deformados’ (…) No caso de Cuba (…) a expropriação da burguesia [chegou] muito mais tarde (…) “. [57]
Na elaboração dos camaradas, a famosa “excepcionalidade” permanece sem explicação teórica e estratégica: como foi realizada uma revolução socialista que abriu o processo de transição sem ditaduras proletárias genuínas? Porque a expropriação da burguesia, a independência do imperialismo e a reforma agrária foram ganhos materiais, mas à custa da mobilização independente dos trabalhadores, congelando o processo revolucionário e bloqueando a abertura da transição socialista. Essa mesma realidade, com a burocracia colocada à frente desses Estados, foi o que, em última análise, deu origem a Estados não operários, mas burocráticos, sobre uma base social não capitalista.
A “excepcionalidade” de supostos revoluções operárias e socialistas sem classe trabalhadora permanece sem explicação, apesar do fato de que o problema pretende ser “salvo” ao sugerir que, após essas condições excepcionais, as coisas retornam ao seu curso normal e para expropriar faz falta novamente á classe trabalhadora. Porque para levar a cabo a revolução propriamente socialista, a classe trabalhadora é insubstituível, mas é por isso mesmo que as revoluções do pós-guerra não foram operárias ou socialistas. Acreditamos que esta é a única explicação coerente possível no âmbito do marxismo, se o que se pretende é fazer um balanço real do trotskismo no pós-guerra e modificar as definições e teorizações equivocadas, resultantes da pressão dos acontecimentos.
Em substituição de uma verdadeira explicação do que aconteceu, o PTS baseia as expropriações em que “nunca houve condições objetivas tão favoráveis para a derrota do imperialismo, que, usando a expressão das Teses [da LIT] de 1985, era a coisa mais próxima a “um tigre de papel”.[58]
Duas coisas perdem-se aqui: em primeiro lugar, não podemos deixar de assinalar que o imperialismo ianque cedeu à burocracia stalinista a periferia para preservar o centro do sistema, e é evidente que nesta aposta estratégica emergiu triunfante. Mas, além disso, é um erro dizer que as condições “objetivas” nunca foram tão favoráveis para derrotar o imperialismo como após a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma completa mistificação de como o processo do pós-guerra se desenvolveu e, além disso, deixa de fora um fator subjetivo e objetivo de imensa importância: o peso internacional que o aparato stalinista adquiriu sobre as classes trabalhadoras e populares.
Porque, no período pós-guerra, intervieram dois fatores que contribuíram decisivamente para a estabilidade: a resolução da hegemonia imperialista em favor dos Estados Unidos e o fortalecimento do estalinismo no imediato pós-guerra, sancionados pelos pactos de Yalta e Potsdam. Mais do que a famosa “guerra dos blocos” – argumento por excelência do curso totalmente capituládor do pablismo, já comentado -, foi tratado, como definiu o historiador Immanuel Wallerstein, de “um conflito pautado”.
Em nosso conceito, foi, ao contrário, imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, quando o imperialismo estava em pior situação porque, além da não resolução da hegemonia, o desafio do poder bolchevique à dominação capitalista mundial era muito mais real do que o o que o estalinismo significava após a Segunda Guerra. Mas entender isso implica romper completamente com o objetivismo do movimento trotskista do pós-guerra, o qual está além do horizonte do PTS.
“Estamos com Moreno e aqueles que, naquele momento, polemizaram corretamente com Just, determinando a periodização da situação mundial essencialmente por fatores objetivos. Mas pensamos que, mais tarde, Moreno cai numa unilateralidade quando abstrai o fator objetivo e lhe dá um valor sem limites, sem ver como influía o fator subjetivo, a direção contrarrevolucionária, sobre as próprias conquistas: hoje podemos ver até que ponto influiu a burocracia afundando os estados operários “.[59]
Mas se é assim, então devemos entender que a burocracia stalinista influenciou desde o começo – não apenas “depois” – naqueles processos revolucionários, fazendo o impossível para evitar a ação independente dos trabalhadores, isto é, tirando-lhes desde o começo todo o conteúdo realmente socialista.
O próprio Trotski vislumbrou o resultado final de tal experiência em A revolução Permanente (1927): “Sob as condições da época imperialista, a revolução nacional-democrática só pode ser levada à vitória no caso de relações sociais e políticas do país em questão tenham amadurecido no sentido de elevar o proletariado ao poder como dirigente das massas populares. E se não é assim? Então, a luta pela emancipação nacional dará resultados muito escassos, dirigidos inteiramente contra as massas trabalhadoras “.[60]
Isso pode ser verificado na URSS no final dos anos 30, em torno do desastre que significou a coletivização forçada do campo agrícola e a superexploração redobrada dos trabalhadores dos planos quinquenais. [61] O mesmo aconteceu na China, com o absurdo voluntarista do “Grande Salto Adiante” do final dos anos 50, que foi um grande salto para trás. Ou seja, as reais conquistas econômico-sociais acabaram se transformando no oposto: aí está para demonstrá-lo o caso da questão nacional, que sangra povos inteiros na Rússia e na Europa do Leste, ou o fato de que nas revoltas populares de 1989-1991 nenhum trabalhador foi visto defendendo a propriedade estatizada.[62]
Mas, para o PTS, “deve ser dito claramente que as burocracias contrarrevolucionárias nos estados operários deformados do período do pós-guerra, ‘à sua própria maneira’ dirigiram o ‘processo da revolução democrática para a revolução socialista’”.[63] Nisto, “claramente”, o PTS segue ao milímetro as definições teóricas do “trotskismo de Yalta”, uma tradição que diz condenar mas cujo balanço crítico real permanece ausente. De nossa parte, nos opomos totalmente à definição acima mencionada. Acreditar que as burocracias pequeno-burguesas[64] consumaram a revolução socialista é uma concepção substitutiva ilimitada que perde o conteúdo essencial da tradição do socialismo revolucionário: a necessidade inalienável da classe trabalhadora consciente no centro dos processos para que as revoluções sejam socialistas
As experiências do pós-guerra foram, sem dúvida, processos revolucionários anti-imperialistas e anticapitalistas progressistas. Mas o que “deve ser dito claramente” é que, quando são dirigidos pela burocracia e seus métodos (mais uma vez, o papel decisivo do “como e do quem”) foram revoluções não operárias, sem socialismo, que não abriram o processo de transição para o socialismo.[65]
O marechal e a criada
“Pode parecer que não há diferença, do ponto de vista da propriedade dos meios de produção, entre o marechal e a criada, o diretor do trust e do peão, o filho do comissário do povo e o garoto esfarrapado. No entanto, alguns ocupam belos apartamentos (…) e faz tempo que não sabem polir um par de sapatos ; os outros moram em barracos onde às vezes não há partições, onde a fome é comum (…) Enquanto o dignitário vê essa diferença como insignificante, ao peão parece, racionalmente, muito séria (…) Os ‘teóricos’ superficiais podem consolar-se dizendo que a distribuição de bens é um fator secundário comparado à produção. No entanto, a dialética das influências recíprocas mantém sua força total. O destino dos meios de produção nacionalizados será decidido, no final do dia, de acordo com a evolução das diferentes qualidades pessoais. Se um vapor é declarado propriedade coletiva, enquanto os passageiros continuam a ser divididos em primeira, segunda e terceira classe, é bem compreensível que a diferença de condições reais acabe tendo, aos olhos dos passageiros de terceira classe, uma importância muito maior do que a mudança jurídica da propriedade“. [66]
Para que a revisão deste aspecto da teoria da revolução não permaneça insubstancial, é necessário descer às profundezas das relações de produção na antiga URSS e no resto das sociedades não capitalistas do pós-guerra.
Dizem os companheiros: “nos países em que se expropriava, [o stalinismo] impôs estados operários deformados, o que sufocou qualquer tentativa de organização independente do proletariado e das massas”. [67] Mas se o stalinismo “afogava” a classe trabalhadora e as massas: em que consistia o caráter operário do Estado e onde ele residia? Como se podia verificar sua dominação política ou social sobre a sociedade?
Aqui vem outro elemento muito forte de continuidade do PTS com a tradição que tanto critica: o aspecto economicista de seu objetivismo, atribuindo à nacionalização dos meios de produção – no estilo “ortodoxo” – um caráter operário “objetivo”, sem incomodar-se em estudar as relações sociais da produção real como esfera distinta, de conteúdo, no que diz respeito às relações jurídicas. A recusa absoluta de analisar as verdadeiras relações de produção vigentes na URSS baseia-se num erro do leso marxismo: confundir a estatização com a socialização dos meios de produção.
Para começar, o PTS afirma, a quilômetros do próprio Trotsky e da base material da revolução permanente, que as imposições da lei do valor – as “leis do capitalismo mundial” – não dominavam na antiga URSS. Inclusive, ridicularizam da definição perfeitamente marxista de Naville da antiga URSS e das Glacis como um “subsistema do capitalismo mundial”. Esta posição, na verdade, coloca-os ao lado de Ernest Mandel, o verdadeiro mentor teórico dos colegas do PTS neste terreno.
Veja, por exemplo, esta afirmação: “a propriedade estatal generalizada (isto é, o monopólio) dos meios de produção só pode ocorrer através da expropriação da burguesia e é, por definição, antagônica às leis do capitalismo“.[68] Dito assim, tout court, sem determinações concretas, isso é errôneo. Porque a continuidade das imposições da lei do valor não deve ser obscurecida, no marco da economia mundial e de uma sociedade que surge da antiga base capitalista, e ainda não de uma nova base. Como Marx disse em um texto clássico, a Crítica do Programa de Gotha, referindo-se às sociedades que surgiriam imediatamente após a revolução proletária: “O que temos que ocuparnos aqui não é de uma sociedade comunista como se houvesse desenvolvido já sobre suas próprias bases, mas, ao contrário, tal como acaba de nascer da sociedade capitalista; portanto, é uma sociedade que, em todos os seus aspectos, econômico, moral e intelectual, ainda carrega os estigmas da velha sociedade de cujo seio emergiu “. [69]
É claro que Mandel não propunha nada disso, embarcado como estva no embelezamento e na mistificação do stalinismo e da capitulação das lideranças burocráticas. Mas o PTS o segue sem críticas: “No caso dos fenômenos transitórios entre o capitalismo e o socialismo (…) a lei do valor (lei fundamental da economia capitalista) não regia o conjunto da economia, jogando, assim, um papel subordinado (…) as leis que governavam a economia como um todo eram as leis de nacionalização e da planificação (para além de seu caráter burocrático). A lei do valor operava nestes Estados (…) mas não governava“.[70]
Tudo isso é falso da cabeça aos pés. Além de todas as tentativas burocráticas e voluntaristas do Estado de contornar a lei do valor, isso finalmente se impunha pelas tremendas inadequações e desproporções entre os diferentes ramos da produção, e até mesmo nas próprias lutas pelo estabelecimento do plano. É bem sabido que a planificação nas mãos da burocracia era uma expressão crescente de irracionalidade na economia e não de “planejamento racional” como, de forma objetivista, pretende o PTS. A racionalidade só pode vir da crescente democracia dos produtores e consumidores.[71]
Por outro lado, Trotsky não expressa de modo algum esse emfoque em sua análise mais profunda e detalhada da sociedade soviética, A revolução Traída. Pelo contrário, Trotsky não tem medo de mostrar a continuidade das imposições da lei do valor, que ele vê não diminuindo, senão ampliando seu campo de ação: “A nacionalização dos meios de produção (…) implica limites estreitos para o acumulação pessoal de dinheiro e dificultam a transformação do dinheiro em capital privado (…). Esta função do dinheiro, ligada à exploração, não foi liquidada, todavia, desde o início da revolução proletária, mas foi transferida sob um novo aspecto para o Estado, comerciante, banqueiro e industrial universal. Por outro lado, as funções mais elementares do dinheiro, medida de valor, meio de circulação e pagamento, são conservadas e adquirem um campo de ação ainda mais amplo do que tiveram no regime capitalista.[72]
Seguindo Naville contra Mandel, devemos mais uma vez afirmar o princípio metodológico marxista e trotskista que explica essas imposições: a unidade da economia mundial, na qual as economias não-capitalistas da antiga URSS e o resto dos mal chamados “estados operários” “constituíam um subsistema.
Naville disse: “(…) a crise que atualmente apresenta o sistema econômico mundial mantém uma raiz única: as condições de criação de valor pelo trabalho humano (…). A burguesia escamoteia a exploração do trabalho por trás do fascinante esplendor dos produtos do mercado e da fantástica dança dos preços. A burocracia da planificação estatal dissimula as relações de exploração mútua e parasitismo social característico do socialismo de Estado por trás dos fantasmas do salário “socialista”, recompensa do trabalho, honra social, orgulho do patriota, medalha dos bons servos (..).[73]
Vejamos os problemas que se acumulam quando não se analisa as verdadeiras relações sociais e tende-se a ignorar as imposições da lei do valor. Vamos rever a versão que o PTS dá do problema: “A ‘propriedade estatal generalizada’, ou seja, o monopólio estatal dos meios de produção, elimina a contradição capitalista entre a crescente socialização da produção e a apropriação privada dos frutos da mesma , e por isso é em essência antagônica ao capitalismo “.[74]
Mais uma vez, testemunhamos o disparate da identificar a estatização com a socialização, abonando à mistificação burocrática. Nesta definição uma abordagem marxista elementar é completamente perdida: estatização e socialização medeia todo um complexo processo de verdadeira subordinação dos principais ramos da economia à direção consciente de parte do conjunto dos trabalhadores. Isso não é descoberta ou originalidade; Ele já estava presente em A Revolução Traída de Trotsky, bem como em vários artigos de Karl Korsch sobre o mesmo assunto. Para fornecer uma passagem clássica: “A propriedade privada, para se tornar social, deve passar pela estatização, assim como a lagarta se torna uma crisálida antes de se tornar uma borboleta. Mas a crisálida não é a borboleta; e milhões morrem antes de serem. A propriedade do Estado não passa a ser do “povo inteiro”, senão à medida que os privilégios e as diferenças sociais desaparecem, quando o Estado perde sua razão de ser. Em outras palavras, a propriedade do Estado torna-se socialista, uma vez que deixa de ser propriedade do Estado “.[75]
Continuam os companheiros: “O monopólio estatal dos meios de produção, ao eliminar a apropriação privada, impede a ação da lei da acumulação do capital e, assim, elimina o lucro como motor da produção”. [76] Aqui, a questão é, mais uma vez, se na URSS a lei do valor continuava a prevalecer e se, nesse contexto, o trabalho assalariado e a mais-valia ainda existiam. Nossa resposta é categoricamente afirmativa, para além de distorções parciais. Mas se essas leis continuavam imperando, a questão de quem é dono do trabalho excedente cai por seu próprio peso. E a resposta deve ser concreta, como Trotsky faz nos extraordinários capítulos IX e XI da Revolução Traída:
“O fato de que os diferenciais de salários sejam na URSS não menores, senão mais consideráveis do que nos países capitalistas, leva-nos à conclusão de que as ações estão distribuídas de forma desigual e que as rendas dos cidadãos são formadas, por sua vez de um salário desigual, de partes desiguais dos dividendos. Enquanto o peão não recebe senão b, o salário mínimo que sob as mesmas condições também receberia em um empreendimento capitalista, o stakhanovista e o oficial recebem 2a mais b, 3a mais b e assim por diante, e b pode por sua vez ser 2b, 3b, etc. Em outras palavras, a diferença na renda é determinada não pela única diferença no desempenho individual, mas pela apropriação dissimulada do trabalho alheio. A minoria privilegiada de acionistas vive por conta da maioria enganada”. [77]
Para nós, na verdade, seguia existido a mais valia, e a maior parte da acumulação permaneceu nas mãos da burocracia. O PTS ignora, no melhor estilo de Mandel, a existência continuada das imposições da lei de valor e do trabalho por um salário, e desliza para o absurdo mandelista que a produção na URSS era diretamente de valores de uso. Como vimos, isso nada mais é do que um crasso endeusamento da burocracia que, por sua vez, nega a continuidade dos mecanismos de exploração do trabalho.
Naville disse: “(…) Ao suprimir apenas a forma clássica de mercadoria das relações capitalistas, o socialismo estatal elimina apenas uma forma inferior de fetichismo social. Metamorfoseia o capital em “acumulação socialista” e em fundos de investimento, mas não suprimiu o fetichismo do capital, que é apresentado como produtivo, independentemente de todas as relações sociais. Finalmente, ao separar o trabalho de todas as relações sociais, fez disso o fetiche perfeito (…) Fetichizando o trabalho puro …desviaram a golpes de nagaika os trabalhadores soviéticos da crítica das relações sociais em que vivem. Mitificaram o trabalho como a burguesia mitifificou o capital, e pelas mesmas razões: porque o trabalho vivo é a fonte real de valor (de troca e de uso) e que o trabalhador (inclusive o que esteja submetido à exploração mútua no Estado sem capitalistas privados) não devia aprender a criticar o modo de produção no seio do que produz e continua a ser explorado “.[78]
Como ao PTS escapa todo esse ângulo, logicamente continua a acumular absurdos: “O aumento no desempenho do trabalho como um objetivo em si mesmo pode, nesta base, ser introduzido como um princípio diretor da vida econômica”.[79]
Desde quando a “elevação da performance do trabalho como objetivo em si mesmo” é a base da perspectiva socialista e comunista da transição? Isso só pode ser descrito como uma adaptação teórica grosseira ao stalinismo. Porque, ou realmente se acredita que na antiga URSS a produção era diretamente de valores de uso ou, pior, se introduz um conceito que é uma pura racionalização da exploração do trabalho pela burocracia. Do ponto de vista marxista, o critério não é “a elevação do desempenho do trabalho como objetivo em si mesmo”, mas o aumento da satisfação das necessidades humanas e a emancipação do trabalhador das imposições do trabalho por necessidade, aumentando seu tempo livre. .
Outra questão é que, naturalmente, isso tem como base material insuperável a necessidade de aumentar o desempenho do trabalho: não somos românticos sobre isso. Mas precisamente esse “aumento da performance no trabalho” não pode ser perseguido como um objetivo em si[80], senão como condição da possibilidade de emancipação do trabalho, que é algo muito diferente.
De fato, o objetivo de “elevar a performance do trabalho” como condição para a extração de mais-valia em escala ampliada foi expresso no movimento stakhanovista dos anos 1930, incentivado por Stalin e duramente criticado por Trotsky em A Revolução Traída. Prova adicional de que é um critério não-socialista, mas … stalinista.
Afirmamos categoricamente que o princípio orientador da vida econômica na transição deve ser monitorado pela tendência crescente de acabar com a exploração. E, para isso, o aumento do desempenho no trabalho é condição necessária, mas não suficiente.
O adornamento do stalinismo não pára por aí: “A irracionalidade econômica, a anarquia da produção, própria do capitalismo, baseia-se na luta entre capitais privados para se apropriar da maior taxa possível de lucro. A expropriação da classe dos capitalistas privados elimina a busca do lucro como motor da vida econômica e, assim, permite o fim da anarquia da produção. A propriedade estatal generalizada constitui, portanto, a condição necessária para o planejamento econômico, isto é, para a “introdução da razão na esfera das relações humanas” (…) não reconhecer isso é retirar-lhe o valor material que por si só possuem a nacionalização generalizada e o planejamento econômico como formas que se desprendem das necessidades de desenvolvimento das forças produtivas, antagônocas portanto com as relações de produção capitalista e indiscutiblemente definitórias do caráter operário e progressivo do Estado“. [81]
Evidentemente, o PTS não rompeu realmente com um esquema objetivista, economicista, que dá “valor material per si” à “nacionalização generalizada e planificação econômica”. Porque a nacionalização e a planificação são efetivamente formas que surgem das necessidades do desenvolvimento das forças produtivas nessa época histórica [82], mas é indispensável identificar nas mãos de que classe ou setor de classe essas formas são efetivamente encontradas, isto é, qual é o conteúdo sócio-político da acumulação. [83]
Consideramos esta perspectiva crítica sobre o problema: “Lenin muito mais enfaticamente que Trotsky fez uma importante distinção entre nacionalização e socialização dos meios de produção (…) a socialização precisa de um processo muito mais longo e difícil, porque isso significa colocar sob a administração das massas esses meios de produção. É por isso que, por si só, a nacionalização não é uma medida “socialista”; Assume esse significado como um momento no avanço da revolução em direção à socialização. Nos anos 30, no entanto, Trotsky adoptou um enfoque abstrato ao considerar a nacionalização ‘em si’ como uma relação socialista (…) A nacionalização pelo Estado proletário tem apenas a capacidade ou a possibilidade de socialização (…) Não se pode menosprezar a importância dessa nacionalização e das potencialidades que encerra; é o significado que a revolução expropriadora tem. Mas em si mesma não decide o desenvolvimento posterior“.[84] Embora acreditemos que a posição de Trotsky mostrava um certo matiz a respeitop deste ponto de vista, o PTS, seguindo o resto do trotskismo “tradicional” e, depois de enecerrada a experiência dos Estados burocráticos, continua a manter ainda hoje esta errônea abordagem abstrata. [85]
Porque, finalmente, o que o PTS, em seu dogmatismo, recusa-se a reconhecer é que na exploração do trabalho burocratizado na URSS se relançou a exploração do trabalho, sob uma forma diferente – ainda que aparentada – à do capitalismo: as formas de “exploração mútua” desenvolvidas no texto precedente. Mas para “descobrir” isso, não havia necessidade de recorrer a Naville. Bastava levar em conta as descrições – não sistematizadas teoricamente, é certo – do próprio Trotski. “[Quando o Pravda diz que]” O trabalhador não é em nosso país um escravo assalariado, um vendedor de mercadorias. Ele é um trabalhador livre ‘(…) esta fórmula eloquente não é senão um blefe inadmissível. A passagem das fábricas para o Estado não mudou mais do que a situação jurídica do trabalhador; na verdade, ele vive na necessidade, trabalhando um certo número de horas por um salário (…) o novo Estado recorreu aos velhos métodos: o desgaste dos nervos e músculos de trabalhadores[86] (… ) Trabalhando por peças, vivendo em graves apuros, privados da liberdade de transladar-se, suportando ainda na fábrica um terrível regime policial, o operário dificilmente poderia sentir-se um ‘trabalhador livre’. O oficial é para ele um chefe, o Estado, um senhor. O trabalho livre é incompatível com a existência do estado burocrático“.[87]
A título de conclusão, podemos dizer que é um fato que a queda do stalinismo criou, num sentido histórico, as condições para o desbloqueio da perspectiva socialista autêntica. O marxismo revolucionário no século XXI terá novos desafios e a possibilidade de se transformar em uma força material entre a classe trabalhadora e as massas populares. Mas para conseguir isso, não será capaz de ignorar as duras lições deixadas pela luta da classe trabalhadora no século passado; derrotas que é uma obrigação transformar-se em ensinamentos estratégicos para os combates revolucionárias que estão por vir.
Notas:
[1].- Nahuel Moreno, Escuela de cuadros Argentina 1984, Buenos Aires, Crux, 1992.
[2].- Nahuel Moreno, Escuela de cuadros…, cit., p. 22.
[3].- N. Moreno, cit., p. 49.
[4].- Idem, p. 47.
[5].- Nahuel Moreno, Actualización del Programa de Transición, Bogotá, Caracteres, 1990, pp. 69-70.
[6].- Idem, p. 72.
[7].- Pois embora Trotsky, como hipótese central, não visse que as lideranças pequeno-burguesas pudessem alcançar a expropriação da burguesia, definiu corretamente que sem a classe trabalhadora não há revolução socialista.
[8].- Peng Tu Siu (membro da maioria da IV na época), no final dos anos 40, enfrentou Pablo em torno da definição da terceira revolução chinesa. Moreno refere-se a ele desta forma: “Trotsky diz que há uma revolução democrática burguesa distinta da revolução socialista (…) Peng é um dos maiores gênios políticos do século (…) Os guerrilheiros defendiam “socialismo” e “revolução socialista”. Peng se posiciona contra eles e sugere que muitos esquecem que as Teses da revolução permanente são atacadas de dois ângulos. Um deles, o mais comum, porque é o ângulo reformista, é que nos países atrasados não há revolução socialista. Mas muitas vezes nos esquecemos de que há um ângulo nefasto, tão nefasto quanto o outro, que é o que sustenta que nos países atrasados há apenas revolução socialista “(N. Moreno, Escuela de cuadros …, cit.).
[9].- N. Moreno, Escuela de cuadros…, pp. 41 y 22-23.
[10].- N. Moreno, Actualización del Programa de Transición, cit., p. 95.
[11].- Ao longo de toda Atualizacion …, em relação às direções burocráticas, Moreno vai e vem entre defini-las como “burocracia operária” ou “burocracia pequeno-burguesa” sem conseguir resolver o problema, porque em última instância permanecia aprisionado no mesmo arcabouço teórico. de todo o trotskismo “tradicional” do pós-guerra. No entanto, nessas oscilações, ele é visto constantemente buscando se diferenciar do conceito “forte” de “burocracias revolucionárias” expressas pelo Pablo-Mandelismo e também pelo SWP dos EUA com relação a Fidel Castro.
[12].- N. Moreno, Escuela de cuadros..., p. 45.
[13] – Veremos em seguida, porque somos completamente contra que possa haver na experiência histórica algo como uma forma acabada de “ditadura burocrática do proletariado”. Diferente foi o caso sob o poder bolchevique (regime revolucionário), quando Lenin, com maior acuidade que qualquer outro líder bolchevique, definiu o novo Estado, na época do debate sobre os sindicatos, como um “Estado operário com deformações burocráticas”. Os chamados “estados operários deformados” do pós-guerra não tiveram nada a ver com o verdadeiro Estado operário “com deformações” no início dos anos 20.
[14].- A Escola de Quadros é na verdade a transcrição de um curso oral dado por Moreno, de modo que a crítica pode parecer um pouco injusta. Mas, mesmo assim, as expressões usadas são sintomáticas: não foi a classe trabalhadora que “tomou posse” do Estado. Nesse sentido, até mesmo a “ortodoxia” Pablo-Mandelista admitia que a que se apossou dos meios de produção através da expropriação era a burocracia. Em todo caso, era a propriedade a que se supunha que estava “nas mãos da classe trabalhadora”, o que para nós evidentemente não foi assim, dado que, na transição socialista, a perpriedade e a posse devem tender a cada vez mais se sobrepor.
[15].- N. Moreno, cit., p. 101.
[16].- Assim, por exemplo, em Actualización… lê-se: “(…) propusemos [que] se a revolução de fevereiro não se transformaa em revolução de outubro, a contra-revolução burguesa é inevitável. Mas a complexidade da transição do capitalismo para o socialismo produziu híbridos que não são nem um nem o outro. Na URSS não havia contra-revolução burguesa, mas, por enquanto, contra-revolução burocrática “(p.89). Assim é, e o que não pode ser deixado de lado, à luz da experiência histórica do século XX, é a especificidade do fenômeno da contrarrevolução burocrática, cuja avaliação correta deve ser parte integrante da teoria da revolução no século XXI.
[17].- A explicação aqui é que a economia só pode ser burguesa ou operária. Como vamos desenvolver a seguir, o que aconteceu foi que, sob condições excepcionais, a burocracia usufruiu a seu serviço a expropriação como subsistema do capitalismo mundial, um tributário das formas de exploração do capitalismo, e não Estados operários.
[18].- Nos anos 80, no antigo MAS, de maneira reducionista, dizia-se que lutávamos por um tipo de regime, o “socialismo mais democracia”, o qual o que nos caracterizava era a luta pela “democracia operária”. Em nosso entendimento, isso perdia completamente de vista o fato de que a luta dos socialistas revolucionários é pelo projeto íntegral da revolução e do socialismo, que, de modo algum, não pode ser cumprido, no verdadeiro sentido do termo, pelas burocracias pequeno-burguesas e burocráticas.
[19].- Isso foi no momento da crítica de um documento da maioria do SU mandelista, Democracia Socialista e da ditadura do proletariado, que, como Moreno denunciava, cedia às pressões “democratizantes” do eurocomunismo e promovia uma concepção legalista incorreta da revolução.
[20].- Sobre este último aspecto, nos referimos a Construir otro futuro, especialmente para a parte referente à reivindicação crítica dos bolcheviques no poder. Na tradição da maioria das correntes do trotskismo, esse balanço crítico nunca é realizado e recai-se no erro habitual de tornar as necessidades da guerra civil uma virtude ou norma para toda ditadura proletaria. Neste sentido, é ainda presente, a abordajem metodológica – para além dos erros de conteúdo na crítica mesmo- de Rosa Luxemburg em seu texto A Revolução Russa: “Nos vemos confrontados com a primeira experiência na ditadura do proletariado na história do mundo (que também ocorre nas condições mais difíceis que podem ser concebidas) (…). Seria uma ideia maluca pensar que tudo o que foi feito ou não em um experimento de ditadura do proletariado realizado em condições tão anormais representa o auge da perfeição. Pelo contrário, os conceitos mais elementares da política socialista e a compreensão dos requisitos históricos necessários nos obrigam a entender que, sob essas condições fatais, nem o idealismo mais gigantesco nem o partido revolucionário mais experimentado podem realizar a democracia e o socialismo, mas apenas tentativas distorcidas de um e outro “. En Obras escogidas, Buenos Aires, Pluma, 1975, volume 2, p. 171.
[21].- Como um todo, é um trabalho defensivista que perde totalmente a dimensão da revolução anti-burocrática, em momentos (fins dos anos 70) onde não havia nenhum elemento particular que colocasse sobre a mesa o problema da “defesa da URSS”. .
[22].- N. Moreno, op. cit., p. 242.
[23].- Um “mérito” puramente defensivista, sendo que o defensivissmo, como dizia Trotsky, deve ser um elemento subordinado à estratégia do impulso à revolução anti-burocrática.
[24].- Esse aspecto da crítica de Moreno a Mandel foi e continua correto, porque a idéia de que a burguesia, sob a ditadura do proletariado, desfruta virtualmente de todos os direitos políticos, enquanto norma é uma concepção democratista que perde de vista o conteúdo da ditadura. do proletariado enquanto uma imposição às classes ex-proprietárias. Supor que a ditadura não será exercida sobre ninguém é ridículo e irreal, porque o período da transição será necessariamente convulsivo, atravessado por guerras civis e confrontos revolucionários contra o imperialismo. Por isto mesmo Lenin referiu-se à ditadura do proletariado não apenas como “democracia de novo tipo” mas também como “ditadura de um novo tipo”, isto é, da maioria sobre a minoria.
[25].- Não consideramos em absoluto que O Estado e a Revolução sejam “antediluvianos”, senão um texto de total validade teórica. Vejamos uma passagem significativa: “O oportunismo não estende o reconhecimento da luta de classes ao fundamental, ao período de transição do capitalismo ao comunismo, ao período da derrubada e da completa eliminação da burguesia. Na realidade, este período é, inevitavelmente, um período de luta de classes de violência sem precedentes, no qual está revista formas de uma agudeza sem precedentes, e, consequentemente, durante esse período, o Estado deve ser inevitavelmente um Estado democrático de novo. tipo (para os proletários e despossuídos em geral) e ditatorial de novo tipo (contra a burguesia) “. Obras completas, Buenos Aires, Cartago, 1971, p. 46. Moreno, por outro lado, justifica o exercício de um poder ditatorial não apenas sobre a burguesia (a indispensável ditadura do próprio proletariado), mas também sobre a própria classe trabalhadora.
[26].- V.I. Lenin, El Estado y la revolución, cit., p. 95.
[27].- Esta é uma completa mistificação dos métodos de exploração da burocracia nos países do Leste. O próprio Trotsky repete várias vezes em A Revolução Traída – ver especialmente o capítulo IX – que a burocracia recorreu aos mesmos métodos do capitalismo: a “exploração dos nervos e músculos” dos trabalhadores.pítulo IX– que la burocracia recurría a los mismos métodos que el capitalismo: la “explotación de los nervios y los músculos” de los trabajadores.
[28].- Outra questão é que em si mesmas estas reivindicações adquiriram uma dinâmica restauracionista do capitalismo no final dos anos 80 e início dos anos 90, na ausência de qualquer ação independente e socialista da classe trabalhadora quando das revoluções-desmoronamento (F. Fejtö) desses estados. Também deve-se ter em mente que o texto de Moreno era uma polêmica contra as posições legalistas e democratizantes da SU. Mas isso não salva o fato de que o livro é um desastre do começo ao fim. Nesse sentido, J.P. DIVES afirma: “As concepções gerais objetivistas e triunfalistas, a revisão errônea da teoria-programa da revolução permanente, estão diretamente ligados a esta pergunta dos “Estados operários’ (…) esta teve (…) consequências diretas quanto a concepção de socialismo e da transição (…) sistematizaram e agravaram os aspéctos mais equivocados da teoria de Trotsky sobre a URSS e, em seguida, as analises igualmente errôneas que a Quarta Internacional formulaou no período do pós-guerra para explicar as mudanças na Europa do Leste (…). Essa sistematização / agravamento é condensada em uma obra: A ditadura revolucionária do proletariado (…). Nem tudo o que Moreno disse neste trabalho é falso (…). No entanto, no essencial, isto é, no que dizia respeito à interpretação das revoluções do século XX e aos problemas da transição para o socialismo, este documento estava globalmente equivocado ”. Em Construir otro futuro, pp. 185-6.
[29].- N. Moreno, cit., p. 97.
[30].- Idem, p. 100.
[31].- Idem, pp. 264-265.
[32].- Idem, p. 272.
[33].- Esto es, plantea la unidad entre el núcleo del proletariado y las más amplias masas populares explotadas y oprimidas. En el caso del Argentinazo, es en cierto modo a esto a lo que queremos referir con la estrategia de “unidad de clase” entre el núcleo de la clase obrera ocupada y la masa de trabajadores desocupados organizados en los movimientos piqueteros, bajo la conducción de los primeros.
[34].- N. Moreno, cit., pp. 146-7.
[35].- V. I. Lenin, El Estado y la revolución, ed. cit., p. 50. Esta passagem magnífica condensa o verdadeiro caráter de massa, “popular”, de todos os verdadeiros trabalhadores e da revolução socialista..
[36].- Em Moreno, essa concepção reducionista da consciência dos trabalhadores, essa avaliação da classe trabalhadora, em última instância, como uma massa de manobra do partido, já estava presente no El partido y la revolución (o chamado “Morenazo”) de 1973. É um trabalho valioso e educativo em muitos aspectos sobre como fazer política revolucionária em polêmicas com a orientação pró-guerrilha do mandelismo naqueles anos, mas atravessada por essa teorização equivocada da relação do partido com a classe.
[37].- N. Moreno, La dictadura…, cit., p. 132.
[38].- Isso é muito comum no comportamento de diferentes correntes do trotskismo argentino. Também para eles “a classe trabalhadora e as massas aparecem apenas como um campo de manobras do partido, não são consideradas como sujeitos da revolução e da construção do socialismo. Se abandona a base do trabalho revolucionário marxista, a tarefa central do partido e da organização: elevar o nível de consciência das massas e sua vanguarda (…) “. En Construir otro futuro, p. 191.
[39].- N. Moreno, cit.
[40].- N. Moreno, cit., p. 142.
[41].- A esse respeito, é quase desnecessário esclarecer que discordamos completamente da tese de John Holloway de que não apenas o partido, mas a própria classe trabalhadora, para “mudar o mundo”, deveria abster-se de tomar o poder. Isso nada mais é do que uma utopia reacionária que evita enfrentar os reais e inevitáveis “perigos profissionais do poder”. Afirmamos categoricamente que não pode haver transição socialista alguma – como um momento essencialmente político – sem que a classe trabalhadora assuma firmemente o poder.
[42].- Lembrando a preocupação de Lenin até o fim de sua vida com a superposição dos organismos partidários e das instituições do Estado soviético.
[43].- Esse perigo de instrumentalização de movimentos, sindicatos ou organizações da classe ou da vanguarda o vemos o tempo todo em algumas correntes revolucionárias como a PO e o MST, que quando ganham um movimento ou um sindicato, tomam conta deles como se fossem próprios e não dos trabalhadores que os votaram para dirigi-lo. O PTS faz algo semelhante, embora em muitos casos combine esse aparatismo com uma demagogia democrática.
[44].- De fato, a crítica lhes cabe inclusive em maior medida, dado que a) ao contrário de Moreno, e por simples razões cronológicas, conheceram fatos históricos transcendentais como a queda do Muro sem que se movessem a tirar qualquer conclusão teórica, e b) sua elaboração. geralmente não é mais do que uma reedição vulgar e empobrecida do próprio Moreno.
[45].- Os centristas são, na definição de Trotsky, as correntes que oscilam entre reforma e revolução. É, de fato, uma categoria muito útil para a análise de organizações que oscilam à esquerda e à direita em processos revolucionários e para aqueles atormentados por traços oportunistas, até mesmo cristalizados, como é o caso da LCR francesa. O problema é que o PTS considera todas as organizações, exceto, logicamente, suas próprias, como “centristas”. Uma crítica muito boa a esse respeito é a de Jorge Sanmartino, do Socialismo Revolucionário da Argentina.
[46].- Antonio Labriola, Socialismo y filosofía, Buenos Aires, Antídoto, 2004, p. 194.
[47].- Manolo Romano, “Polémica con la LIT y el legado teórico de Nahuel Moreno”, en www.pts.org.ar.
[48].- Ver Construir otro futuro, ed. cit.
[49].- Na revolução de 4 de novembro de 1918, o Kaiser caiu como resultado da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, mas foi sucedido por um governo social-democrata reformista no quadro da democracia burguesa.
[50].- L. Trotsky, La revolución permanente, ed. cit., p. 30.
[51].- Quanto às consequências oportunistas e etapistas desta posição, há abundantes evidências na Escuela de cuadros (1984), em que Moreno chegou a dizer que não estava descartado que na Argentina “a democracia venha e por 10 ou 15 anos resolva os problemas” do país. Mas mesmo em um texto mais trabalhado como o Actualización … encontramos afirmações descaradamente etapistas: “Nossos partidos têm que reconhecer a existência de uma situação revolucionária anterior a fevereiro para tirar consignas democráticss apropriadas à existência de lideranças pequeno-burguesas que controlam o movimento de massas. e a necessidade de estabelecer uma unidade de ação o quanto antes possível para realizar a revolução de fevereiro. Devemos entender que é inevitável fazê-la e não tentar saltar essa etapa, mas tirar todas as conclusões estratégicas e táticas necessárias, ser a vanguarda dessa revolução de fevereiro, para sermos os campeões da intervenção nela.”
[52].- O “trotskismo” do PTS é de um tipo bastante distante do de Trotsky, que se baseou na experiência viva das revoluções para teorizar: “(…) tais eventos ocorreram, e aprendemos muito com eles, que eu tenho que reconhecer que me repugna o modo atual dos burocratas soviéticos de examinar novos problemas históricos, não à luz da experiência viva das revoluções feitas por nós, mas principalmente em vista de textos que se referem apenas à previsão feita por nós. das futuras revoluções “. La revolución permanente,, cit., P. 55. Em chave atual, a lição metodológica é que os pressupostos teóricos e programáticos estabelecidos antes do colapso final dos países do Leste não podem ser aceitos em bloco.
[53].- M. Romano, cit.
[54].- O PTS abrange todas as correntes do trotskismo no período do pós-guerra sob esta denominação, o que explica os limites intransponíveis que os determinaram, mas que ao mesmo tempo faz uma equalização ahistórica que impede a delimitar um do outro.
[55].- M. Romano, cit.
[56].- Idem.
[57].- M. Martínez, cit.
[58].- M. Romano, cit.
[59].- Idem.
[60].- L. Trotsky, cit., p. 163.
[61].- Neste sentido, ver o ângulo distintivo que Rakovsky, Kossior, Murálov e Kaspárova expressaram sobre essas medidas, desde o interior da URSS, no início dos anos 30 na “Declaração em vista do XVI Congresso do PC”.
[62].- Em relação às conquistas econômicas nos estados não capitalistas do pós-guerra, vejamos o seguinte: “(…) a especificidade dessa formação social também se revela na dinâmica das forças produtivas (…) O desenvolvimento industrial e agrário extensivo e a incapacidade do regime de avançar para um crescimento baseado na intensidade tecnológica constitui outra negação da tese que considera à URSS capitalista, e também que ela poderia se tornar uma sociedade burocrática superadora do capitalismo a nível mundial “. R. Astarita, Debate Marxista nº 9.
[63].- M. Romano, cit.
[64].- Ver mais acima nossas críticas à categoria de “burocracias operárias” cunhada por Ernest Mandel.
[65].- Naturalmente, isso não significa que não houvesse conquistas econômicas no começo; havia (com um desenvolvimento extensivo das forças produtivas), mas à custa do processo de organização independente dos trabalhadores e do desenvolvimento da revolução no centro do mundo, com a particularidade de não abrir o processo de transição para o socialismo.
[66].- L. Trotsky, La revolución traicionada, ed. cit., pp. 225-226. Ou seja, não alcança com a valorização da estatização como “feito em si” de natureza do funcionamento do Estado; O problema é avaliar a tendência geral e o verdadeiro conteúdo social que ela está adquirindo. Isso é indicado pela experiência histórica, mesmo que uma suposta “ortodoxia” esteja arruinada.
[67].- M. Romano, cit.
[68].- Paula Bach, “Después del estalinismo y lejos del marxismo”, en www.pts.org.ar.
[69].- Karl Marx, Crítica del Programa de Gotha, Buenos Aires, Anteo, 1972, p. 90.
[70].- P. Bach, cit.
[71].- O PTS então incorre, como Mandel, em uma mistificação da burocracia. Eles seguem sem críticas Evgeny Preobrajensky e sua obra La nueva economía, valioso esforço de interpretação, mas, não coincidentemente, nunca assumido por Trotsky, que não o cita uma só vez em A revolução traída. Preobrajensky levanta a teoria da alegada oposição da “lei do plano” contra a lei do valor. Mas a “lei do plano”, baseada em considerações da produção como valores de uso e não de troca, não pode operar “objetivamente”, nem pode escapar, em última instância, às imposições da lei do valor. Portanto, o decisivo é novamente em mãos de quem está o planejamento. Qualquer outra posição é um derrapar à capitulação à burocracia, como aconteceu com o próprio Preobrajensky. O uso de supostos princípios de racionalidade per sede a planificação, sob as condições da burocratização da ex-URSS, não era nem é nada além de uma racionalização da exploração burocrática.
[72].- L. Trotsky, La revolución traicionada, ed. cit.
[73].- P. Naville, El nuevo Leviatán, ed. cit.
[74].- P. Bach, cit.
[75].- L. Trotsky, La revolución traicionada, p. 224.
[76].- P. Bach, cit.
[77].- L. Trotsky, cit., p. 227. Parece-nos evidente que, nessa descrição dos mecanismos de apropriação da acumulação do trabalho excedente social pela burocracia, o termo “embraucada” é aqui um mero substituto de “explorada”.
[78].- P. Naville, El nuevo Leviatán, cit. Analogamente, os trabalhadores, nas condições das experiências de produção e distribuição social no Argentinazo, têm que aprender a olhar criticamente para as conquistas progressistas e novas relações em que estão inseridos. Mas o PTS, como o PO, é nesse sentido completamente cego às limitações dessas experiências, particularmente quando as dirige.
[79].- P. Bach, cit.
[80].- O critério economicista de considerar o desenvolvimento das forças produtivas como um fim em si mesmo – aparentado ademais com o reformismo da Segunda Internacional – perde de vista o fato de que o principal objetivo da transição é a transformação permanente das relações sociais em todos os campos. E este critério deve ser distinguido do fato de reconhecer que o desenvolvimento das forças produtivas é uma condição indispensável (juntamente com o desenvolvimento da revolução mundial) para a revolução das relações sociais de produção.
[81].- P. Bach, cit.
[82].- Por outro lado, temos outra explicação para o desenvolvimento da URSS, da China e de Cuba durante o período histórico em que houve progresso, ainda que contraditório, no desenvolvimento de suas forças produtivas: o fato de terem sido – por algumas décadas – relativamente independentes do imperialismo.
[83].- Rolando Astarita faz, por seu lado, uma crítica neste aspecto semelhante a este automatismo objetivista considerar a planificação “em si”, como “introdução de um princípio de racionalidade na economia”, independentemente do aspecto da democracia dos trabalhadores. Em um verdadeiro Estado operário, consideramos que a democracia operária, como dissemos, é parte integrante essencial não só do regime político, mas também das próprias relações sociais de produção. Diz Astarita: “(…) embora as relações de produção não fossem capitalistas, também não era possível considerá-las” socialistas “ou” proletárias “. Temos criticado este conceito em nossa análise das posições de Trotsky, com base em dois argumentos inter-relacionados: a extração sistemática de excedente, o que determina uma relação de exploração e a dinâmica não-socialista que resultou do controle burocrático sobre os meios de produção. A propriedade estatal-burocrática dos meios de produção na URSS impedia o avanço da socialização, reproduzindo uma relação de exploração. Os trabalhadores não podiam administrar a economia, decidir o montante e a natureza dos investimentos e planos quinquenais ou articular a distribuição em seu benefício. Em um sentido profundo, a ausência de controle e administração das massas sobre os meios de produção era total, porque o controle burocrático sobre toda a economia era fundamental para a apropriação do excedente “. R. Astarita, “Relações de produção e estado na URSS”, Debate Marxista Nº 9, 1997.
[84].- R. Astarita, cit.
[85].- “Fechado”, na verdade, para nós, porque estar ligado a esquemas econômicos tem efeitos tremendos nas correntes que não tiraram qualquer equilíbrio da experiência oriental. Tanto o PTS em si, quanto o PO e o MST (embora de maneiras diferentes) ainda consideram “laboriosamente” como estados de trabalho para a atual Rússia, China, etc., o que é uma aberração política e teórica sem nome.
[86].- Digamos que esta é uma mentira retumbante da concepção de Nahuel Moreno, que disse (na La dictadura revolucionaria del proletariado) que na antiga URSS havia uma suposta “democracia dos nervos e músculos”.
[87].- L. Trotsky, La revolución traicionada, p. 228.
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* Publicado originalmente em Revista Socialismo ou Barbárie 17/18
Tradução: José Roberto Silva