SANTIAGO FOLLET
Uma abstenção recorde de cerca de 60%
Há várias eleições na França que o principal partido não é o PS e nem os republicanos, nem as formações de Macron ou de Le Pen. A principal opção dos eleitores foi novamente a abstenção, mas desta vez alcançando recordes históricos, em torno de 60%. Isso significa que mais da metade dos eleitores decidiu ignorar o pleito eleitoral, mostrando sua recusa em participar da votação.
A taxa de abstenção foi tão alta que até Mélenchon usou os termos “greve cívica” e “crise cívica” para descrever o que aconteceu. De fato, a crise de representatividade na França é um fenômeno que estamos observando há algum tempo, em que os partidos tradicionais do regime são deslegitimados e o panorama político apresenta um cenário da mais variada fragmentação.
Com uma porcentagem tão alta de abstenção até a efetiva realização, essas eleições estão deslegitimadas, cujo primeiro turno foi realizado de maneira totalmente irresponsável em 15 de março, em um contexto atípico no dia anterior ao início do confinamento. A crise do coronavírus e a enorme rejeição do governo Macron e de todas as instituições são as razões que explicam números semelhantes de tamanha abstenção.
LREM: revés para Macron, legitimação para Edouard Philippe
Os franceses deram as costas às urnas e os que votaram também não expressaram massivamente seu apoio ao governo. Pelo contrário, Macron, que esperava usar essas eleições como base para a expansão territorial de seu projeto político, não obteve vitória em nenhuma cidade importante.
Obviamente, isso se deve à má administração da crise do coronavírus que foi realizada pelo governo e à rejeição das políticas governamentais do presidente que deram origem a grandes movimentos de protesto, como os coletes amarelos e a greve contra a reforma da previdência. Nas últimas semanas, grandes mobilizações anti-racistas, dos ilegais e dos profissionais de saúde encheram as ruas do país para enfrentar o governo. Por sua vez, a resposta institucional tem sido repressão e mais repressão, sem conceder ou dialogar com os setores mobilizados.
Nesse contexto, o escasso resultado de 16% para Agnès Buzyn em Paris deixou a porta aberta para a reeleição de Anne Hidalgo (PS) com 50% dos votos. A campanha parisiense foi horrivel, o candidato previsto inicialmente teve que renunciar devido ao vazamento de uma vídeo de sexo, e a própria Buzyn expressou publicamente seu descontentamento por se sentir compelida a deixar o ministério da saúde no contexto do coronavírus para fazer uma campanha perdida.
Por sua vez, a eleição do atual primeiro-ministro Édouard Philippe para a prefeitura de Havre com 58% dos votos é a única boa notícia para o partido no poder que terá que resolver a continuidade ou sua posição como primeiro-ministro. Alianças de direita com os republicanos não trouxeram os sucessos esperados e as boas eleições dos Verdes conseguiram arrancar várias prefeituras importantes da direita aliada de Macron.
Verdes confirmam sua tendência ascendente
Há muito o que comemorar entre os defensores do capitalismo verde organizados sob o rótulo “Europa Ecología Los Verdes”. Para essa formação ambientalista, esta segunda rodada das eleições municipais confirmou os bons resultados alcançados nas europeias no ano passado. Os Verdes ficaram com cidades importantes como Lyon, Marselha e Bordéus (que estavam nas mãos da direita tradicional há anos), além de obter as prefeituras de Lille, Estrasburgo, Annecy, Besançon, Poitiers e Grenoble.
Mais uma vez, confirma-se a tendência ascendente dessa formação política, que expressa um perfil centrista que disputou com sucesso o espaço com Macron. Os Verdes se tornaram a principal força da “união de esquerda”, ou melhor, da “centro-esquerda”, que também incluiu em muitas localidades o apoio do Partido Socialista, do PCF e da La Francia Insumisa.
Enquanto o PS permanecerá à frente de Paris e Nantes, o PCF manterá alguns de seus bastiões históricos do banlieue rouge parisiense, como Montreuil e Ivry-sur-Seine, ao mesmo tempo em que recuperou Bobigny, mas cedeu sua liderança histórica em Saint- Denis diante do PS, incapaz de fechar uma aliança com a LFI. Esse tipo de alianças ou separações por localidade definiu o tom nacional do dia com várias combinações fragmentárias, nas quais os verdes foram os mais capazes de desenvolver sua extensão em todo o território.
Perpignan: a fortaleza da extrema direita
Para o Rassemblement National de Marine Le Pen, a ascensão ao poder na cidade de Perpignan, com 120.000 habitantes, representa um marco importante na história da formação de extrema direita. A vitória de Louis Aliot foi imposta contra o prefeito Jean-Marc Pujol dos Republicanos, em um segundo turno marcadamente reacionário entre a direita e a extrema direita.
Essa vitória do RN acende alertas sobre a ameaça que esse partido representa, especialmente tendo sido obtido após várias mobilizações policiais que exigem literalmente o seu direito de reprimir. Le Pen mostrou-se publicamente apoiando esses setores da polícia e essa eleição de Perpignan representa a tendência mais reacionária que se opõe às enormes mobilizações anti-racistas e contra a violência policial que ocorreu recentemente no país. É o contraponto à relevância que teve a luta de Assa Traoré, o coletivo Adama e a rebelião anti-racista que atravessa os Estados Unidos e cujo o impacto também se reflete na França.
No entanto, a vitória simbolicamente forte do RN em Perpignan não condiz com uma extensão territorial bem-sucedida e transferível para outras regiões do país, uma vez que existe uma distância importante entre figuras políticas nacionais e a ancoragem territorial que seus partidos políticos obtiveram para legitimar nas municipais. Nem Macron nem Le Pen – e muito menos Mélenchon -, principais animadores da vida política nacional, foram capazes de liderar forças nacionais que poderiam se impor ao país como um todo para além da fragmentação e particularidades de cada localidade.
Philippe Poutou entra no parlamento de Bordéus
Nesse contexto, destaca-se o papel do porta-voz do Novo Partido Anticapitalista, Philippe Poutou, que obteve 10% dos votos na cidade de Bordeaux, o que lhe permitiu entrar no parlamento local, junto com ele vários candidatos da lista “Bordeaux en Luttes”. Esse voto foi duplamente atípico porque ocorreu em uma cidade tradicionalmente governada pela direita e porque suportou o peso do “voto útil” em relação aos verdes, que acabaram triunfando nas eleições para manter esse município no sudoeste francês.
A campanha de Philippe Poutou baseou-se na grande popularidade do trabalhador da Ford, que este ano, após anos de luta pelos trabalhadores em defesa de seus empregos, ficou sem emprego depois que a fábrica da Ford Blanquefort decidiu fechar as portas. Poutou é o ex-candidato da NPA para as eleições presidenciais de 2012 e 2017 e é reconhecido nacionalmente, especialmente graças à sua intervenção no debate presidencial de 2017, no qual denunciou Fillon e Le Pen, em um exemplo de intervenção classista de um candidato anticapitalista diante de candidatos da burguesia.
A lista “Bordeaux in Struggles” foi montada com o apoio da NPA, do coletivo Bordeaux Debout e da Francia Insumisa, junto com ativistas sindicais, associações, anti-racistas e líderes dos coletes amarelos e da luta contra a repressão policial. A inclusão de uma aliança com a Francia Insumisa gerou debates no NPA devido à natureza reformista dessa organização de centro-esquerda, que fez alianças de todos os tipos em todo o país que não respeitam a independência de classe com partidos como o verde e o PS. A criação de “Bordeaux en Luttes”, no entanto, foi um acordo de independência de classe, com um programa anticapitalista, liderado pela NPA e emergiu de grupos que lutavam contra o governo Macron, uma posição à qual o FI se apegou.
O sucesso da eleição permitiu a entrada de vários parlamentares militantes, entre os quais não apenas Poutou, mas também Antoine Boudinet, uma estudante de 27 anos que perdeu a mão em uma manifestação dos coletes amarelos e que representa muitos companheiros que foram reprimidos por ir às ruas para enfrentar o governo Macron. Essas posições obtidas no parlamento, além das obtidas pela NPA em Lormont e Cenon, nos arredores de Bordeaux, devem ser colocadas a serviço da representação política para desenvolver a luta nas ruas contra o governo Macron. O NPA deve aproveitar o impulso dessa campanha para se fortalecer como uma alternativa política em nível nacional que permita unir em um partido revolucionário com um programa anticapitalista as lutas setoriais dos movimentos sociais existentes, como saúde, “sem papel” e o movimento anti-racista contra a violência policial, junto com trabalhadores, mulheres e jovens.
