Por Karen Rezende

Um breve panorama da USP

Desde o retorno presencial, a Universidade de São Paulo (USP) vem acumulando uma série de ataques e tensões. No ano passado, em meio à mobilizações pelo “Fora Bolsonaro”, diversos problemas envolvendo sobretudo o Conjunto Residencial da USP (Crusp), vieram à tona, como problemas com a infraestrutura, falta de água por mais de um mês, expulsão de moradores etc., que geraram mobilizações e paralisações.

Esse ano começou com mobilizações por conta do não pagamento das bolsas PAPFE, que são ligadas à permanência estudantil, além da imposição de uma lista de espera que não estava prevista em edital, fazendo com que diversos estudantes tivessem problemas para se manter na universidade e, ainda, muitos nem conseguissem frequentar as aulas, sobretudo aqueles que passaram no vestibular – que já é um filtro social, étnico e racial -, mas moravam longe do local da universidade. Ainda que essas mobilizações tenham acontecido, o primeiro semestre foi marcado por uma inércia do movimento estudantil. Mas, diferente do que está acontecendo agora no segundo semestre, há muito tempo a USP não falava em greve.

No fim do primeiro semestre, uma nova força de mobilização foi lançada principalmente em decorrência da paralisação com ocupação realizada por estudantes da Escola Artes, Ciências e Humanidades (EACH), ou USP Leste, como também é conhecida. Uma paralisação que reivindicava, dentre outras coisas, a contratação de professores e que durou 5 dias, sendo vitoriosa para os estudantes.

Após o recesso, o acúmulo de tensões começou a gerar cada vez mais revolta e os estudantes revelaram sua força e desejo de luta. Logo na primeira semana de aula, os estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) tiveram que lidar com a presença de figuras da extrema direita assediando os estudantes e gravando vídeos sem autorização. Na terceira vez que vieram ao vão, estavam acompanhados de um segurança armado – ligado ao gabinete de Fernando Holiday -, que apontou a arma para os estudantes. O acontecimento gerou muita revolta entre os estudantes, e em todas as vezes que os provocadores vieram, mostraram a sua força e capacidade de luta no enfrentamento desses representantes da extrema direita que foram expulsos da USP pela ação unificada de diferentes CA’s, organizações e estudantes independentes.

Outro acontecimento que ajudou a inflamar o movimento estudantil da USP se deu por conta da mobilização dos estudantes do curso de Letras, que desde o começo do ano vem denunciando a falta de professores que coloca em risco de fechamento habilitações, algumas delas atualmente só oferecidas pela USP. Isso fez com que Letras realizasse assembleias com mais de 600 estudantes e construíssem uma paralisação de dois dias, com indicativo de greve antes mesmo do calendário geral da USP. Além disso, as mobilizações por professores na ECA, que tiveram 11 disciplinas fechadas de uma vez só por conta da demissão de professores, também trouxe ainda mais a tona o problema.

A questão da falta de professores na USP se agravou após a derrubada de um mecanismo chamado “gatilho automático”. É importante lembrar que o gatilho foi conquistado após a massiva greve de 2002, na FFLCH, que contou com professores, alunos e funcionários e garantiu a contratação de professores, fazendo com que o quadro docente subisse. Dito mecanismo garantia a contratação imediata de professores assim que um se aposentasse, não deixando vacância no cargo, no entanto, o gatilho foi derrubado pela reitoria do Rodas, abrindo um grande déficit no quadro docente, no qual hoje estamos lidando com as consequências.

Nesse sentido, a USP hoje se prepara para uma greve, com indicativo para o dia 21, que está sendo construída em diversos cursos, incluindo a Geografia, que também vem de um acúmulo de ataques e de discussões, que sondam a temática da falta de professores e reforma curricular, mas também da luta pelos trabalhos de campo e da permanência estudantil. 

Onde está a Geografia nesse cenário?

A situação da Geografia é diferente da Letras ou de cursos da Escola de Comunicação e Artes (ECA), que tem cursos e habilitações na iminência de fechar, mas não deixa de ter um quadro grave de sucateamento que foi tocado nos últimos anos. 

A situação da falta de professores, por exemplo, faz com que a Geografia tenha atualmente 35 professores (o número oficial é de 39 professores, mas estamos desconsiderando aqueles que por algum motivo estão afastados das atividades escolares) para quase 1000 estudantes de graduação e pós-graduação, considerando que o curso de Geografia da USP é o maior em número de estudantes do Brasil. Esse número alarmante é quase igual ao número de professores no ano de 2000, antes de explodir a greve de 2002, que era de 36 professores, além de ser um número muito abaixo do pico de professores em 2010, que era de 54 docentes, número esse que só foi conquistado como consequência da greve de 2002. Isso tem influenciado, nos últimos anos, o não oferecimento da maioria das disciplinas optativas, que são essenciais para a formação dos estudantes e fazendo com que os professores tenham que se desdobrar ainda mais para atender a demanda do curso. A situação é gravíssima e pôde ser notada agora principalmente após a realização do Censo da Geo, tocado no primeiro semestre, que mostrou, junto com os resultados do perfil dos estudantes do curso, a existência de disciplinas optativas que a maioria dos estudantes nem sabia que existiam, uma vez que elas não vem sendo ofertadas pela falta de professores.

Outra problemática posta é a questão dos trabalhos de campo, que são imprescindíveis na formação de geógrafos. O primeiro problema é que a maioria dos trabalhos de campo são ofertados pelas disciplinas optativas – que não estão sendo oferecidas. O segundo problema advém do sucateamento desse recurso, que foi se agravando com os anos, a começar pela imposição de um limite de quilometragem permitida: 1.500km, contando ida e volta. Isso fez com que diversos campos que eram realizados para locais mais afastados deixassem de acontecer. Além disso, desde o começo do ano os estudantes se colocaram em luta em defesa dos trabalhos de campo, que no primeiro semestre quase não aconteceram, motivados pelas vontades da Pró-Reitoria de Graduação, que não queria liberar a verba necessária para os campos acontecessem, sobretudo no que diz respeito à verba para o contrato dos ônibus – que são feitos por licitação em uma empresa privada desde a tomada de decisão abrir mão dos nossos ônibus próprios que foi feita de cima para baixo – e também porque queriam passar a responsabilidade da verba para a FFCH, sem que fosse aumentado o repasse de dinheiro para a faculdade, fazendo com que os trabalhos de campo, que são essenciais, competissem com outras atividades da faculdade como um todo. No segundo semestre ainda existem campos estão ameaçados e deixam os professores e estudantes na incerteza, campos historicamente ofertados que podem não acontecer por conta da resistência dessa gestão. 

Outro sintoma dessa onda de precarização é a permanência. A Geografia é um dos cursos mais proletarizados da USP e as políticas de permanência estudantil são essenciais para que os estudantes possam continuar frequentando as aulas. A problemática com o não pagamento das bolsas e oferta insuficiente dos auxílios fazem com que grande parte dos estudantes tenham que conciliar jornadas exaustivas de trabalho com o estudo, prejudicando, dentre outras coisas, o desempenho acadêmico dos mesmos. O sucateamento da moradia estudantil também é sentido na pele por diversos estudantes da Geografia e as mobilizações do ano passado evidenciaram isso. Ainda, o recente corte de milhares de bolsas do Programa Unificado de Bolsas de Estudo (PUB) afetou principalmente as ciências humanas e na geografia não foi diferente, deixando muitos estudantes que antes eram bolsistas sem alternativa, principalmente pelo fato de agora as bolsas PUB não terem mais ligação alguma com o PAPFE, ou seja, não são mais voltadas à permanência estudantil. 

A geografia vem de um acúmulo muito sólido de entendimento do corpo estudantil, sobretudo com o Censo e também na participação e no apoio de diversas lutas que aconteceram na USP desde o ano passado, colocando toda sua capacidade e desejo de luta. Além disso, teve no último período espaços de diálogo e troca com os estudantes, professores e trabalhadores, seja em rodas de conversa, plenárias ou atividades em paralisações. É o momento de engrossar esse caldo ainda mais e construir um movimento potente na Geografia que se estenda para os demais cursos!

Isso tudo não é coincidência, é projeto!

O projeto de precarização da universidade pública vem sendo tocado a muito tempo na USP e que essa reitoria, que se dizia progressista ao se eleger, vêm se alinhando cada vez mais com isso, sobretudo levando em conta os projetos de extrema-direita que o governo de Tarcísio tem para a educação. Essa problemática é evidenciada sobretudo quando se considera a cada vez mais crescente parceria público-privada que promove fundações privadas como bancos dentro da universidade custeando por exemplo programas de bolsas de estudo e promovendo pesquisas – a maioria voltada para o empreendedorismo – para servir ao interesse do capital privado, tudo isso em nome daquilo que a USP chama de “Inovação”

Essa “Inovação” exclui as Ciências Humanas e as Artes justamente por serem, em sua essência, contra esse tipo de ultrada neoliberal na universidade. Isso fica claro com os editais de contratação de professores lançados em 2022, que, além de mostrar o déficit na contratação de professores – mostrando que serão repostos apenas 80% dos cargos daquilo que a Reitoria considera necessário ser reposto -, mostra critérios abstratos para contratação como “mérito” e evidencia que, ao menos 50% dos docentes seriam contratados por esse critério, além de também estar contido nesses editais a distribuição desigual dos cargos, sendo a maioria destinada às biomédicas, em detrimento das Ciências Humanas, que, apesar de ter o maior número de estudantes dessa universidade, tem previsão de receber o menor número de docentes.

Outro método utilizado para promover esses critérios de inovação é uma reforma curricular, que teria que seguir parâmetros estabelecidos de cima, que, no limite, apenas sucateiam as cargas horárias e o conteúdo oferecido pelos cursos. A reforma curricular dos cursos querem adotar uma transdisciplinaridade que reduza a carga horária ofertada pelos departamentos e fazem com que estudantes tenham que fazer matérias em conjunto com outros cursos como forma de fazer com que tenham menos contratações docentes. Isso é uma forma de precarização do ensino e aprendizagem em nome dessa inovação, sem qualquer tipo de diálogo com os estudantes ou entendimento das especificidades de cada curso. Ainda, a própria reitoria deixa evidente que os cursos que realizarem essa reforma curricular serão vistos com melhores olhos na hora de distribuição de cargos docentes e recursos.

Esse projeto de tornar o ensino cada vez mais a serviço do capital privado promove o sucateamento da universidade pública, sendo que os sintomas são mais sentidos pelas Ciências Humanas, mas não são exclusividade delas, uma vez que as recentes mobilizações mostraram que a problemática, sobretudo da falta de professores se estende para a maioria dos cursos da USP, que ainda assim se gaba de suas posições em rankings enquanto os estudantes travam uma batalha pelo básico para se formar.

Nos últimos dias, após a reitoria estar ciente das mobilizações em relação à contratação de professores, fizeram uma manobra de adiantamento das contratações que iriam ocorrer até 2025 para o ano que vem em algumas unidades como a FFLCH e a ECA. Na geografia isso significa que as duas contratações que iriam ocorrer em 2025 passaram para o ano que vem, junto com as duas já previstas para o próximo ano, somando 4 cargos. Esse adiantamento de contratação é insuficiente para a quantidade de professores necessários para que os cursos funcionem em sua plenitude e é uma tentativa de acalmar o movimento que está sendo construído. Isso é sintoma das mobilizações que já aconteceram até agora e só mostra que a luta não deve ser interrompida, pelo contrário, deve se inflamar ainda mais. 

É GREVE PORQUE É GRAVE!

Esse é o momento de entendermos as demandas dos nossos cursos – como a Geografia já vem fazendo no decorrer desse ano -, mas não nos fecharmos em lutas isoladas. A demanda pela unificação das lutas que estão sendo tocadas nos cursos vem de muito tempo mas parte do motivo da dificuldade de articulação conjunta está na postura pouco a ofensiva que a atual gestão do DCE Livre da USP (Juntos, Correnteza e PCB) tem tomado, ficando a reboque das políticas dos centros acadêmicos sem fazer ações para unificar até que sejam pressionados pelo calor da luta que já está em movimento. Um exemplo disso é que não fizeram nenhuma campanha informativa sobre os problemas de sucateamento da reitoria na USP ou ajudaram a divulgar mais amplamente os dados sobre a permanência. Aliás, a assembleia geral chamada no mês passado, que deliberou o indicativo de greve, foi a segunda de todo o ano, mesmo com todos os acontecimentos e mobilizações que ocorreram no primeiro semestre.

Apesar dessa atual política imobilista do DCE, nas bases dos cursos com mais problemas os estudantes se organizaram para lutar, e, esse fator criou melhores condições para que outros cursos seguissem os exemplos levando ao cenário de que hoje nós estamos falando de greve na USP. 

Mas, para que seja construída uma greve forte, precisamos unificar as lutas dos cursos para massificar o movimento e conquistar nossas reivindicações. Na Geografia, como em diversos outros cursos, a luta pela contratação imediata de professores se soma com a luta pela volta do gatilho automático, pela permanência estudantil, contra o sucateamento dos trabalhos de campo, contra essa reforma curricular imposta de cima para baixo, ou seja, em defesa de uma reforma democrática sem que seja seguido esses moldes e critérios de inovação e contra todo esse projeto neoliberal de privatização da Universidade Pública. 

Com o acúmulo que já existe e com a atual conjuntura universitária e do movimento estudantil, existem totais condições para construir uma greve de forma unificada com os demais cursos e também com estudantes, professores e trabalhadores para parar essa universidade até que a reitoria tenha que atender nossas reivindicações. Nesse sentido, é necessário que as entidades, centros acadêmicos, o DCE, SINTUSP, ADUSP, coletivos, organizações e todos os estudantes ajudem a construir essa luta de forma consequente, coerente e que não se perca no processo o tempo político das coisas.

Portanto, é importante que os estudantes se envolvam e participem das atividades já marcadas em calendário, a começar pela assembleia dos estudantes de Geografia, no dia 14/09, no vão. Além disso, a assembleia geral da USP que vai ser dia 19 e vai deliberar sobre o indicativo de greve do dia 21/09. Também está sendo articulada uma plenária dos três setores (estudantes, professores e trabalhadores), para unificar ainda mais as mobilizações. É hora de massificar e ir à luta!