Em outubro, teremos 400 mil candidatos disputando 5.568 prefeituras e 58 mil cadeiras de vereadores, o resultado deste pleito terá impacto importante sobre o processo eleitoral de 2026 (eleição de governadores e deputados estaduais, presidente, deputados federais e senadores) e sobre a polarização política que vivemos desde 2013. É na perspectiva de fazer uma campanha de enfrentamento ao bolsonarismo, aos ataques de todos governos burgueses, ligada às lutas imediatas dos trabalhadores e para construir uma alternativa política autêntica da esquerda socialista que construímos a Bancada Anticapitalista.

ANTONIO SOLER

“Só o proletariado pode investir sua atividade social e política na realização da sociedade urbana. Só ele pode renovar o sentido da atividade produtora e criadora ao destruir a ideologia do consumo. Ele tem, portanto, a capacidade de produzir um novo humanismo, diferente do humanismo liberal que está terminando sua existência: o humanismo do homem urbano para o qual e pelo qual a cidade e sua própria vida cotidiana na cidade se tornam obra, apropriação, valor de uso (e não valor de troca) servindo-se de todos os meios da ciência, da arte, da técnica, do domínio sobre a natureza material”

(Henri Lefebvre. O direito à cidade.)

Tendência ao desequilíbrio e à polarização

As eleições municipais ocorrem em um cenário mundial em que a época de guerra, crises e revoluções descrita por Lênin está reenergizada. Nesse novo cenário, vivemos uma combinação de crises múltiplas (geopolítica, política, econômica, migratória, colonial, climática, trabalho etc.) e uma forte tendência ao desequilíbrio de toda ordem. Situação que não podemos deixar de discutir para analisar as eleições municipais, pois a crise crônica das cidades – tema que desenvolvemos um pouco mais abaixo – não pode deixar de ser impactada e agravada pela nova realidade planetária e vice-versa.[1]

A base econômica dessa crise múltipla ocorre porque todas as crises históricas do capitalismo marcam a passagem violenta (política, militar e economicamente) a novos modos de acumulação de capital. Após a crise de 1970, o regime de acumulação fordista foi substituído pelo capital financeirizado, o que levou a crises mais constantes, permeadas de um processo de acumulação muito mais instável do que o anterior.

Esse novo padrão, diferentemente de outros momentos, vem seguido da emergência de outras crises, como a crise migratória e a crise climática – o Brasil é um exemplo cabal de como a crise ambiental se materializa a partir do caráter cada vez mais predatório e destrutivo do capitalismo.

Após a crise econômica de 2008, entramos em um novo cenário de mudanças estruturais no padrão de acumulação capitalista, com ascensão econômica e geopolítica da China, desenvolvimento massivo da economia de plataformas, fragmentação, precarização e superexploração do trabalho em todos os âmbitos. Temos neste processo a abertura de campos de valorização do capital cada vez mais predatórios e barbarizantes, como são os conflitos armados e genocídios e ecocídios em curso.

Além da crise econômica, temos a) a guerra indireta entre o velho e o novo imperialismo no território ucraniano, genocídio colonial contra Gaza e uma espécie de nova “guerra fria” volta a colocar a ameaça de uso de armas nucleares; b) catástrofes climáticas – irrefreáveis dentro dos parâmetros capitalistas – planetárias em curso levam ao extermínio da flora e da fauna em massa devido aquecimento global; c) ascensão de formações políticas de extrema direita – com características distintas do século passado mas que são perigos bem concretos aos diretos dos trabalhadores e dos oprimidos – que disputam e ascendem ao poder em várias parte dos mundo.

Como se vê, não se trata apenas de uma crise do modo de acumulação como as anteriores, pois temos crescentes incertezas e transformações estruturais em todas as áreas, em todos os elementos que condicionam o desenvolvimento histórico.

Esse processo não é desprovido de resistência por baixo no campo da luta de classes. Diante da falência do reformismo sem reformas e do avanço da direita radical, a resistência por baixo coloca limites. Além da bipolarização da crise geopolítica, temos a continuidade também de uma polarização assimétrica entre os de cima e os de baixo.

A resistência ao genocídio de Gaza ganha corações e mentes da juventude em todo mundo, fazendo com que as mobilizações pelo fim do massacre se massifiquem em Israel; há uma importante resistência aos ataques do governo de extrema direita de Milei na Argentina; reaquecimento da luta sindical contra fim de direitos e queda salarial em países da Europa e nos EUA; rebeliões populares em vários continentes, com destaque para a vitoriosa rebelião popular de Bangladesh.[2]

De uma forma geral, a aceleração das mudanças estruturais de todas as ordens não pode deixar de atuar – e já está atuando – sobre a subjetividade das massas. Situação que requer da esquerda independente, a partir destes processos fragmentados, impulsionar o levantamento de um movimento dos trabalhadores e oprimidos de natureza anticapitalista e socialista.

Esse é um cenário mundial de policrises – com ênfase para a crise climática que atinge novamente todo o país – que impacta o Brasil e suas eleições municipais. Mesmo que ainda não tenhamos expressões massivas da luta dos trabalhadores e do oprimidos, não podemos descartar a possibilidade de erupção de movimentos de contestação. É justamente nessa perspectiva que temos que apostar.

Retomada da ofensiva reacionária

A polarização assimétrica da luta de classes – em que não existe uma derrota histórica dos explorados e oprimidos e tendências a erupções de todas as ordens – vista no cenário mundial, encontra no Brasil uma importante expressão.

Vivemos por aqui um processo de retomada da ofensiva reacionária depois da eleição do governo do Lula 3 (governo burguês amplo de conciliação de classes com intenções normalizadoras do regime democrático burguês) no qual a eleição municipal de outubro terá consequências importantes.

Recuando um pouco historicamente, já foi muito discutido que a eleição de Lula em 2022 não mudou de forma qualitativa a correlação de forças. Lula foi eleito, mas não fez maioria no Congresso Nacional e a sua frente ampla perdeu em várias unidades.

A derrota eleitoral do bolsonarismo foi parcial e os resultados foram contraditórios para a frente de conciliação de classes dirigida pelo PT: Lula venceu com 50,9% dos votos, contra 49,1% de Bolsonaro, uma estreita margem de 1,8%; perdeu na região Norte e melhorou no Sudeste. Mas, o bloco da direita e extrema direita elegeu governadores em Minas Gerais, Goiás e São Paulo.

O PL de Bolsonaro elegeu 99 Deputados e o Centrão 235 – Republicanos (42), PP (47), PL (99), PSD (42), Patriota (4) e PTB (1) -, o que somado dá uma bancada ultrarreacionária de 334 deputados federais. Bancada que está polarizando pela extrema direita a política nacional com projetos como o Marco temporal, o PL do estupro, o sequestro do Orçamento Federal e outros.

Não podemos negar que houve uma mudança apenas quantitativa da correlação de forças em relação à extrema direita – como discutiremos mais abaixo. Porém, o lulismo (velho e novo) usa esse dado para dizer que estamos em uma correlação de forças ultradefensiva típicas de derrotas históricas. Essa unilateralidade na análise serve apenas para justificar sua linha estratégica de retirar os movimentos sociais das ruas e continuar capitulando à classe dominante mesmo quando existem condições para avançar.

Logo após a eleição de Lula, tivemos a tentativa farsesca de golpe em 8 de janeiro, o  governo e a burocracia lulista não quiseram aproveitar a situação para avançar um milímetro contra os golpistas e por medidas democratizantes, em um momento em que o bolsonarismo entrou em uma clara defensiva.

Lula 3 em vez de mobilizar para avançar sobre pautas democráticas, prender Bolsonaro e todos os golpistas, dedicou-se inteiramente a políticas de ajuste fiscal, como foi o caso do novo teto de gastos orçamentário, e a uma reforma tributária regressiva, que faz o imposto incidir sobre o consumo. O novo teto de gastos, por exemplo, acabou sendo uma armadilha, pois impõe um limite de gastos insustentável diante das necessidades nacionais e serve para a classe dominante colocar pressão para retirar a saúde e a educação das receitas fixas da União.

Se a estratégia do governo burguês de conciliação de desmobilizar para levar a política única e exclusivamente para os palácios já criou desastres em governos lulistas anteriores, com a crise econômica de 2008, ascensão da extrema direita no mundo e no Brasil, crises geopolíticas e climáticas, essa estratégia traidora ganha contornos ainda mais trágicos.

Foi nesse cenário de recuo político que a extrema direita saiu da defensiva. Apoiada no Centrão, no agronegócio, no capital financeiro (um verdadeiro bloco de poder), no espaço político deixado pelo Lula 3 e pela burocracia (PT, PSOL, PCdoB, UP, CUT, UNE, MST, MTST e Marcha Mundial de Mulheres) e nas contrarreformas do governo, é que a extrema direita vem retomando a ofensiva.

O Centrão já vinha desde a ofensiva reacionária de 2015 impondo mudanças na dinâmica orçamentária e governamental, algo que se manifestou na ampliação do controle sobre o Orçamento Federal e sobre as Medidas Provisórias (MP) do Executivo. Antes de 2001 as MPs eram enviadas ao Congresso e tinham que ser votadas no prazo de 45 dias, do contrário a pauta era trancada, isso dava enorme poder à Presidência da República. Com as mudanças, se o legislativo não votar a MP no prazo determinado, ela caduca e o Executivo é obrigado a enviar outra à apreciação.

Foram criadas as emendas parlamentares impositivas, depois o Orçamento Secreto do governo Bolsonaro (transformadas em Emendas de Bancada no governo Lula 3) e as “Emendas PIX”. Com isso, o legislativo tomou cerca de 25% do orçamento federal e 50% das verbas discricionárias – valores muito mais altos do que a ampla maioria dos países no mundo. Em que pese que o STF tenha determinado que se faça um acordo entre Congresso e Governo para dar mais transparência para as emendas, a lógica de controle do Congresso sobre parte significativa do orçamento se manteve intacta – o que terá uma importante repercussão sobre as eleições municipais pelo expressivo aumento do poder econômico do Centrão. 

Essas mudanças destruíram o “velho” governismo de coalizão instituído após a Constituição de 1988 e impuseram um regime político governamental diverso. Neste, o Congresso Nacional, particularmente a Câmara dos Deputados, adquiriu muito mais poder sobre a dinâmica governamental e orçamentária, estabelecendo uma espécie de semiparlamentarismo reacionário em que o Poder Executivo é dividido entre Governo e Legislativo.

Como parte dessa mudança de regime político imposto por fora e contra a Constituição de 1988, o Centrão e o bolsonarismo, na esteira das contrarreformas levadas pelo Lula 3, assume uma ofensiva que se manifesta concretamente em ataques ultrarreacionários em todos os âmbitos da vida política nacional.

Como exemplos temos a tese do Marco Temporal que impede que as comunidades originárias reivindiquem a demarcação de novos territórios, o projeto de lei que criminaliza o aborto mesmo em casos previstos por lei, a criminalização do consumo de drogas e, agora, o projeto que prevê anistia para os crimes do 8 de janeiro. Sem falar na aberta necropolítica levada nos estados (inclusive os administrados pelo lulismo) e as privatizações.

No entanto, pensar que esses ataques acontecem sem resistência é desconsiderar a realidade. A mobilização indígena fez com que Lula 3 vetasse parte do marco temporal – veto que foi derrubado pela Câmara e esta em julgamento no STF – e a mobilização praticamente espontânea do movimento de mulheres fez Arthur Lira (Presidente da Câmara) recuar do rito sumário de tramitação.

A esquerda da ordem, para defender a política lulista de não se enfrentar com a burguesia e com a extrema direita, afirma que estamos em uma conjuntura de ultradefensiva, porém, desconsidera totalmente o potencial de luta que essas reações e as lutas sindicais estão demonstrando. Para lógica capituladora não podemos nessas eleições fazer propostas concretas para resolver os reais problemas dos trabalhadores e temos que nos contentar com uma campanha sem nenhuma mobilização de rua.

Tal premissa apenas contribui para que a contraofensiva ultrarreacionária avance ainda mais sobre direitos e reabilite os golpistas de 8 de janeiro. Dinâmica extremamente perigosa que coloca a possibilidade do golpismo voltar ao poder central em 2026 – com ou sem Bolsonaro -, o que teria o potencial de impor uma derrota de estatura histórica. Só poderemos reverter esse cenário a partir de uma luta massiva, nas ruas e independente do governo e dos patrões, queira ou não o lulismo e seus satélites (velhos e novos).

Crise urbana potencializa todas as crises

Como já dissemos, estas não são eleições municipais triviais, estamos encarando de frente uma nova fase histórica da luta de classes consubstanciada pela eclosão – mundial e nacional – de crises sobrepostas de todas as ordens. No Brasil assistimos a desequilíbrios estruturais que estão nos levando a um outro mundo, uma policrise que encontra nas cidades o seu lugar de realização mais plena.

Esse cenário potencializa a já histórica e estrutural crise urbana e faz com que ela reatue – muitas vezes de forma explosiva – sobre a realidade. Na maior parte dos países, no Brasil isso não é diferente, a crise urbana se manifesta pela incapacidade/dificuldade de apresentar as condições mínimas de reprodução biossocial, de mobilidade, de emprego, de habitação, de saúde, de segurança e de educação. No entanto, ela não é estática, tem um movimento de agravamento ou alívio, a depender das conjunturas socioeconômicas.

A policrise mundial e nacional apontada atua sobre o feixe de problemas urbanos e cria uma tendência estrutural à desigualdade e ao colapso em várias áreas: mobilidade, desemprego, informalidade, violência, insegurança e precarização generalizada da vida cotidiana.

Como as dinâmicas econômicas, sociais e políticas transcendem as fronteiras das cidades, não estamos falando apenas das metrópoles urbanas. Vivemos um cenário em que cidades médias estão apresentando problemas de metrópoles, ou seja, não há como escapar das crises urbanas agravadas pela nova etapa.

Na história recente vimos como a crise econômica mundial impactou a América Latina e o Brasil a partir de 2011/12. A queda do preço das commodities e a inflação do preço dos alimentos se combinou com uma série de problemas urbanos – transporte, moradia, precarização do trabalho – levando às jornadas de Julho de 2013 (processo de questionamento massivo das instituições e do sistema político que vivemos até hoje). Ou seja, dependendo das combinações conjunturais internacionais e nacionais, o feixe de crises estruturais que as cidades abrigam pode levar a cenários explosivos.

Um elemento de magnitude inédita e de proporções impensáveis de agravamento da crise urbana nos últimos tempos no Brasil, é o do surgimento de eventos climáticos extremos que atingem extensões cada vez maiores dos territórios. O aquecimento global planetário encontra no território brasileiro particularidades de uma dinâmica natural, política e socioeconômica que propicia desastres de grandes magnitudes, como as vistas em todos o estado do Rio Grande do Sul, que estão se replicando agora com as queimadas que destroem biomas em todo o país.[3] 

O problema climático tem sido tratado de forma superficial, mas é um importante elemento de aguçamento das crises urbanas que pode levar a contextos de explosões sociais. Por isso, para enfrentar a crise climática, precisamos dar respostas urgentes pelas organizações sindicais, estudantis e populares pela esquerda socialista nestas eleições, mas também em todos os momentos da luta de classes.

Neopossibilismo contribui com desarme estratégico

Queremos passar a breve polêmica com o que consideramos uma verdadeira falência estratégica e de princípios representada pelas elaborações de Valerio Arcary, dirigente da Resistência (tendência interna do PSOL), dirigente e organização com os quais polemizamos em várias ocasiões a partir das posições da nossa corrente internacional, a Socialismo ou Barbárie.

Arcary atualmente é teórico do neopossibilismo e da revolução passiva e não mais da revolução permanente. De forma sumária podemos dizer que o possibilismo é uma velha concepção reformista que Arcary e outros ex-militantes revolucionários desmoralizados atualizam. Resumidamente a operação consiste em renunciar a toda linha política revolucionária – princípios, estratégias e táticas -, devido às dificuldades inatas da luta de classes em qualquer conjuntura ou situação. Assim, passa para o campo da política do possível, ou seja, defende políticas que não exigem enfrentamento com a classe dominante e a pela burocracia. Já Revolução passiva é um conceito gramsciano para dar conta dos processos de mudanças sem radicalidade e participação das massas e Revolução Permanente é a atualização programática do marxismo revolucionário à época de guerras, crises e revoluções que supera a velha divisão entre programa máximo e programa mínimo. A contrário do possibilismo defendido por Arcary, coloca a ação auto-organizada das massas no centro do processo.

Arcary, em seu “Análise de conjuntura”[4], para justificar a linha da campanha de Guilherme Boulos (candidato a prefeito da chapa PSOL-PT), faz mais um exercício de pura ideologização a serviço do lulismo.

A recente operação ideológica do autor – são muitas para justificar o caminho à direita desse setor – passa pelo argumento de que estamos em uma situação extremamente defensiva na qual existe audiência de massas apenas para propostas “antissistema” pela extrema direita. Afirma que há derrotas históricas da classe trabalhadora e que apenas a extrema direita é capaz de mobilizar.

Dessa forma, diz que “o argumento de que não se deve subestimar, nem superestimar é uma fórmula “elegante”, mas escapista”. A “realidade concreta” que vê o dirigente da Resistência é a de que estamos em uma “situação ultradefensiva”, a “radicalização antissistema é [apenas] de extrema-direita” e “um discurso antissistêmico seria ir para a oposição ao governo Lula”.

Como vemos, para ele não existe nenhum ponto de apoio para a luta direta defensiva, contra os ataques da extrema direita e do governo. Constrói essa linha argumentativa para polemizar com a tese – defendida por nós e outras correntes – de que, apesar da ofensiva reacionária, temos importantes reservas de combatividade entre os trabalhadores e oprimidos (como vimos acima) que devem ser acionadas e são capazes de frear e fazer recuar a extrema direita e o Centrão.

Assim, na sua linha argumentava a esquerda não pode se apoiar em setor algum das massas para fazer a resistência aos ataques nas ruas. Não podemos apresentar um programa de transformações mínimas e nem criticar as candidaturas de conciliação de classes, pois foi um programa moderado que venceu Bolsonaro em 2022. Assim, a única “salvação” diante da perspectiva de avanço da extrema direita nas ruas e nos palácios é eleger Boulos em São Paulo.

A correlação de forças “ultradefensiva” apresentada pelo neopossibilista não é parte de um exercício concreto de análise a serviço de uma política revolucionária justa – como o deveria ser a partir de uma metodologia clássica do leninismo. É, na verdade, uma autojustificação que exagera um cenário conjuntural para encobrir uma mudança profunda de concepção política que vai muito além de análises conjunturais. Ou seja, um malabarismo ideológico que serve para encobrir o giro deste dirigente e de sua organização, hoje estão muito mais próximos do reformismo do que do marxismo.

Vamos ao argumento mais episódico. Existem setores dos explorados e oprimidos que resistem de forma importante, como é o caso do movimento de mulheres que enfrentou Lira e o Centrão contra o “PL do Estupro”; da juventude universitária e secundarista que se enfrentam em âmbito federal e estadual contra a reforma do Ensino Médio, a privatização do ensino e contra as escolas cívico-militares, o corte de verbas e a precarização do ensino; dos funcionários das universidades federais que enfrentam com o governo Lula 3 contra o achatamento salarial; dos trabalhadores dos Correios que lutam em defesa do caráter público da empresa e por direitos; servidores do INSS e do Ibama por reajuste salarial e melhorias na carreira.  Setores estes que poderiam muito bem serem acionados para lutas mais globais com uma linha política que responda às suas necessidades e os unifique contra a extrema direita, contra os ataques do Lula 3 e de qualquer governo, mas isso exige outra estratégia com a qual Arcary rompeu totalmente.

Segundo ele, nas eleições de 2022, “só foi possível vencer com uma tática ultra moderada” e, portanto, a linha que propõe para as eleições municipais em São Paulo que “pode nos salvar no balanço das eleições de 2024 é uma vitória de Guilherme Boulos. A relação política de forças pós-outubro depende, essencialmente, do desenlace em São Paulo, onde podemos vencer, mas está difícil”.

Quando o dirigente da Resistência recua historicamente em sua análise fica nítida a verdadeira natureza do seu discurso. Obviamente que partimos do fato de que Lula e PT transitaram nos anos 1980 de uma formação operária reformista e um dirigente sindical burocrático a um partido operário-burguês e um dirigente populista de massas que encabeçam governos de conciliação de classes desde o fim da década de 80. Mas não podemos concordar em absoluto com a explicação equivocada de que foi a moderação do discurso de Lula nas eleições de 2022 que produziu a sua vitória contra Bolsonaro.

Na verdade, a derrota de Bolsonaro só pode ser creditada a uma combinação de fatores ligados a uma reação eleitoral à ofensiva reacionária, à pandemia e aos ataques aos direitos democráticos que criaram uma reação “democrática” ao perigo golpista iminente. Ocorreu justamente o contrário do que diz Arcary, pois quando da disputa eleitoral de 2022, Lula ganha pontos na corrida eleitoral entre os mais pobres (trabalhadores que ganham até dois salários-mínimos) quando se compromete em ajustar o salário-mínimo acima da inflação[5]. Ou seja, ocorreu o mínimo da conexão com os problemas reais da classe trabalhadora, exatamente o que que não está conseguindo fazer Boulos em sua campanha, nem do ponto de vista político-programático e muito menos da mobilização.

O neopossibilista ao recuar um pouco mais na história deixa ainda mais evidente o seu rebaixamento de princípios e de estratégia. Arcary tenta remontar a etapa em que vivemos dizendo que houve uma “derrota histórica (…) [com a] restauração capitalista entre 1989/91”, que “os governos liderados pelo PT, entre 2003 e 2016, não são inocentes” e que “as derrotas acumuladas contam”.

Para ele, estamos em meio a uma etapa de derrota histórica que dura desde a década de 1980 que foi causada pela restauração capitalista dos Estados burocráticos. Em primeiro lugar, essas restaurações foram processos contraditórios porque o que foi restaurado ao capitalismo foram formações econômico-sociais baseadas na opressão e exploração. Em segundo lugar, o aparato estalinista mundial sofreu uma importante quebra, abrindo mais espaço para disputas da direção do movimento operário, estudantil e popular.

Assim, a restauração capitalista dos Estados burocráticos foi um processo histórico contraditório. Em grande medida, as rebeliões populares que começaram a surgir no final dos anos 1990 foram possíveis pela quebra da direção estalinista. É verdade que foi aprofundada uma crise de alternativa socialista entre as massas, mas essa já vinha se gestando desde décadas anteriores devido às derrotas impostas por essa excrescência histórica que é o estalinismo.

Arcary, do ponto de vista de sua análise histórica, está preso a uma espécie de tunel do tempo que sempre o leva ao início dos anos 1990, a uma etapa política que foi superada a mais de duas décadas. Depois da década de 80, já vivemos ao menos uma nova etapa de rebeliões e estamos entrando em uma de caráter muito mais grave de crises múltiplas, de tendências aos desequilíbrios e de polarização que reenergiza da época de guerras, crises e revoluções.

Esse dirigente e sua organização sempre retiram Lula e o PT das equações políticas para explicar os processos que levaram – e levam atualmente – ao avanço da extrema direita. Lula e o PT são corresponsáveis diretos pelo crescimento da extrema direita no Brasil devido à política de conciliação com a classe dominante em seus governos, de tirar das ruas os movimentos que dirige e de se afastar ou reprimir os processos mais radicalizados de luta dos trabalhadores e dos oprimidos. Por isso, dizer de forma cínica que os governos do PT “não são inocentes” frente ao avanço da extrema direita é um escárnio.

Na combinação que levou a ofensiva reacionária de 2015, a crise econômica de 2012 e o emblocamento de setores da burguesia com a extrema direita para impor níveis de exploração mais profundos e um regime político mais autoritário, o papel do PT e dos seus governos foi central. A política do PT, além de um reformismo sem reformas, sempre foi a de se colocar contra qualquer ação independente dos trabalhadores e oprimidos. Reprimiu as greves operárias de 2012, enfrentou o levante popular de junho de 2013 e cometeu estelionato eleitoral em 2015. Esse último fator foi decisivo para a ruptura do lulismo com as massas e facilitou a ofensiva reacionária, o impeachment de 2016, todas as contrarreformas que se seguiram, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro.

A linha de argumentação que abstrai o papel do lulismo na ofensiva reacionária apenas serve para justificar a incorporação orgânica da Resistência – bem como de outras organizações – ao lulismo, ao bicampismo burguês e ao neopossibilismo.

A outra parte da operação ideológica que está a serviço da capitulação às formações políticas burguesas é o argumento do perigo iminente do fascismo. Certamente que o neofascismo é um perigo e o seu combate deve ser central na atual situação política do Brasil e do mundo. Mas isso não se faz entrando no campo burguês democrático, renunciando ao programa dos trabalhadores e, muito menos, abandonando a estratégia da mobilização permanente. Todas as correntes que fizeram esse deslocamento político fracassaram, desmoralizaram dirigentes e militantes e liquidaram suas organizações para a perspectiva revolucionária.

Na recente conjuntura, a posição de entrar na frente ampla burguesa e depois no governo, não contribuiu um milímetro para derrotar Bolsonaro em 2022 e não vai contribuir em nada para derrotar a extrema direita em São Paulo agora. 

Quando fala que “a esquerda da esquerda, pode ocupar um lugar (…) Pode demonstrar que é um instrumento de luta útil no interior de espaços de Frente Única, se acompanhar, com paciência revolucionária, o movimento real de resistência ao neofascismo”, cria mais um amálgama porque confunde intencionalmente, tudo indica, a tática de frente única para lutar contra o fascismo com o invariavelmente desastroso ingresso em uma frente política com a burguesia.

Uma coisa é participar e estimular frentes de luta com setores de massas – esses são fóruns de todos os trabalhadores para lutar de forma defensiva ou ofensiva -, a outra coisa totalmente diferente é participar de frentes políticas com setores burgueses.

Chamar o voto em um candidato como Boulos para derrotar Nunes ou Marçal (filho bastado de Bolsonaro)[6] é uma tática necessária e provavelmente iremos adotá-la de maneira crítica no segundo turno em São Paulo, outra totalmente diferente é fazer parte orgânica dessa frente eleitoral burguesa de conciliação de classes.

Ao contrário do que nos diz, o ingresso do PSOL na frente burguesa ampla de Lula e Alckmin em 2022 apenas contribuiu para tirar as lutas das ruas e cedê-las de bom grado à extrema direita, algo que tem permitido ao bolsonarismo a franca retomada da ofensiva.

Lógico que a responsabilidade maior sobre os riscos corridos em 2022 é da direção histórica do PT e de Lula. Mas, os novos satélites do lulismo (Arcary, Boulos e a direção do PSOL) ao ingressarem na frente ampla, contribuíram para retirar a luta das ruas e para que a derrota eleitoral de Bolsonaro não se revertesse em uma mudança qualitativa da correlação de forças.

Assim, uma coisa é chamar o voto para derrotar a extrema direita, isso é tático, outra coisa é entrar em frentes politicas com a burguesia, isso significa a perda de princípios, de estratégicas e de táticas que possibilitam o enfrentamento real ao perigo que representa a extrema direita. Isso é um crime de lesa esquerda socialista. Não contribui para a luta tática ao neofascismo e atrasa o futuro da luta pelo socialismo.

Enfrentar a extrema direita sem capitular ao governo

As eleições municipais funcionam como um importante termômetro político nacional e, além disso, estabelecem pontos de apoio fundamentais para as eleições estaduais e a federal.

Essa disputa irá estender ou recuar a capilaridade local dos partidos e alianças em um imenso território nacional onde o voto sofre grande influência dos velhos e novos coroneis locais – agora realimentados com as emendas parlamentares cada vez mais vultosas e sem transparência que somadas ao fundo partidário totalizam mais de R$40 bilhões, cifra que está majoritariamente na mão do Centrão.

A ascensão eleitoral do lulismo entre 2003 e 2012 foi acompanhada de aumento significativa do número de prefeituras. Mas, após o início da ofensiva reacionária (2015) e o impeachment de Dilma (2016), a queda foi contínua e expressiva até 2020: no ano de 2012 o PT elegeu prefeitos em 630 municípios, 2016, em 256, e 2020, em 183.[7] Assim, as eleições municipais irão retroalimentar do ponto de vista institucional, e terá também importante influência na lua direta, o que podemos chamar de uma polarização assimétrica.

De um lado, temos a retomada da ofensiva ultrarreacionária com base no agronegócio, na maioria do Congresso e no poder de mobilização de rua. De outro, a velha fórmula do governo de conciliação de classe que oferece a normalização da democracia dos ricos, mais politicas neoliberais com pitadas de compensação social e e enfrentamento aos setores que saem à luta, como foi o caso dos recentes enfrentamentos do governo às greves dos trabalhadores das universidades federais.

Esse governo, além de ser formado por setores da burocracia, é composto por representantes diretos da burguesia, por isso não pode e não quer oferecer mínimas reformas que sirvam para mobilizar e fazer um enfrentamento à altura ao bolsonarismo – o que se reflete de forma praticamente universal nas candidaturas municipais ligadas ao lulismo.

Lula 3 e sua frente burguesa democrática oferecem nessa polarização um polo que obviamente não quer e não pode arregimentar setores de vanguarda ou de vanguardas de massas. Isso porque privilegia a mesma base social (burguesia) do polo da extrema direita, apoia-se nas mesmas instituições políticas do Estado burguês e tem os mesmos objetivos centrados na manutenção da ordem capitalista cada vez mais ultraliberal.

A questão que se coloca para a esquerda independente é que temos que enfrentar e superar essa polarização assimétrica, esse bicampismo entre o campo burguês reacionário representado pelo Centrão e pelo bolsonarismo, por um lado, e o campo democrático burguês em torno do Lula, que apenas oferece contrarreformas e algumas políticas mínimas de compensação social, por outro.

É preciso lutar para construir um campo de independência de classes, uma estratégia que ao, mesmo tempo que se enfrente com a extrema direita, não capitule ao campo burguês democrático e seus ataques aos trabalhadores e oprimidos. Mesmo em uma situação marcada por uma defensiva política dos explorados e oprimidos, não existe outra saída que não passe por estratégias como impulsionar a mobilização, organizações independentes e democráticas e partidos revolucionários, só assim podemos mudar correlação de forças…

Certamente que não se pode fazer política sem encontrar táticas adequadas à realidade e a uma justa análise de correlação de forças. Mas, essas não podem ser opostas aos princípios e estratégias socialistas como fazem setores que estiveram no campo do marxismo revolucionário, mas que nos últimos anos romperam com esse lugar e passaram de malas e bagagens para o oportunismo mais aberto. Essa operação so serve à extrema direita e à classe dominante.   

Nossa participação nessas eleições a partir da Bancada Anticapitalista[8], é provida do compromisso com os rumos da luta dos trabalhadores e dos oprimidos diante de uma conjuntura de retomada da ofensiva reacionária que conta com uma maioria significativa do Congresso e com os setores mais poderosos da classe dominante. Responsáveis pelas queimadas, por ataques a direitos históricos dos explorados e oprimidos, pela anistia ao golpistas e pela perseguição política que se dá em vários âmbitos – vide o caso do processo de cassação  de Glauber Braga.

Obviamente que não é com a linha política que acabamos de criticar que vamos derrotar o bloco do Centrão com o neofascismo em São Paulo e em outras cidades nestas eleições. Só vamos enfrentar a retomada da ofensiva da extrema direita com uma tática oposta pelo vértice ao que oferece o velho e o novopossibilismo.

Nesse sentido, a partir da Bancada Anticapitalista, considerando que existem importantes reservas de combatividade – não estamos em uma etapa de derrota histórica! -, fazemos uma campanha com a perspectiva de nos apoiar e impulsionar as lutas em curso. Pois, mesmo que fragmentadas, elas podem ganhar outras escalas com o agravamento da situação socioambiental em que vivemos. Atacamos sistematicamente todas as expressões da extrema direita em São Paulo e em outras cidades e nos diferenciamos pela esquerda de Boulos e de sua campanha burguesa de conciliação de classes. Esta  apresenta um programa tão dentro da ordem que não consegue estabelecer a mínima conexão com os setores explorados e oprimidos – vide as últimas pesquisas eleitorais em que Nunes tem 27% das intenções de voto entre os que ganham até dois salários mínimos. enquanto Boulos, que se fez como dirigente de um movimento que tem em sua base esse setor da classe trabalhadora, tem apenas 21%.[9]

Com uma campanha burguesa e com um programa que não pode ser chamado nem de desenvolvimentista, Boulos mesmo se ganhar, não vai significar uma vitória real contra a extrema direita. É por essa razão que no primeiro turno das eleições chamamos o voto em Altino que, apesar de uma candidatura minoritária, é independente e ligado à luta dos trabalhadores e oprimidos.

A Bancada Anticapitalista está colocando em marcha e chama Altino e as demais candidaturas independentes a construir uma campanha que impulsione lutas importantes de forma conjunta, como é o caso do ato contra as queimadas chamado para o dia 22 de setembro. Para avançar na tarefa de lutar efetivamente contra a retomada da ofensiva reacionária nestas eleições, precisamos, de forma urgente, articular as forças em torno desta candidatura para construir uma campanha unificada na classe trabalhadora e na juventude que responda às demandas imediatas e dê passos para construir uma frente política da esquerda independente após as eleições.

É para o combate independente dos patrões e da burocrática contra a retomada da ofensiva reacionária que está pronta a Bancada Anticapitalista, a militância da Juventude Já Basta! e da corrente Socialismo ou Barbárie.  

[1] Em “Um mundo mais perigoso, um mundo mais polarizado. Parte 1” em https://esquerdaweb.com/um-mundo-mais-perigoso-um-mundo-mais-polarizado-parte-1/

[2] Em “A revolução das monções” em https://esquerdaweb.com/a-revolucao-das-moncoes/

[3] Em “Brasil em chamas: crônicas de um ecocídio anunciado” em https://esquerdaweb.com/22800-2/

[4] Em https://esquerdaonline.com.br/2024/09/09/analise-de-conjuntura 

[5] Em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/datafolha-lula-amplia-vantagem-entre-os-pobres-apos-derrapada-de-bolsonaro-sobre-salario-minimo.shtml

[6] Fernando de Barros e Silva. O filho bastardo. Revista Piauí, 216

[7] Justamente o contrário ocorreu com a direita. Em 2020 pela primeira vez nenhum partido desde 1988 chegou à marca de mil prefeituras, papel que cabia principalmente ao velho PMDB, agora MDB. No entanto, em que pese a maior fragmentação de votos na direita, os partidos do “Centrão” (MDB, PSD, PP e DEM) em 2020 elegeram 43 prefeitos das 96 cidades com mais de 200 mil habitantes, incluindo 13 capitais. conquistaram 2591 municípios de um total de 5570. O PP passou a 681 prefeitos, DEM expandiu 70% e Avante e Podemos dobraram o número de vereadores. Veja dados em https://diplomatique.org.br/edicao/edicao-206/.

[8] Leia o manifesto programático da Bancada Anticapitalista em https://esquerdaweb.com/vote-e-lute-com-a-bancada-anticapitalista-em-sao-paulo/

[9] Em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2024/09/13/index.shtml