CHINA E ESTADOS UNIDOS

No dia de hoje a banca financeira internacional acordou em polvorosa com a notícia da forte desvalorização do Yuan pela China, em retaliação às medidas de taxação de 10% de cerca de 300 bilhões de dólares sobre produtos chineses de consumo bastante popular.

Tal medida de China, nas palavras de um diretor da XP investimentos: “Não vemos nenhuma possibilidade de tal decisão não colocar a economia mundial de joelhos, principalmente devido ao efeito rápido e virulento que uma mudança nas condições financeiras agora tem sobre a economia real (por causa da globalização, das mídias sociais e do aumento contínuo da relevância do consumo na matriz de crescimento do mundo desenvolvido).

A resposta de Trump, pelo Twiter, foi a de apertar a imposição de tarifas maiores ainda aos produtos chineses.

As reais razões e os transtornos que essa guerra comercial implica para todo o mundo, são tratados aqui, nesta tradução de um artigo de Michael Roberts, publicado em castelhano por Izquierdaweb no dia 31/07/2019 p.p.

José Roberto, 05/08/2019

O G-20 e a guerra fría tecnológica

Michael Roberts, 04/07/2019

A cúpula do G20 na semana passada em Osaka não alcançou nenhum acordo substancial na guerra comercial e tecnológica que os EUA está travando com a China. No máximo, uma trégua foi alcançada na escalada de tarifas e outras medidas contra empresas de tecnologia chinesas. Mas nenhum acordo duradouro foi alcançado. Porque se trata de uma guerra fria entre o poder econômico em relativo declínio nos EUA. e o perigoso novo rival pela supremacia econômica, a China. Como a última “guerra fria” entre os EUA e a URSS, pode durar uma geração ou mais antes que um vencedor surja. E as chances de ser os EUA diminuem quanto mais tempo durar a guerra fria.

No G20, Trump e Xi concordaram com uma trégua na escalada de medidas de retaliação e renovaram as “negociações”. Trump fez algumas concessões, permitindo que as empresas americanas voltassem a vender produtos para a Huawei. Portanto, presumivelmente, aplicativos do Google, Android, etc. reaparecerão nos dispositivos Huawei. E a China presumivelmente poderá comprar os processadores e chips de que precisa da Intel, Qualcom e Micron. Mas, não está claro se essas concessões incluem que a Huawei possa vender para empresas americanas (ou seja, redes 5G).

Mas, tão certo quanto a noite sucede ao dia, a guerra comercial será retomada em algum momento, porque as principais demandas dos Estados Unidos são simplesmente inaceitáveis para a China, a saber, que a China renuncie em competir com a tecnologia dos Estados Unidos e aceite a supervisão dos EUA de seus assuntos econômicos.

O G20 pode oferecer uma breve pausa para os mercados financeiros, mas não porá um freio na desaceleração geral que a economia mundial está experimentando, com a provável e cada vez mais próxima recessão na produção, comércio e investimento. As taxas de atividade em todo o mundo nos setores de manufatura e os chamados serviços já caíram para níveis não vistos desde o final da Grande Recessão em 2009.

Em junho, o índice de atividade global do JP Morgan sugere que o crescimento econômico mundial foi reduzido a uma taxa anual de 2,5% – um número que normalmente é considerado o limite de uma “velocidade de perda”, ou seja, abaixo dessa taxa pode-se cair em uma recessão global.

A realidade é que Trump não pode reverter o declínio constante da capacidade de produção industrial dos EUA nem o desafio da China à sua superioridade tecnológica. O emprego industrial nos EUA caiu de cerca de um quarto da população ativa em 1970 para 9% em 2015. Esse declínio não se deve a estrangeiros desagradáveis que traem acordos comerciais, como Trump gosta de dizer. A maioria dos estudos (não todos) exclui essa tese. Um estudo meu com outros autores conclui que a concorrência chinesa causou a perda de 985.000 empregos industriais entre 1999 e 2011. Isso é menos de um quinto da perda total de empregos industriais durante esse período e uma parte muito pequena do declínio industrial a longo prazo.

A principal razão pela qual Trump não pode trazer de volta para casa esses empregos da indústria de manufatura é porque eles foram perdidos em grande parte devido ao sucesso da “eficiência” nos EUA. Nas últimas três décadas e meia, os fabricantes cortaram sete milhões de empregos, produzindo mais coisas do que nunca. O Instituto de Política Econômica (EPI) observa emThe Manufacturing Footprint and the Importance of U.S. Manufacturing Jobs que “para entender por que tantos empregos desapareceram, a resposta com os dados sempre repetindo-se é que não tem sido o comércio a causa, mas antes de tudo a tecnologia… Oitenta por cento dos empregos perdidos não foram substituídos por trabalhadores na China, mas por máquinas e pela automação. Esse é o principal problema se as tarifas desaparecerem. O que se descobre é que as empresas americanas estão em condições de substituir seus trabalhadores mais caros por máquinas ”.

O que esses estudos revelam é o que a teoria econômica marxista disse muitas vezes. Sob o capitalismo, o aumento da produtividade do trabalho é o resultado da mecanização e da redução de mão de obra, isto é, através da redução dos custos laborais. Marx explica no Capital que essa é uma das principais características da acumulação capitalista – o viés pró-capital da tecnologia – algo que continua ignorando a teoria econômica convencional até hoje.

Marx explicou isso de maneira diferente da teoria econômica convencional. O investimento no capitalismo é feito com fins lucrativos, não para aumentar a produção ou a produtividade como tal. Se o benefício não aumenta através de mais horas de trabalho (mais trabalhadores e jornadas mais longas) ou através da intensificação do esforço (velocidade e energia – tempo e movimento), a produtividade do trabalho só pode aumentar graças à uma melhor tecnologia. Portanto, em termos marxistas, a composição orgânica do capital (o valor das máquinas e instalações em relação ao número de trabalhadores) deve aumentar continuamente.

Apesar do que a teoria econômica convencional do “livre mercado” acredita, historicamente, tem sido o gasto público que sustentou o desenvolvimento de tecnologias não comprovadas. Geralmente se tem produzido à força, sendo a inovação em períodos de guerra um notável motor de desenvolvimento, levando a grandes avanços em materiais, produtos e processos. A comercialização do motor a jato, dos foguetes, do radar e de toda a informática moderna teve sua origem na Segunda Guerra Mundial, e a Guerra Fria e a corrida espacial os desenvolveram, desencadeando a atual era tecnológica nos anos 90.

A corrida espacial foi importante, pois ambos os lados da Guerra Fria usaram os cientistas e engenheiros alemães capturados para impulsionar seus projetos de foguetes. Isso culminou com o programa Apollo do presidente Kennedy. Os EUA foram derrotados pelos soviéticos ao enviar o primeiro homem ao espaço, mas reagiram dedicando imensos recursos para alcançá-lo. No auge da corrida espacial, quase 400.000 pessoas participaram, com a colaboração de 20.000 empresas industriais e universidades privadas. Não apenas produziu inúmeras inovações – grande parte da tecnologia necessária para alcançar a lua não existia quando o programa foi anunciado – mas também criou grupos de novas indústrias de alta tecnologia nos EUA, a partir das redes que haviam começado emergir durante a guerra.

Isso acelerou o desenvolvimento de inúmeras tecnologias de computação, como circuitos integrados, transferência de dados em massa e software de sistemas. Estas foram as tecnologias de ponta que impulsionaram o desenvolvimento da IBM e da HP como gigantes de computadores. Outros engenheiros do programa fundaram a Intel e muitas outras empresas de tecnologia de ponta. Sem a Apollo, é improvável que o Vale do Silício se tornasse o grande poder tecnológico e econômico que se dá como assentado atualmente.  Apollo também promoveu outras inovações de negócios mais amplos, incluindo algumas das quais os consultores experimentam desde então, como o planejamento estratégico, elaboração de orçamentos, bem como novos processos aprimorados de gerenciamento e tomada de decisões.

Mas, à medida que a lucratividade do setor capitalista caiu (desde meados da década de 1960), os impostos foram reduzidos e, portanto, os gastos com inovação financiados pelo Estado diminuíram drasticamente. A falta de investimentos estatais tornou o progresso tecnológico americano cada vez mais dependente do investimento do setor privado. O que não ocorreu automaticamente. O setor capitalista dos Estados Unidos, como os das principais economias capitalistas, optou por transferir sua produção para o exterior em busca de mão-de-obra barata e depois exportá-la para os Estados Unidos. Primeiro com investimentos na América Latina (especialmente no México) e depois na China.

Houve uma exceção: o setor de alta tecnologia dos EUA Os avanços tecnológicos dos Estados Unidos dependem agora inteiramente do investimento privado. Tudo nos Estados Unidos agora depende dos FAANGs (Facebook, Apple, Alphabet, Netflix, Google) e Microsoft. Essas empresas investem sozinhas incríveis 80% em inovação. Este número corresponde quase a todos os gastos públicos em educação, transporte, ciência, espaço e tecnologia. Este volume de gastos supera o programa Apollo, cujo investimento em uma década chegou a aproximadamente US$ 150 bilhões de hoje. Ou seja, menos de dois anos do gasto total atual das FAANGs.

O setor de alta tecnologia dos EUA é o último bastião da superioridade produtiva nos Estados Unidos. O banco de investimentos Goldman Sachs apontou que, desde 2010, esse setor é o único em que os lucros corporativos cresceram. E isso, de acordo com a Goldman Sachs, é inteiramente devido a empresas de supertecnologia. Os benefícios globais, independentemente das empresas de tecnologia americanas, são apenas moderadamente maiores do que antes da crise financeira; Enquanto isso, os benefícios da tecnologia cresceram rapidamente, refletindo seu impacto global.

Se a China for capaz de competir com as FAANGS, o retorno sobre o capital dos EUA cairá significativamente e, com isso, o investimento, o emprego e a renda nos Estados Unidos na próxima década. Esta é a razão para a guerra comercial e tecnológica e porque vai continuar.