China: A situação da nova classe trabalhadora migrante

Capitalismo Burocrático| Vida laboral e suas condições: os trabalhadores migrantes chineses seguem enfrentando jornadas extensas e precárias condições de trabalho enquanto carecem de uma representação real

Artigo publicado no Globalization Monitor, dezembro de 2019

Os trabalhadores migrantes das zonas rurais da China têm sido a pedra angular do crescimento econômico chinês desde o início da reforma. Rigorosamente explorados, com baixos salários, más condições de trabalho e direitos limitados, permitindo que a ascensão da China se tornasse a segunda maior economia do mundo, sua situação tem sido amplamente documentada. Desde meados de 1990, as lutas dos trabalhadores migrantes conquistaram melhorias em sua situação econômica, na maioria das vezes por ganhos salariais. Por sua vez, uma nova legislação[1] foi introduzida para proteger os direitos dos trabalhadores, a qual teoricamente ofereceria maior proteção, embora muitas leis e regulamentos tenham sido pobremente implementadas e deficiências significativas permaneçam.

Apesar destas deficiências, alguns mantiveram o crescimento do emprego e dos salários na China como uma conquista do processo de desenvolvimento chinês, ao mesmo tempo em que minimizaram ou ignoraram a falta de direitos trabalhistas, as más condições de trabalho e a crescente desigualdade. Um artigo publicado pela mídia oficial em 2018, por exemplo, pinta um quadro cor-de-rosa das realizações de trabalho do governo chinês, argumentando que

“A qualidade do emprego também continuou a melhorar, e a produtividade do trabalho e os níveis salariais mantiveram um rápido crescimento sincronizado. Nos últimos cinco anos, a renda dos residentes urbanos e rurais cresceu em média 7,4% ao ano, superando a taxa de crescimento econômico, e as condições de trabalho continuaram a melhorar”[2].

Por sua vez, o economista Dic Lo se debruçou sobre o crescimento dos salários reais, incluindo um crescimento anual de 9,4% do salário real dos trabalhadores migrantes entre 2007 e 2017, questionar as idéias daqueles que falam da necessidade de mudar o status quo na China para melhorar a situação dos trabalhadores chineses e implicar que tais idéias são supérfluas, senão nocivas [3].

Entretanto, nossa investigação, que inclui uma pesquisa com 651 trabalhadores migrantes chineses[4], mostra que apesar do crescimento dos salários reais, o problema do bem-estar dos trabalhadores não se limita aos salários. Devemos também considerar seriamente as condições de trabalho, incluindo as horas de trabalho, ambiente de trabalho, exposição a riscos ocupacionais e o direito de formar um sindicato. Nossa pesquisa mostra que existem autênticos problemas relativos às condições de trabalho e, em alguns aspectos, há poucos sinais de melhora.  Descobrimos que, embora muitos dos trabalhadores migrantes indicaram que os níveis salariais haviam aumentado ao longo de suas vidas de trabalho, muitos estavam lutando para manter os salários que recebiam. Além disso, muitos trabalhadores ainda tinham que aguentar jornadas extremamente longas, enfrentando, por sua vez, condições de trabalho ruins ou um ambiente de trabalho poluído e a falta de representação efetiva em seus locais de trabalho. Portanto, independentemente do debate sobre se o sistema existente e seu processo de desenvolvimento é uma opção desejável para os trabalhadores, somos céticos em relação aos quadros cor de rosa da situação dos trabalhadores, como o pintado por Dic Lo e os meios oficiais, que ignoram as dificuldades reais ainda enfrentadas por muitos trabalhadores chineses. 

Salarios

76% dos trabalhadores relataram salários abaixo de 5000 yuan por mês [aproximadamente 3.800 reais], dos quais 37% ganharam entre 4000-4999 yuan, 36% 3000-3999 yuan e os 3% restantes ganharam abaixo de 3000 yuan. 24% ganhavam mais de 5000 yuan por mês, mas, com exceção de cinco trabalhadores, menos de 8000 yuan. O salário mais baixo reportado foi para um trabalhador de posto de gasolina em Huizhou que ganhava 1500 yuan por mês. Enquanto o salário mínimo na China é diferente entre províncias e cidades, todos os trabalhadores pesquisados relataram ganhos equivalentes ou acima do salário mínimo para um emprego em tempo integral na cidade onde trabalhavam. Entretanto, muitos trabalhadores pareciam ter dificuldade para distinguir o salário básico das horas extras, porque é realmente difícil comparar o salário básico dos trabalhadores com os níveis do salário mínimo. Complicando ainda mais a questão, os salários de alguns trabalhadores também foram trabalho por peça. Uma trabalhadora de uma fábrica de vestuário, que tinha mais clareza sobre o cálculo do seu salário, nos disse que “tenho garantido um salário de 2000 yuan, que recebo mesmo que esse número não seja alcançado na taxa por peça, mas com a taxa por peça eu normalmente ganho 3000-4000 yuan por mês”.

Independentemente da relação com os níveis do salário mínimo, que de qualquer forma foram amplamente criticados como sendo muito baixos, é claro que havia muitos trabalhadores que lutavam com o dinheiro que ganhavam e complementavam seus salários básicos trabalhando muitas horas extras (ver abaixo). 17% dos trabalhadores pesquisados disseram que seus salários não eram nem mesmo suficientes para cobrir suas necessidades básicas, enquanto entre os trabalhadores que disseram estar geralmente insatisfeitos com sua situação de trabalho, o baixo salário era uma das razões mais freqüentes. Ao dizer sobre as dificuldades causadas pelos baixos salários, um trabalhador refletiu que “minhas maiores dificuldades agora são as pressões econômicas. Gostaria que meu salário fosse mais alto para que eu pudesse ganhar mais dinheiro e que meus filhos pudessem ter vidas melhores”. 

Jornadas de trabalho

As longas jornadas de trabalho foram uma questão importante para os trabalhadores. Seja para complementar os baixos salários (é comum que os trabalhadores migrantes na China queiram trabalhar longas horas a fim de aumentar estes baixos salários) ou por causa das exigências do local de trabalho, muitos trabalhadores relataram trabalhar longas horas, incluídas horas extras. 93% dos trabalhadores pesquisados trabalhavam geralmente mais de 50 horas por semana e 27% trabalhavam mais de 70 horas. As jornadas de trabalho mais longas relatadas foram as de dois trabalhadores que disseram trabalhar normalmente entre 90 e 100 horas por semana. Tantas horas de trabalho, muitas vezes em grave violação dos direitos trabalhistas da China, foram observadas tanto em empresas privadas de investimento estrangeiro quanto em empresas estatais.

Gráfico onde são colocadas barras representando o número de horas trabalhadas por semana

De acordo com o artigo 36 da Lei Trabalhista da China, por exemplo, os trabalhadores não devem trabalhar mais de 8 horas por dia e não mais do que uma média de 44 horas por semana. É permitido algum trabalho extra, entretanto, o artigo 41 da mesma lei estabelece claramente os limites das condições e do número de horas que podem ser trabalhadas: 

O empregador pode prolongar o trabalho para as necessidades da produção ou de negócios após consultar o sindicato e os trabalhadores. As horas de trabalho ao serem estendidas, em geral, não devem exceder uma hora por dia, ou não mais de três horas por dia se tal extensão for solicitada por razões especiais e sob a condição de que a saúde física dos trabalhadores esteja garantida. O tempo de trabalho a ser estendido não deve, entretanto, exceder 36 horas por semana.

Portanto, o número de horas relatadas por muitos dos trabalhadores pesquisados, em geral, excedeu significativamente os limites legais de horas extras, com alguns excedendo o limite máximo mensal em apenas uma semana. Provavelmente não surpreende que muitos trabalhadores tenham dito que estavam insatisfeitos com sua situação de trabalho principalmente porque faziam muitas horas extras, não descansavam, ou sentiam que “o trabalho é muito extenuante”.

Trabalhando longe de casa

Os trabalhadores migrantes que pesquisamos incluíam tanto migrantes de longa como de curta distância [5]. Também conversamos com um grupo de trabalhadores que antes haviam trabalhado longe de suas casas, mas que retornaram depois que sua terra foi solicitada para o desenvolvimento industrial, o governo havia construído casas de reassentamento para eles e agora podiam trabalhar, embora as vezes como trabalhadores ocasionais, na nova zona industrial próxima. Poder trabalhar perto de suas casas foi algo que esses trabalhadores expressaram satisfação. “Na minha idade, é bom ter um emprego perto de casa”, disse um trabalhador de 50 anos. Outro trabalhador comentou que estava satisfeito com a situação porque “não importa onde você vai trabalhar, mas é melhor estar mais próximo de sua família para poder ir para casa e vê-los”. Ao mesmo tempo, entre aqueles trabalhadores distantes em uma província diferente, a distância de sua casa e família foi algo que alguns lamentaram. Um trabalhador da fábrica de Dongguan, que era originalmente de Shichuan, disse que “a coisa mais difícil é não estar com as crianças… Eu gostaria que toda a família pudesse estar junta”.

Seguro médico e social

Como foi destacado em nosso balanço anterior, a poluição industrial era um grande problema que muitos trabalhadores migrantes enfrentavam tanto em seu ambiente de trabalho quanto em sua habitação. Aqueles que vivem em dormitórios de fábricas e áreas industriais sofreram com o aumento da exposição a poluentes em seus locais de moradia. No trabalho, os riscos de impactos nocivos sobre o trabalhador eram às vezes exacerbados pela negligência da empresa em proteger os trabalhadores dos riscos à saúde. Em muitos casos, os trabalhadores não foram devidamente informados sobre os perigos ou não foram fornecidos equipamentos de proteção adequados. Alguns tinham contraído doenças ocupacionais.

Foi visto, aliás, que o direito dos trabalhadores migrantes ao seguro saúde também foi frequentemente violado, com apenas 53,6% dos trabalhadores pesquisados possuindo os cinco tipos de seguro saúde exigidos por lei. Posteriormente, o acesso à aposentadoria tem sido uma grande preocupação para os trabalhadores migrantes próximos à idade de aposentadoria [7]. Outra preocupação de alguns dos trabalhadores mais velhos era que enquanto a maioria dos entrevistados (94%) tinha um contrato de trabalho, àqueles que já tinham atingido a idade da aposentadoria eram muitas vezes oferecidos contratos muito mais curtos e, portanto, menos seguros.

A representação nos sindicatos

49% dos trabalhadores pesquisados disseram que seu local de trabalho tinha um sindicato e 51% não estavam cientes da existência de seu sindicato.

Enquanto 20% disseram que não havia sindicato em seus locais de trabalho, 31% disseram que não sabiam se havia ou não um sindicato. Ao mesmo tempo, os trabalhadores de uma mesma empresa as vezes davam respostas diferentes ou contraditórias sobre a existência de seu sindicato; enquanto alguns disseram que havia um sindicato, outros no mesmo local responderam que não sabiam se havia ou não um sindicato. Isso pode sugerir uma eficácia sindical limitada ou falta de relevância entre os trabalhadores dos lugares onde eles existem.

Quando perguntados sobre sua opinião sobre a importância de um sindicato em seu local de trabalho, 40% dos trabalhadores disseram que achavam que um sindicato seria muito útil (4%) ou útil (36%), enquanto 24% disseram que achavam que um sindicato seria inútil (23%) ou muito inútil (1%). Deve-se apontar, no entanto, que 36% dos trabalhadores não responderam a pergunta ou disseram que não sabiam. Isto pode não ser surpreendente considerando a alta porcentagem de trabalhadores que não tinham ou não tinham certeza se um sindicato existia em seu local de trabalho, e potencialmente indica um grau de ineficácia maior do que as estatísticas parecem sugerir a princípio. No entanto, aqueles que disseram que havia um sindicato em seu local de trabalho, a maioria (72,8%) indicou que ele era útil ou muito útil, enquanto 25% pensaram que era inútil ou muito inútil.

Em entrevistas posteriores, quando perguntados sobre o papel do sindicato em seus locais de trabalho onde se sabia que existia um, alguns trabalhadores disseram que achavam que tinha  “alguns benefícios”. Entretanto, quando perguntados sobre o que o sindicato estava fazendo, disseram que estava organizando “algumas pequenas atividades” ou “excursões pelo lugar”.

Alguns trabalhadores fizeram comentários mais críticos. Um trabalhador do varejo “Normalmente, se alguém tem um problema que não vai ao sindicato, é uma perda de tempo que não resolve os problemas”. Enquanto isso, de acordo com os trabalhadores de uma fábrica de calçados onde a má ventilação e os maus cheiros no espaço de trabalho tinham feito alguns se sentirem mal, “Fomos procurar o sindicato antes por causa do mau cheiro na oficina, mas eles nos disseram que não tinham nada a ver com isso”. Além disso, mesmo onde existia um sindicato, ele não representava necessariamente todos os trabalhadores no do lugar. Um trabalhador ocasional em uma fábrica de automóveis em Chongqing, por exemplo, destacou o problema da falta de representação dos trabalhadores eventuais. “Existe um sindicato, mas ele não se importa conosco. Não somos membros do sindicato porque somos todos trabalhadores ocasionais e o sindicato só se preocupa com os trabalhadores regulares, por isso não sei se é útil ou não”

Mudanças ao longo da vida laboral

Ao discutir mudanças ao longo de suas vidas de trabalho, muitos trabalhadores comentaram que viram uma melhoria em seus salários, embora geralmente estivessem menos seguros sobre suas condições de trabalho. De acordo com um trabalhador de uma fábrica de calçados em Dongguan, “em termos gerais, há progresso; os salários todavia são bons, mas as condições de trabalho são as mesmas. Sempre foi como se… e as empresas estivessem mais distantes do que antes“. Outro trabalhador comentou que, “Em geral, houve progresso nos aspectos trabalhistas, os salários são mais altos do que antes, mas as condições de trabalho e outras coisas não mudaram muito. Eu realmente não sei. Eu trabalho na fábrica todos os dias e raramente saio, portanto não sei”.

Um trabalhador migrante que começou a trabalhar em 1993 disse que, “no início, eu fazia alguns dos trabalhos mais desagradáveis e difíceis, mas depois eu tinha a energia, de modo que geralmente eu podia conseguir um emprego”. Entretanto, devido ao esforço físico durante sua juventude, seu quadril agora estava lesionado e ele não podia mais usá-lo. Como resultado, ele se aposentou cedo e voltou para o campo.

Um trabalhador da construção civil descreveu como ele se tornou um trabalhador migrante pela primeira vez em 1990. “Naquela época, para se tornar um trabalhador migrante, você precisava conseguir contatos (guaxi). Meus parentes me ajudaram a conseguir um emprego na venda de carvão em Yichang. Depois disso, o negócio não estava indo muito bem e, a partir de então, saí para trabalhar em todos os lugares”. Agora, ele trabalha principalmente na área de Jiangsu ou Zhejiang, demolindo casas. Ele disse estar descontente com sua situação porque “o barraco [o lugar onde vivem os trabalhadores] é muito simples e eu tenho que me mudar com freqüência. Quando um trabalho é concluído, tenho que me mudar para outro lugar”. 

Outro trabalhador, que se tornou um trabalhador migrante pela primeira vez em 1995 e que recentemente ganhou um bônus de ouro por ser um dos trabalhadores mais antigos da fábrica, falou sobre sua mudança de local e trabalho ao longo de sua vida: “No início, era difícil para os homens encontrarem um emprego. Fomos para Shaanxi para trabalhar nas minas de carvão, mas era muito perigoso e freqüentemente ocorriam acidentes, por isso vim trabalhar em Guangdong mais tarde”. Na época da pesquisa ele estava trabalhando em uma fábrica de vidro em Dongguan.

Resumo

Nossa pesquisa descobriu que, apesar das tendências de aumento salarial nas últimas duas décadas, muitos dos trabalhadores migrantes da China continuam a enfrentar ambientes de trabalho difíceis e violação de seus direitos trabalhistas. Isso inclui horas extras de trabalho que violam os limites legais, ambientes de trabalho e de vida poluídos e perigosos, e a falta de uma representação eficaz dos trabalhadores para ajudar a melhorar sua situação. Mesmo quando se trata de salários, a baixa remuneração ainda é um problema. Enquanto alguns relataram dificuldades em conseguir pagar as contas, o baixo salário também contribui para a disposição de muitos trabalhadores de trabalhar horas excessivamente longas. Carecendo de seguridade financeira e com um serviço social inadequado, as perspectivas não são nada boas para muitos trabalhadores que se aproximam da idade da aposentadoria.

Artigo publicado originalmente em Globalization Monitor: https://www.globalmon.org.hk/node/1694

Publicado no portal IzquierdaWeb em 27/07/2020

Tradução para português: Gabriel Mendes

Notas

[1] A Lei de Contratos de Trabalho de 2008 (emendada em 2013) e a Lei de Seguridade Social de 2011 são exemplos notáveis.

[2] O desenvolvimento dos meios de subsistência das pessoas é a base de uma boa vida para as pessoas na nova era. Cheng Jie. Cctv. 9 de março de 2018.    http://opinion.cctv.com/2018/03/09/ARTItPBgv53tsgVGAwWlIOhT180309.shtml

[3] Ver: “salários chineses” têm um significado muito importante. Dez Lo. Mingpao. 5 de março de 2019

[4] A pesquisa foi realizada entre junho de 2018 e janeiro de 2019 como parte da pesquisa sobre a vida dos trabalhadores migrantes internos de primeira geração e de longo prazo na China. Os trabalhadores migrantes trabalhavam em cinco cidades, incluindo Dongguan e Huizhou na província de Guangdong (27%), Fuzhou na província de Fujian (25%), Yangzhou na província de Jiangsu (25%) e o município de Chongqing (23%). A maioria dos entrevistados eram trabalhadores de fábrica, trabalhando na fabricação de automóveis e motocicletas, eletrônica, calçados, confecções e fábricas de vidro; enquanto outros trabalhavam na logística, no setor de serviços ou como trabalhadores da construção civil.

[5] Trabalhadores migrantes rurais da mesma província ou região.

[6] Ver: “Os trabalhadores migrantes chineses sofrem os efeitos da poluição em seu ambiente de trabalho e de vida”. Monitor de Globalização 2019. Disponível em: https://www.globalmon.org.hk/node/1493

[7] Ver: “Os trabalhadores migrantes carecem de segurança quando se aproximam da aposentadoria por causa da previdência social fraca. Globalização Monito 2019. Disponível em: https://www.globalmon.org.hk/node/1692