As batalhas decisivas estão por vir
POR ANTONIO SOLER
2017: avanço da ofensiva reacionária e resistência
Foi imposta a partir do impeachment de Dilma Rousseff (manobra palaciana reacionária finalizada em 31 de agosto de 2016) uma situação política em que a correlação de forças se colocou de forma claramente desfavorável para os trabalhadores. Podemos nessa situação localizar ao menos três conjunturas diversas: uma claramente desfavorável foi aberta logo após o impeachment que culminou com a imposição da “PEC da Morte”[1] em 15 de dezembro de 2016, outra com a onda de mobilizações em março de 2017 contra a reforma da previdência e que se estendeu até a greve geral de 28 de abril e, por último, a marcada pela retomada da ofensiva conjuntural com a aprovação sem resistência da reforma trabalhista em 11 de julho até movimentação para se impor a reforma da previdência, conjuntura essa na qual podemos dizer que vivemos até agora.
No primeiro semestre de 2017 (entre março e abril principalmente), o governo perdeu o debate em torno da reforma da previdência e foi obrigado a recuar taticamente da proposta com as mobilizações massivas. Mas, logo em seguida a burocracia adiou por dois meses a continuidade da mobilização contra as reformas, marcando a próxima greve geral só para o dia 30 de junho, negociou com o governo o imposto sindical e não deu uma verdadeira batalha contra a “reforma trabalhista”. Esse contexto possibilitou ao governo aprovar a contrarreforma trabalhista, a minirreforma política[2] e, de quebra, livrar-se da segunda denúncia da Procuradoria Geral da República por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Quando o governo coloca novamente a “reforma” da previdência na pauta em outubro/novembro de 2017, já demonstra que depois de ter gasto parte importante do seu capital político institucional (liberação de orçamento para emendas parlamentares, nomeações e etc.) para evitar o processamento, foi obrigado a adiar a votação da “reforma” da previdência para fevereiro de 2018. Aí, neste momento, a burocracia comete mais uma traição, desmarca a greve geral que tinha sido convocada pelas principais centrais para o dia 5 de novembro alegando que o governo havia retirado a proposta de “reforma” e, portanto, não fazia mais sentido manter a greve. Ou seja, em mais um momento de recuo do governo, desperdiça a possibilidade de começar a impor outra correlação de forças em nome da sua estratégia de desgastar Temer em vez de derrubá-lo.
Classe trabalhadora não está derrotada
A situação política posta no Brasil desde o impeachment de Dilma pode parecer ensejar um paradoxo. Como pode um governo ilegítimo, com uma impopularidade recorde e eivado de denúncias de corrupção impor ataques de dimensões históricas como os que brevemente elencamos acima? No entanto, não há nenhum mistério insondável na atual situação do Brasil e nem que entramos em um cenário que não possamos indicar quais são as dinâmicas mais gerais da luta de classes. Esforços de compreensão da realidade têm como principal objetivo indicar as principais tendências da luta de classes, mesmo que de forma aproximativa e inexata, do contrário o marxismo não serviria para muita coisa.
Poderíamos trabalhar com a hipótese de que a situação posta desde 2016 só se explica porque a classe trabalhadora no Brasil perdeu sua capacidade de resistência e o ciclo de rebelião popular aberto em 2013 haveria se esgotado totalmente, o que nos mergulharia em um novo ciclo político reacionário com duração de anos. Mas não pensamos que essa seja a principal hipótese para as vitórias, até aqui, da ofensiva reacionária.
O que se denomina correntemente na esquerda como “golpe” só foi possível por uma série de respostas reacionárias dadas, em primeiro lugar, pelo PT diante de acontecimentos políticos fundamentais desde 2013, ou seja, pela unidade com a burguesia em torno da mais dura repressão ao levante nacional estudantil contra o aumento das passagens em 2013, contra a Copa em 2014 e pelo chamado “estelionato eleitoral” (medidas econômicas e políticas contrárias às propostas da campanha eleitoral de Dilma em 2014) e pelas manobras e traições quando o movimento poderia reverter a correlação de forças. Dessa forma, a força de Temer se encontra no fato de que é fruto de uma manobra reacionária palaciana que só pode ser perpetrada pela capitulação do governo de colaboração de classes do PT (Dilma) e da burocracia que o apoiava (lulismo).[3]
Outro elemento não menos importante é que, apesar de dividida em relação à conveniência da continuidade de Temer no governo, a unidade da classe dominante em torno da necessidade imperiosa de aplicar as contrarreformas é unânime. Além disso, o governo conta com uma maioria no Congresso alinhada com as medidas regressivas, maioria que se pode manter em meio à crise política vivida desde então (processo de impeachment) porque é financiada eleitoralmente pela grande burguesia. O governo tem vários instrumentos para garantir a compra de votos, além disso, a eventual queda do governo pelas denúncias de corrupção poderia afetar diretamente um número considerável de congressistas.[4]
Considerando esses fatores, pensamos que a força deste governo reside na unidade da classe dominante e na traição da burocracia e não no apoio popular, evidentemente. O fato de não ter sido fruto de uma eleição direta é contraditório. Não contar com apoio popular permitiu ao governo que tivesse mãos “limpas” para impor os seus ataques. Porém, esse mesmo elemento, quando a classe compreende o que está em jogo, permite massificar a luta e refrear o governo – fato esse já demonstrado ao menos duas vezes em 2017 -, mesmo enfrentando as odiosas manobras e traições da burocracia que impedem objetivamente que a classe avance e derrote Temer e suas contrarreformas.
Ofensiva e contradições da burguesia
Apesar de sua ofensiva, as contradições que tem que enfrentar a classe dominante não são menores e demonstram a profundidade e extensão da crise política vivida nos últimos anos. Mesmo estando na ofensiva política, a classe dominante não conseguiu, até agora, forjar uma candidatura que possa a partir das próximas eleições presidênciais dar continuidade ao seu projeto. Assim, diante da possível eleição de um candidato que não coadune diretamente com o neoliberalismo puro e duro estão em curso duas manobras.
A primeira está ligada ao impedimento de Lula se candidatar nas eleições a Presidente da República. O TRF-4 antecipou o julgamento de Lula em segunda instância por corrupção passiva e lavagem de dinheiro para o dia 24 de janeiro com o objetivo de que todos os prazos de recursos se esgotem antes para que Lula fique impedido de candidatar-se, pois candidatos condenados em transitado e julgado não podem se candidatar a nenhum cargo eletivo. Já a segunda manobra é a proposta que está sendo ventilada de uma emenda constitucional que visa esvaziar parte dos poderes da Presidência da República, o que está sendo chamado de “semipresidencialismo”. Com isso, se eleito um candidato de fora do atual bloco de poder não teria condições institucionais de reverter nenhuma das medidas regressivas impostas nos últimos anos.
Essas duas manobras se explicam porque a ofensiva reacionária desbancou o lulismo do governo federal através do impeachment, mas, contraditoriamente, o fortaleceu entre setores de massas. Apesar de Lula/PT ter se queimado nas classes médias com as inumeráveis denúncias de corrupção, mantém grande inserção nas camadas mais populares devido a rápida regressão nas condições de vida nos últimos anos (inclusive durante o governo Dilma) e aparece como candidato favorito nas eleições de outubro.
Já as forças burguesas tradicionais têm dificuldade de encontrar um candidato “razoável’ em condições de disputar com chances de ganhar de Lula. Parece que finalmente Alckmin surge como concorrente preferencial da grande burguesia, mas se não decolar até março será descartado. Por outro lado, temos uma novidade política eleitoral de massas que vem pela extrema direita com Bolsonaro, candidato que chega a algo em torno de 20% das intenções de voto e pelas pesquisas atuais perderia apenas para Lula no segundo turno.
Em relação a esse tema. pensamos que está demonstrado que a coalizão governista no qual Lula e o PT estavam à frente até 2016 não apenas deu continuidade, mas aprofundaram as relações espúrias entre o Estado e a classe dominante. Megaesquemas de corrupção foram montados para que o grande capital tivesse inúmeras vantagens e exorbitantes lucros a expensas dos cofres públicos. O mais grave é que, além disso, esses governos, no que pese as políticas de compensação social, foram governos burgueses de colaboração de classes que governaram contra os interesses dos trabalhadores desde 2002, como já apontado anteriormente. Porém, a condenação de Lula em primeira instância pela suposta compra do apartamento no Guarujá como forma de pagamento de propina, que o condenou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, sustenta-se apenas em indícios e tem um claro objetivo político de implodir a candidatura de Lula e fortalecer a ofensiva reacionária.
Desta forma, pensamos que apesar de considerar que Lula e o PT são corresponsáveis pela atual situação política em que vivemos e por ataques terríveis contra os trabalhadores, deve ser julgado politicamente e não por um judiciário funcional à ofensiva reacionária, apesar das contradições em relação aos problemas que tem criado ao governo. Assim, uma condenação em segunda instância só serve, nesse contexto em que Temer, Aécio e toda a máfia de políticos burgueses permanecem sem julgamento está a serviço da ofensiva reacionária.
Não confundir defesa democrática com apoio político
Diante do exposto, mesmo sendo inimigos inconciliáveis do lulismo e lutarmos pela sua superação definitiva enquanto direção do movimento de massas no Brasil, defendemos o direito democrático de Lula ser candidato a Presidente para que possamos disputar a consciência das massas no processo eleitoral e nas instâncias do movimento sem a interferência dessa “justiça” a serviço dos de cima, visto que sua condenação sem provas definitivas apenas contribuiu para fortalecer a ofensiva reacionária ora em curso e para atrasar ainda mais o objetivo de dotar a classe trabalhadora de uma direção política independente e classista.
Mas essa defesa do direito democrático de se candidatar não pode se confundir em momento algum com a capitulação política frente ao lulismo. Essa é uma defesa condicional que deve ser feita de forma simultânea com uma forte denúncia em relação à responsabilidade dessa corrente e do seu maior expoente em relação a situação política na qual vivemos hoje e a mais ampla exigência que de fato mobilizem contra os ataques do governo Temer. Do contrário, apenas fortalecemos a narrativa petista de que são eles os representantes legítimos da classe trabalhadora, de que faziam um governo voltado aos seus interesses, que lutaram verdadeiramente contra as forças reacionárias, mas acabaram sofrendo um “golpe” e que agora a tarefa central da classe trabalhadora é garantir a eleição de Lula[5] para um terceiro mandato para presidente em outubro…
A nossa narrativa enquanto partido é totalmente distinta e antagônica a essa. Identificamos que o lulismo tem responsabilidade – não na mesma medida que o bloco reacionário que tomou o governo central, certamente – direta sobre a situação em que vivemos devido a seu projeto de colaboração de classes, a capitulação diante da ofensiva reacionária e a estratégia de priorizar as eleições burguesas para compor um novo governo de colaboração de classes em detrimento do fortalecimento da luta direta, como dito anteriormente. Por isso, nossa defesa do direito da candidatura de Lula se faz de forma simultânea à apresentação de outro projeto político, de outra candidatura, de outra estratégia, táticas e programa.
Lutar contra a reforma da previdência e apresentar alternativa política
O governo fez um recuo evidentemente tático, pois diante da permanência da recessão (a maioria dos analistas avaliam que paramos de piorar) e da restrição orçamentária[6], a estratégia patronal é estabelecer um patamar superior de exploração sobre os trabalhadores e ampliar a retirada do orçamento público pelo capital financeiro. É a serviço exatamente disso que estão as contrarreformas. Assim, a aprovação dessa “reforma” da previdência é estratégica para a classe dominante e para o governo e somente se deterão perante a forte resistência da classe trabalhadora. Essa é justamente a “batalha das batalhas” deste ano, aquela que definirá a correlação de forças do próximo período.
Mesmo considerando o conjunto dos ataques sofridos em 2017, os trabalhadores não perderam sua capacidade de resistir à ofensiva patronal, ao contrário, apesar das traições da burocracia sindical e política demonstraram que podem resistir e reverter as medidas historicamente regressivas que já foram aprovadas. Mas, para que isso ocorra teremos que desbloquear a mobilização de massa, colocar de pé fortes jornadas de lutas e utilizar todas as ferramentas e táticas (diretas e indiretas) disponíveis para a atual situação política.
Por isso, as tarefas centrais da classe trabalhadora hoje passam pela unificação das campanhas salariais que eclodem no início do ano, por construir a mais ampla solidariedade e nacionalização das lutas em curso – vide a ocupação Povo sem Medo em São Bernardo do Campo – e a mais ampla unidade para derrotar a “reforma” da previdência através do fortalecimento das lutas de forma que possamos construir uma poderosa greve geral que enterre definitivamente essa contrarreforma e abra caminho para reverter as que já foram aprovadas.
Mas outra tarefa que também é central para esse ano é construir uma candidatura a Presidente da República que possa começar a sintetizar um processo mais avançado de superação do lulismo. Não se trata de um fenômeno eleitoral descolado da realidade da luta de classes, como nenhum é, alias, por isso é necessário dar máxima atenção para esse fenômeno. Assim, essa não é uma tarefa secundária para a luta de classes nesse momento, pois a falta de uma expressão política de massas independente dos patrões e do governo, nesse cenário de profunda crise de representatividade, não contribui para a mobilização contra os ataques do governo, pelo contrário, apenas faz adiar a ação independente de setores mais amplos.
Está aberto no PSOL e na esquerda socialista em forma geral o debate de qual figura poderia cumprir o papel de sintetizar programa, estratégia e organização política capaz de começar a fazer frente ao lulismo. O debate sobre candidatura a presidente no interior do PSOL está polarizado entre candidaturas de importantes militantes do partido e a de Guilherme Boulos (dirigente nacional do MTST). Diante da polarização, o Congresso Nacional do PSOL votou pela realização de uma Conferencia Eleitoral para o final de março para que a questão se resolva.
Na conjuntura em que vivemos, de avanço da ofensiva reacionária, do fortalecimento do lulismo e da construção de uma expressão de massas da extrema direita, não podemos encarar essa candidatura como estritamente do PSOL, mas um nome que poderia cumprir a tarefa de impulsionar a construção de uma frente de esquerda com os partidos independentes, movimentos e setores de massa.
Entendemos que os companheiros que estão se colocando como pré-candidatos o fazem em uma perspectiva de apresentação de um programa radicalmente oposto ao do lulismo, mas como dissemos acima: essa não é a única tarefa desse processo eleitoral. Com todo o respeito, por questão de características, inserção no movimento social e papel militante, os atuais pré-candidatos do PSOL não tem a menor condição de cumprir com a tarefa de serem agentes catalizadores da esquerda independente nesse momento.
Por isso, vemos como progressiva a construção de uma candidatura em torno do nome de Boulos. Esse é um nome que poderia cumprir com os quesitos apresentados desde que de fato assuma de forma consequente programa, alianças e táticas eleitorais que vão para além do lulismo. Em entrevistas, declarações e debates o líder do MTST tem aponta no sentido de que no atual cenário econômico não se pode repetir s alianças feitas pelo PT, que é necessário retroagir nas medidas regressivas, um programa de reformas e que a mobilização popular é fundamental para efetivar essa perspectiva.
No geral estas declarações são corretas, mas pensamos que para representar a superação de fato do lulismo é necessário assentar um programa não apenas de reformas que vão para além do capitalismo, construir uma aliança eleitoral entre as organizações operárias e que aposte centralmente na organização independente dos setores de massas[7]. Por isso pensamos que junto com a tarefa de derrotar a “reforma” da previdência, construir uma candidatura – a de Boulos – com um programa claramente anticapitalista com o objetivo de aglutinar forças para além do PSOL em uma frente de esquerda que agregue a esquerda socialista e mobilizar efetivamente setores de massa para construir uma alternativa de massas que comece a superar radicalmente o lulismo e possa ser uma força real contra os terríveis ataques da classe dominante.
[1] A PEC 95/2016 limita a correção dos gastos em desprezas correntes no orçamento federal até a porcentagem da inflação do ano anterior por 20 anos.
[2] Essa “reforma” estabeleceu a cláusula de barreira de 3% dos votos válidos para ter acesso ao fundo partidário e tempo de TV.
[3] As traições dessa burocracia lulista só podem ser compreendidas pela aposta estratégica que fazem em desgaste Temer em vez de derrubá-lo pela força do movimento. Uma estratégia abertamente traidora, tendo em vista que a manutenção de Temer à frente do governo federal é uma condição necessária para impor as contrarreformas.
[4] No total, dados apresentados pelo site congressoemfoco dão conta que 224 deputados e senadores estão respondendo 542 inquéritos e ações penais, o que significa que a cada 4 parlamentares 1 está sendo investigado. (fonte: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/numero-de-parlamentares-investigados-bate-recorde)
[5] Para compor um novo governo de colaboração de classes com frações da burguesia, partidos que estão a frente da ofensiva reacionária e principais artífices do “golpe”, como o PMDB e um programa que mantem as medidas regressivas e a acumulação capitalista, principal artífice do “golpe” e com um programa capitalista)
[6] Grave situação fiscal que faz o governo cogitar a chamada quebra da “regra de ouro” (o governo não se pode pegar empréstimos em bancos públicos ou privados para pagar despesas correntes) da Lei de Responsabilidade Fiscal para poder cumprir com o Orçamento do próximo ano.
[7] A experiência histórica já demonstrou por várias vezes e está demonstrando agora mesmo que não se pode resolver os problemas dos trabalhadores com projetos de democratização da sociedade desvinculados da luta pela superação do capitalismo, as tarefas imediatas, democráticas e nacionais só podem servir como ponto de partida mas só se resolvem com medidas anticapitalistas, o que exige evidentemente a mobilização cada vez mais ampla e radicalizada dos explorados e oprimidos, do contrário os avanços conseguidos redundam invariavelmente em profundos retrocessos históricos, isso foi assim na Bolívia de Estensoro, no Brasil de Jango, no Chile de Allende, e em certa medida está sendo agora na Venezuela chavista.