Apresentamos abaixo a síntese das discussões realizadas no IX Congresso Nacional do Nuevo Mas (partido argentino da Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie), elaborada por Roberto Sáenz. Esse não é um texto voltado à militância da referida organização e da nossa corrente apenas, suas análises sobre a nova etapa mundial de extremos, caracterizada por uma luta de classes ainda mais encarniçada em todos os terrenos, suas reflexões mais gerais calcadas em um rigoroso balanço político-teórico do século XX e a renovada estratégia revolucionária que apresenta é, certamente, de interesse do conjunto da militância revolucionária. Boa Leitura!
Redação
IX Congresso do NMAS, parte 1
Um triunfo que é ao mesmo tempo um ponto de chegada e um novo ponto de partida
“Vi como os professores [de alunos surdos-mudos] realizavam o milagre do nascimento da alma e da formação do talento. Esses são dados surpreendentes. Aqueles que foram isolados do mundo por um muro impenetrável de surdez, que não tinham mentalidade nem autoconsciência, tornaram-se pessoas altamente cultas e talentosas, com aguçada visão teórica, dominaram as alturas da cultura mundial e viram o mundo circundante com os olhos da humanidade.
Ilyenkov, “El derecho a la creatividad“, Izquierda Web
Apresentamos a seguir uma reflexão sobre o IX Congresso do nosso partido, em torno das intervenções do autor desta nota no contexto deste, um Congresso histórico 25 anos depois da nossa fundação, que sem dúvida foi um triunfo: instalamos a nossa corrente no firmamento do socialismo revolucionário com uma identidade própria.
Para começar este texto, uma breve reflexão: estamos trabalhando e acumulando há 25 anos, preparando e formando os eventos, esperançosamente, histórico-revolucionários, e tentando ser protagonistas desses desafios que se abrem. Desafios que não podem ter um resultado revolucionário sem a construção de um partido e de uma corrente revolucionária. A questão é a preparação teórica, política e prática para mudar a história.
Você não faz 25 anos todos os dias. São 35 se somarmos os 10 anos preparatórios que, desde 1988/9, o núcleo histórico passou desde a crise do antigo MAS e da antiga LIT (CI). Esses 10 anos preparatórios nos permitiram amadurecer e convergir com uma série de quadros médios muito valiosos a partir da experiência do PST, vários deles quadros operários, e que, desde a Conferência de fundação de 1999, deram origem ao que chamamos de fundação de nosso partido/corrente (formalmente, a corrente SoB foi formada alguns anos depois, por ocasião dos eventos de 2003 na Bolívia, que atuou como um gatilho).[1]
Não é por acaso que muitos jovens camaradas do nosso partido e da corrente nos pedem um texto sobre nossa história, porque nossa composição geracional é muito jovem. É uma bela tarefa pendente. Bela porque está cheia de ensinamentos sobre a construção revolucionária, que, como sempre apontamos, não é muito diferente em suas leis no grande e no pequeno.
As correntes do socialismo revolucionário (movimento trotskista) somos ainda pequenas, embora as vicissitudes pelas quais passamos sejam grandes. Não podemos desenvolver aqui as “leis de construção das correntes revolucionárias” que propusemos em um texto de alguns anos atrás, mas podemos apontar que a construção das correntes revolucionárias combina, como não poderia ser de outra forma, fatos e eventos “internos” da luta de classes.[1]
E isso aconteceu com a nossa corrente: a reflexão sobre a experiência passada e suas lições estratégicas se combinou com a queda do Muro de Berlim e a experiência do Argentinazo para lançar as bases do que somos: um núcleo humano que abriu caminho contra todas as probabilidades e se tornou uma corrente internacional de elaboração e opinião teórica/política que, embora ainda limitada, já forjou sua própria identidade estratégica e entrou na briga das correntes internacionais e da “cadeia de eventos” que estão no futuro.
Nosso texto será dividido em duas partes gerais: a) o contexto geral em que realizamos este histórico IX Congresso, e b) uma reflexão sobre a construção revolucionária.
1- O fio invisível da revolução
O primeiro elemento fundamental para a discussão, colocado em nossos últimos textos, é que se abriu uma nova etapa global de desequilíbrio, que acabará por nos colocar diante de circunstâncias que fogem à normalidade, à rotina dos dias.[3] Uma nova etapa mundial que marca uma ruptura em relação à relativa estabilidade que o mundo experimentou desde a queda do Muro de Berlim na década de 90 (anos da Pax Americana), onde as características gerais dos eventos internacionais tinham a dinâmica conservadora de “trabalhos e dias”: está colocado que os eventos que já estão acontecendo e que estão por vir quebrem essa rotina da vida cotidiana e nos instalem em um mundo prenhe de crises, barbárie e, eventualmente, revoluções. Um mundo que nos obriga a nos preparar para agir revolucionariamente nele.
Podemos dar muitos exemplos que temos processado. Há elementos ou determinações que estavam fora da agenda histórica e que devolveram, por exemplo, a possibilidade do uso de armas nucleares (não passa um dia sem algum elemento de conflito entre potências mundiais; há “linhas vermelhas” que estão sendo cruzadas diariamente). A nova etapa que definimos como de crise, guerra, barbárie, reação e revolução tem uma série de características, uma das quais é o retorno das guerras clássicas. Mas elas podem vir com armas não convencionais, com armas nucleares táticas, e isso obviamente seria um elemento que escaparia à normalidade (até agora, as armas nucleares tout court foram usadas apenas em Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945).[3]
Como exemplo atual de barbárie, o caso de Gaza. Houve outros genocídios na África, mas menos politizados do que este, se quiser. O caso de Gaza é o maior genocídio político desde o pós-guerra, o genocídio de um povo palestino martirizado, que é um exemplo de barbárie, mas também de resistência, e que propõe novamente todo o tema da luta anticolonial (nesse sentido, devemos reler Frantz Fanon, teórico da violência anticolonial; “Los condenados de la tierra” é sua maior obra).[5]
Outro elemento é a ruptura da normalidade democrático-burguesa, com tentativas de golpe, mas também com a frustração dessas tentativas. Há um clima político que transborda a democracia burguesa, que era nossa normalidade desde o final dos anos 70. Mas agora há um novo elemento: tentativas de golpe – ou estados de emergência – que se chocam com sentimentos democráticos profundamente enraizados de amplos setores das massas. Foi o que acaba de acontecer com o ex-presidente da Coreia do Sul, deposto pela pressão das ruas sobre o palácio, uma maré humana de jovens dançando K-Pop. Isso não é normal: é lindo, extraordinário.[6]
E é motivo de reflexão para os céticos que veem a nova era apenas como “de catástrofes”. Callinicos, com quem tomamos café em Londres há um mês, dando pano para manga a essa discussão, publicou recentemente um artigo sobre a Coréia afirmando: “Viram?, eu estava certo, há golpes de Estado“. Alex, com toda a fraternidade do mundo eu te digo: você não percebeu?, o golpe foi derrotado pelos meninos dançando K-Pop. É como ter um olho só: há um olho que vê bem, que vê o golpe de Estado. Mas falta o outro olho que vê o reinício da experiência histórica, o fato de que novas gerações estão entrando na cena histórica, que o golpe foi derrotado (pelo menos até agora).
E não é apenas Callinicos. Já apontamos que outros intelectuais marxistas sofrem dessa mesma “cegueira de julgamento“, (judicial blindness, como Engels a chamou): a incapacidade de ver além da primeira impressão observável. Eles perdem de vista o fato de que estamos em um período de reversibilidade dialética: uma série de acontecimentos que se inclinam demais para um lado, podem saltar brutalmente para o outro, movendo-se da extrema direita para a extrema esquerda.
Então, a primeira definição é que houve uma ruptura da normalidade e que se abriu uma nova etapa mundial, que vai durar décadas, de ruptura da normalidade e de ferozes confrontos geopolíticos e de classe. Porque é óbvio que não há consciência socialista, que a extrema direita ganha eleições com os mais atrasados da sociedade, que a nova etapa começa no polo reacionário. Mas também é verdade (e devemos vê-lo, não ter um olho só!) que na sociedade mais avançada, sua vanguarda de massas, por assim dizer, há um sentimento democrático profundamente enraizado que não deixa passar tudo. [7]
A etapa tem uma certa reversibilidade: não há ação sem reação. A iniciativa cabe à burguesia e à extrema direita; a conjuntura é reacionária, não é revolucionária porque a iniciativa as tem eles. Mas há resposta. E a situação pode mudar se nós, explorados e oprimidos, tomarmos a iniciativa: “(…) a menor mudança dentro de [um] (…) corpo, causada pela influência de outros corpos sobre ele, é imediatamente expressa para ele como uma certa mutabilidade em seu modo de ação (…)” (Evald Ilyenkov, “Lógica dialéctica”).
Esta nova etapa mundial que estamos atravessando tem uma série de bases materiais. Já falamos do regresso da luta geopolítica, das guerras e da militarização, e alertamos para o regresso do serviço militar obrigatório, mesmo para as mulheres em alguns países.[8] Após a queda do Muro, o mundo foi para a desmilitarização. Agora acabou: começou uma era de remilitarização das nações (é necessário rever os textos de Rosa Luxemburgo sobre a crítica do militarismo, que se renovaram).
Em segundo lugar, uma questão sobre a qual há um crescimento da consciência social, mas que não resolve nada em si mesma, que é a crise ecológica. Saiu o ranking das dez famílias mais ricas do mundo: oito delas estão ligadas ao negócio do petróleo! Isso significa que não há solução reformista para a questão ecológica.
Terceiro elemento, a crise econômica não resolvida desde 2008; voltaremos brevemente a ela mais tarde.
Quarto, a condição “natural” de precariedade da nova classe operária.
E, finalmente, um elemento-chave para a dinâmica da luta de classes, o esvaziamento da democracia burguesa.
Todos esses são elementos que, se refletirmos em profundidade, marcam um período histórico diferente. Nosso ângulo é que é um período de ruptura do equilíbrio mundial que exige uma resposta revolucionária das massas, dada sua agressividade. A preparação de nossa corrente e de nosso partido é para ajudar nesse “chamado”: a resposta revolucionária às condições de vida insuportáveis impostas pelo capitalismo voraz do século 21.
Aqui há um ardil importante: uma contradição viva que está por trás de todos os acontecimentos da atual luta de classes e que a maioria dos intelectuais marxistas não vê: as amplas massas passivas votam na extrema direita; a vanguarda de massas está genericamente à esquerda (exemplo: o interior da França vota em Marie Le Pen, Paris vota esmagadoramente no NFP).[9] As massas estão nas redes sociais e, na hora de uma pessoa/um voto, ganham as eleições. A vanguarda de massas são as mobilizações, mas não só isso: a Valência inundada recebeu uma corrente humana de solidariedade para ajudar os valencianos a tirarem a lama da cidade. Com qual realidade você fica? Com ambas, com a barbárie do dilúvio, mas também com a corrente da solidariedade; a visão do mundo tem que ser bilateral, não pode ser unilateral, não pode ser de mera lógica formal: tem que ser dialética e ver os dois terrenos. Porque, senão, não é um olhar militante: ficamos sem pontos de apoio para a ação.
Assim, um dos conceitos que mais girou no Congresso foi o da dialética. E é compreensível, porque a luta de classes e a construção do partido são atravessadas por suas leis: “[Nosso] (…) enfoque preserva, como uma das definições da dialética, a definição de Engels da dialética como uma ciência das formas e leis gerais de todo o desenvolvimento, comuns ao pensamento e ao ‘ser’, isto é, com um desenvolvimento histórico-social e natural, e não das formas e leis ‘especificamente subjetivas’ do pensamento” (Evald Ilyenkov, Lógica Dialéctica, p. 6).
Aqui está outra pergunta, talvez um pouco geral, mas para abrir a discussão antes de passar para a Argentina. O que é que nos permite “saltar” da rebelião para a revolução? Não dizemos socialista: para a revolução socialista precisamos de elementos de consciência que ainda não existem, uma maior subjetividade. Mas há um problema fundamental: o grau de agressão a um corpo da humanidade que está vivo, que não está morto. Se o grau de agressão for longe demais, pode desencadear uma revolução; existem limites na realidade, a realidade tem uma materialidade que não pode ser negligenciada.
No Brasil, Bolsonaro tentou convencer os generais a darem um golpe de Estado e matar Lula (efetivamente, uma loucura reacionária sem precedentes nos últimos 40 anos!). Os generais em serviço disseram-lhe “nem louco! É uma loucura porque o país explode e pode chamar à revolução” (novamente, a necessidade de não ter um olhar “caolho”).
Atenção! Também para a burguesia, a ruptura da normalidade é um “salto para o desconhecido”. Portanto, sua primeira opção nos anos 30 não foi o nazismo; a burguesia alemã tentou de tudo antes de se inclinar para Hitler. O mundo capitalista-imperialista de hoje está repleto de eventualidades de “salto no vazio”, onde se você “colocar os dedos na tomada” o choque pode acontecer. Podemos dizer que este século XXI está prenhe de barbárie e revolução (o materialismo histórico-dialético pressupõe ambas; não há ação sem reação), mesmo que as revoluções ainda não tenham chegado: “Qualquer golpe que é aplicado ‘ricocheteia’, porque é da ordem das forças que têm vida, que não estão mortas. Espera-se que qualquer golpe que seja dado tenha uma resposta: “Revolução e contrarrevolução estão ligadas uma à outra, assim como a reação está ligada à ação, dando origem a uma abordagem histórica que (…) é ao mesmo tempo dialética e impulsionada pela necessidade” (Arendt citada por Mayer citado por Sáenz, “La política revolucionária como arte estratégico”, no prelo).
A questão é como preparar a corrente e o partido para essa eventualidade, para o retorno das revoluções em um período histórico em que não houve revoluções por 50 anos; e isso mesmo que ainda não sejam revoluções socialistas: revolução significa destruição do Estado existente.
Estamos fazendo este IX Congresso em condições de anormalidade histórica, que podem nos colocar diante de imensos desafios. Porque essa anormalidade histórica “pega” mal à maioria das correntes do marxismo revolucionário, e nós, embora sejamos uma corrente pequena, nos pega bem.
O fato de sermos uma corrente muito pequena é um elemento que está certo; que a situação nos alcança muito bem, política e humanamente, é um elemento que tem o mérito destes 25 anos. Poderia apanhar-nos desmoralizados, confusos, sem juventude, sem perspectivas, e nada disso acontece: apanha-nos na ofensiva! O que acontece é que ela nos atinge pequenos (entre propaganda e organização de vanguarda; como uma corrente internacional de pensamento e ação). E o debate deste Congresso é como vamos ser maiores, apropriando-nos de tudo o que conquistamos para dar um salto construtivo neste mundo anormal que, por sua agressividade, desafia as massas à revolução.
Este é o reflexo central deste IX Congresso e do nosso 25º aniversário, ao qual chegamos com um capital teórico, político e humano muito valioso, e no qual estamos abrindo pontas para todos os lados.
Em 20 de janeiro, Trump assume o cargo. The Economist está publicando artigos todos os dias em que a palavra que mais se repete é “imprevisibilidade”; como se a história estivesse começando de novo em 20 de janeiro. Não começa de novo. Mas Trump é um efeito da imprevisibilidade do mundo, uma tentativa de mudar as regras do jogo da ordem mundial do pós-guerra que não está claro para onde ele vai.
2- Um laboratório de extrema direita
Estamos na “nuvem das festas” de dezembro; não é um bom indicador do que realmente está acontecendo nas entranhas da sociedade. A sociedade, farta deste ano horrível, tudo o que quer são férias. Há dois resultados contraditórios no primeiro ano do governo de Milei: um é que ele não conseguiu quebrar o regime político ou as relações de forças; o outro é que ele conseguiu se sustentar. Paradoxo: como é que um governo como o de Milei se sustenta e monopoliza a vida política, mas até agora não impôs uma derrota categórica e exemplar aos trabalhadores?
Frondizi impôs o Plano Conintes, militarizando os ferroviários. Alfonsín saiu cedo; não impôs nenhuma derrota significativa. Menem o fez: derrotou os ferroviários e os telefônicos, conflitos históricos e imensos; Menem derrota e se estabiliza (e, no processo, explode o velho MAS).[10] Qual é a derrota hoje? Há um ajuste, uma queda nos salários, o desemprego cresceu um pouco, mas qual é a derrota significativa?
Há uma disparidade entre a agressividade do governo e o fato de que ele não impôs uma derrota categórica por enquanto. O único teste categórico que houve no ano foi o da Aerolíneas, e não foi uma derrota: quantos pilotos eles despediram?, dois ou três, e não privatizaram a Aerolíneas.
No caso de Milei se manter, quanto de Milei e quanto do regime político e do peronismo que operarão para Milei? Do peronismo, a traição é colossal, histórica.
“Queremos ser como o Peru“, afirma o idiota do Milei. Você sabe o que aconteceu no Peru? Há 80 mil desaparecidos por Fujimori nos anos 1990. O Peru não foi derrotado pela ditadura de Velazco Alvarado (anos 70), nem por Belaúnde Terry (início dos anos 80), nem por Alan García (primeira década dos anos 80); Fujimori o derrotou com muito mais desaparecidos do que na Argentina em um país menor; o “Chino”, como era chamado no Peru, venceu as eleições com um discurso populista em 1989 e realizou um autogolpe bem-sucedido em 1991/2. Fujimori fez com que as mulheres indígenas tivessem suas trompas amarradas, coisas assim, brutais. Hoje 95% da população é informal, e a CGTP, que era uma potência, sindicalizou 1% da classe trabalhadora… No Chile, outro país tomado como modelo por esse idiota, Pinochet governou. Eu pergunto a vocês: como Milei vai transformar a Argentina em um país importador sem indústria, sem impor uma derrota à classe operária?
Porque é verdade que agora há pouca atmosfera nas fábricas, e houve demissões nas fábricas de pneus e outras, mas que peso objetivo isso tem? Acreditamos que há a possibilidade de enormes confrontos de classe pela frente, se Milei tem sucesso nas eleições e nos submete novamente a um verão quente em 2026. Como não houve derrota este ano, houve empate. Ele impôs uma “Lei de Bases” reduzida, mas não conseguiu mudar o regime político; continua tentando mudá-lo e tem elementos bonapartistas (é uma espécie de “bonapartismo fraco”), mas os grandes confrontos de classe para derrotar as relações de forças criadas em 1983 e 2001 continuam à frente. O único triunfo que Milei pode contar hoje é contra os piqueteros, que é o mais epidérmico de todos (era evidente que o movimento piquetero era organicamente fraco; só o PO [Partido Obrero] poderia duvidar disso).
Por exemplo, se Milei, como parte de seu plano global, quisesse avançar com a recriminalização do aborto, não acreditamos que seria fácil para ele. O ajuste se impõe como uma “lei da natureza”, que é seu principal triunfo (ajudado, repetimos, de forma substantiva pela governabilidade que lhe foi dada pelo regime, pelo peronismo e pela burocracia sindical); No macro, alcançou um triunfo, mas não há derrota estrutural da classe trabalhadora.
Esta é uma das primeiras lições do “laboratório Milei”: as pretensões são estratégicas, os resultados ainda são escassos e, ao contrário de todos os lamentadores do marxismo, ainda não há derrota na Argentina.
Além disso, o “marxismo chorão” rasga suas vestes para a frente única como um mantra. E somos a favor da frente única. Mas o problema é que quase não houve espaço para ela, porque a burocracia e o peronismo se entrincheiraram na governabilidade a quase qualquer custo. O único dia verdadeiramente histórico da frente única foi a greve semi-geral antecipada em 24 de janeiro deste ano. Então, principalmente, a burocracia se resguardou, os K’s fizeram um show no Congresso Nacional, Cristina jurou e perjurou a governabilidade além de ter um pacto “secreto” debaixo da mesa com Milei, e os grandes dias dos primeiros seis meses à frente do parlamento foram dirigidos pela vanguarda e pela esquerda; foram dias de vanguarda, nem mesmo da vanguarda de massas: o peronismo inoculou medo com o protocolo para evitar a mobilização.
Essa impossibilidade de colocar em prática o mantra da frente única se repete no Brasil e na França: o antigo reformismo e a burocracia sindical se recusam a mobilizar contra a extrema direita. As mobilizações pela Palestina na Grã-Bretanha são outra história, aí funciona; mas no Brasil e na França, a frente única serve apenas para capitular as frentes populares com o antigo reformismo.
Por outro lado, isso não significa ter uma visão facilista, porque o peronismo goza de boa saúde; não há ruptura da esquerda com o peronismo, embora haja “cisões” individuais da base de pessoas irritadas com o K. Mas não haverá a “ruptura com o peronismo” com que sonha a FITU se o cenário não girar de reacionário para revolucionário, ou seja, se não houver ascenso; por enquanto a hipótese eleitoral mais provável é o triunfo de Milei, a polarização com a liquidação da centro-direita e a manutenção dos votos da esquerda, votos a mais, votos a menos.[11]
Nem é que a esquerda vai conseguir “uma montanha de votos” como o PTS espera: para que haja um, tem que haver um sério giro à esquerda. O que a FITU faz é reagrupar os votos da esquerda, não toca seriamente nos votos do peronismo (Patria Grande e outros grupos trabalham para evitar isso). Não há um único possibilista que você convença hoje de que o possibilismo não é a única receita para levar as coisas adiante. Ou seja, a perspectiva da revolução ainda não convence, não há radicalização, e o resultado disso é que o possibilismo ainda é um fenômeno mundial. Daí o sucesso eleitoral das novas frentes populares como no Brasil e na França.
Claro, os eventos que podem vir podem mudar isso: você não freia uma bomba nuclear com possibilismo. Nenhuma caiu ainda, mas se uma bomba nuclear (tática) cair surgirá um movimento antinuclear pelo desarmamento, e então Rosa Luxemburgo voltará à vida, que dizia que imperialismo é igual a militarismo.
Nesse quadro (e passando do sagrado para o profano, o desastre eleitoral argentino), os caras estão preparando uma campanha eleitoral para pegar tudo entre Milei e Cristina e explodir o centro (Macri vive indo ao psicólogo, ele tem dupla personalidade, é esquizofrênico). Vai haver PASO ou não? Não sabemos, o mileísmo não sabe o que é bom para ele; se dependesse de Milei, ele estaria realizando as eleições agora, não está claro se é do seu interesse que não haja PASO (na CABA as eleições extraordinárias acabam de ser convocadas para suspendê-las em 2025). Mas como o país econômico vai chegar a outubro do ano que vem? Você não tem como saber, você tem que chamar um astrólogo. Repetimos: vemos muito difícil para o projeto mileista se estabilizar sem derrotas. Mas cuidado, sempre que as eleições são realizadas, o cara já disse que se vencer virá com “três mil projetos” em dezembro de 2025, então vamos aproveitar essas férias porque no próximo ano não vamos tê-las.
Dentro dessas coordenadas, parece-nos que existe, global e nacionalmente, um enorme setor de vanguarda das massas receptivo às ideias “piola”, do progressismo à esquerda (o marxista que não vê isso, é cego ou não milita pela base!).[12] Se você perguntar aos camaradas da fábrica, eles dirão que “é uma bagunça e nada acontece”; mas na fábrica ainda não há vanguarda de massas. Se perguntarmos aos camaradas da juventude, eles dizem que existe “um espaço bárbaro”. A única explicação para essa contradição, sem que tenha havido uma ruptura da vanguarda de massas em direção à esquerda, sem o fato de que a FITU monopoliza os milhões de votos que existem para a esquerda, a única coisa que explica esse espaço para o partido é que o partido está em melhor situação e a FITU está pior. Em diferentes terrenos, alguns ganham e outros perdem, o espaço da “esquerda em geral” ainda não se expandiu, e dificilmente o fará se as condições reacionárias que dominam a generalidade das coisas hoje não forem modificadas.
Do ponto de vista de sua organização, de suas ideias, de seu caráter militante, o partido é melhor e, por várias razões, o PTS e o PO estão em pior situação. Isso não está acontecendo apenas aqui. Na França existe um espaço imenso. O resto do trotskismo francês – exceto a FT – está mal: oscila entre o liquidacionismo e o doutrinarismo mais estúpido. “Espaço” significa que o resto das correntes têm pouca capilaridade na base, porque em geral perderam seu caráter militante em nível internacional. E nossa corrente, ao contrário, fortaleceu, não seu tamanho, mas seu caráter militante, sua capilaridade.
M. quer levar J.P. para a Malásia no próximo ano. É completamente delirante, mas algo objetivo deve refletir, algo está acontecendo, há uma falta de representação que estamos cobrindo (estamos “juntando as coisas”, esta é uma parte central do balanço patrimonial deste Congresso histórico, nossa nova capacidade de juntar as coisas). Algo acontece para que uma corrente internacional objetivamente tão pequena como a nossa tenha tantas possibilidades de desenvolvimento. E acho que percebemos; a questão é como tiramos proveito disso, e esse é o desafio do pós-Congresso, a aplicação prática das resoluções que votamos.
3- Uma visão dialética
Agora vamos abordar algumas questões metodológicas do debate e depois vamos para o político. Nos aspectos mais metodológicos e abstratos, tomando-os como ideias fortes, devemos nos perguntar: Quando começou a nova etapa mundial? Quando o século XXI começou do ponto de vista político?
Fugindo de todo o economicismo, parece que o mais típico do século XXI começou com a pandemia; foi também assim que a definimos na época. Do ponto de vista material e estrutural, começou com a crise de 2008. Mas essa crise, por mais importante que seja e pelas consequências que tem, e sendo a crise econômica mais importante desde a Grande Depressão, é uma crise clássica, uma das crises cíclicas do capitalismo – exageramos para que seja compreendida; obviamente não devemos perder de vista o fato de que, por mais clássica que seja, essa crise está se desenvolvendo nas condições do novo imperialismo, de competição geopolítica, etc. Mas a pandemia introduziu outro elemento, de ordem diferente, que é a incorporação do elemento distópico na vida cotidiana. É da ordem do anti-utópico, da ordem do inédito, do inesperado; embora os marxistas vulgares não entendam, as dimensões do utópico e do distópico têm muito peso hoje na consciência das massas. A possibilidade de destruição da Terra ainda está mais presente nelas do que a do capitalismo: para ver isso, basta rever a lista de filmes da Netflix.[13]
E há outra distopia: o aquecimento global libera não apenas gases de efeito estufa, mas também metano, que dizem ser muito mais perigoso. E se o permafrost (solo ártico congelado) derreter, também poderá liberar bactérias para as quais a humanidade não tem anticorpos.
São coisas da barbárie capitalista, da ordem do distópico, de uma ordem que, aparentemente, a humanidade não pode controlar. A inteligência artificial também é dessa ordem, porque a questão é se a humanidade vai controlá-la ou se a IA vai controlar a humanidade. São coisas da ficção científica que se tornam realidade que remetem, na realidade, a debates clássicos (nossa posição é que a humanidade é o sujeito e pode “controlar tudo” se respeitar as leis da natureza. Outra coisa são as forças produtivas que se tornaram destrutivas nas mãos do capitalismo).
Outro fato dessa ordem é a conquista do espaço nas mãos de Elon Musk, ou seja, um assunto público colocado em mãos privadas, o que significa que a humanidade também não tem controle sobre ele. A NASA, uma instituição imperialista, se houver, é pelo menos uma instituição pública. Mas agora a Space X, uma empresa privada, tem muitos acordos com a NASA, e aqueles que leram o volume 1 sabem que não há nada de político na propriedade privada, a sociedade não pode controlá-la.
É também um signo deste mundo que estamos entrando o fato de que Elon Musk, que não é político, é um dos principais políticos do mundo, que transforma a política em um fato privado. A política deveria ser um fato público por excelência, mas acontece que um dos personagens principais da política mundial, além de ser de extrema direita, pertence à ordem privada, não ao público. Com a ascensão da extrema direita, há uma colonização da ordem pública pelo privado. E isso é “pesado”, é profundo e muito típico do século XXI.
Obviamente, há temas clássicos neste século, que vêm da economia: a globalização entrando em crise, o renascimento da competição interimperialista, o retorno do debate sobre o imperialismo etc. Mas o louco é que alguns temas não têm precedentes, embora existam alguns autores que lidam com eles. Por exemplo, o marxista existencialista Günther Anders, primeiro companheiro de Hannah Arendt, tem um livro muito unilateral, cujas posições não compartilhamos porque ele considera a humanidade como um não-sujeito, que se chama “La obsolescencia del hombre” e reflete o primeiro impacto da questão nuclear.
Essa ideia de distopia é combinada com outro conceito profundo, que vem de Ernst Bloch: o de “não-contemporaneidade”, ou seja, a coexistência de fenômenos de diferentes ordens no mesmo ponto; uma maneira mais rica de falar sobre desenvolvimento desigual e combinado.
Por exemplo, na mesma Coreia do Sul distópica, que durante a pandemia apareceu como um dos países onde há mais reconhecimento facial e onde a vida privada é mais controlada, surge um elemento de insuspeita não contemporaneidade: um movimento juvenil de massa e um movimento operário dos mais tradicionais do mundo, que, quando quiseram dar um golpe de Estado, levaram todos para as ruas. E isso como se deglute, como esse elemento entra na análise?
Para apreciar isso, um terceiro elemento é como entramos materialista e dialeticamente na análise do mundo. Essa análise pode ser feita de duas maneiras: do ponto de vista melancólico, onde todos os tempos passados eram melhores; ou de um ponto de vista “utópico”, que é o nosso, onde o melhor ainda está por vir. É uma leitura interessada? Sim, obviamente, porque o mundo está cheio de contradições. Mas o elemento utópico é grande, porque como diz Ernst Bloch em “El Princípio de la Esperanza”, nos explorados e oprimidos vivem sonhos que se sonham acordados, sonhos de uma vida melhor. E como você mata os sonhos dos explorados e oprimidos? Não tem como.
No quadro da reabertura de uma etapa de crise, guerras, barbárie, reação e revolução, e no quadro de uma conjuntura reacionária, que parte da direita e não da esquerda, onde a extrema direita domina e não as revoluções, há muitos elementos de “não contemporaneidade”, e esses são os pontos de apoio para a ação dos revolucionários.
Pode não haver, ou pode haver e podemos não os ver; mas quando falamos de nossa sensibilidade, não estamos nos referindo apenas a sentir o sofrimento dos outros, mas também ao fato de que diante do mais visível, que é a extrema direita e a distopia, também vemos elementos de insuspeitada não contemporaneidade. Não é por acaso que em Deraa, onde Assad pai massacrou 30 mil pessoas em 1982, mesmo em um processo que não sabemos para onde está indo e liderado por jihadistas que se autodenominam “progressistas”, houve uma marcha massiva celebrando a queda de Assad. Onde isso entra na visão cética do mundo, aquela que só vê o elemento distópico? E onde isso acontece em relação a uma corrente que se diz revolucionária, que quer mudar o mundo?
Hoje o mundo ainda não se ordena pela revolução, é ordenado por elementos reacionários. Mas os elementos reacionários têm um problema, que é a famosa reversibilidade. Obviamente, por enquanto, Rússia, China, Índia, estão ordenadas pelo caminho reacionário (sem limites). Mas no mundo ocidental não é esse o caso: há limites, há relações de forças não comprovadas.
Temos dito que as relações de forças na Argentina não estão resolvidas; mas nos Estados Unidos também não estão, e, além disso, não há consenso sobre o roteiro: a burguesia mundial está dividida e não tem um único roteiro sobre o que fazer com o mundo. O capitalismo voraz passa pela espontaneidade do econômico, mas em relação à dominação, não há clareza se continuará no terreno mais normal da dominação capitalista, que é o da democracia burguesa, ou não.
Então, se nos perguntarmos como estão as relações de forças no mundo hoje, ele está em aberto, eles têm a iniciativa, mas não está fechado, não terminam de provar-se as relações de forças. O ex-presidente da Coreia acreditava que as havia provado, e a tentativa de golpe durou um suspiro.
A direita tem a iniciativa, mas não tem a vaca amarrada, porque as relações de forças não estão resolvidas, ainda estão por ser testadas. A maioria das correntes de esquerda tem como tema que “o fascismo está de volta…”. Mas Hitler recebeu o poder em janeiro de 1933 e, em fevereiro, queimou o parlamento. Trump assume o cargo em 20 de janeiro; ele vai incendiar o Capitólio? Vamos ver, não parece ser tão fácil para ele. O que aconteceu na Alemanha em 1933 foi uma situação definitiva: a classe operária alemã foi derrotada, se definiu. Hoje no mundo nada foi definido ainda, eles não têm o suficiente para queimar o Reichstag, no Ocidente pelo menos – na China e na Rússia é mais complexo, porque não há sociedade civil organizada de qualquer tipo. Portanto, são conflitos e lutas que estão à frente, cheios de vida, cheios de perspectivas, e essas relações de forças não resolvidas, mesmo que a direita tenha a iniciativa, estão ligadas à não contemporaneidade, ao recomeço da experiência histórica.
E por que a revolução? Não há consciência socialista, nem movimento socialista de massas, nem direções socialistas; mas sim se as coisas vão longe demais e há um transbordamento para as instituições, um passo em falso como na Coréia… O que é uma revolução? Está pendurado um chefe de estado na praça. Isso pode acontecer no mundo? Sim. Neste último estágio de nossa experiência tem acontecido? Não. Mas se as coisas passam do marrom escuro, isso pode acontecer.
O que é terror revolucionário? O Terror Vermelho e o Terror dos Jacobinos, por que foi inventado? Conter o terror indiscriminado das massas, que mataram sem limites, é uma forma institucional de terror revolucionário, de vingança das massas contra seus opressores.
Estamos falando de situações que ainda não ocorreram porque ainda há muita mediação da democracia burguesa, mas que podem ocorrer se formos para situações sem democracia burguesa. Este é o perigo para a burguesia entrar em situações sem democracia burguesa, mas ao mesmo tempo sem que as massas estejam derrotadas.
Há setores da burguesia que querem administrar a democracia burguesa, e era isso que temíamos no ano passado em relação a Milei. Nossa preocupação era que, embora disséssemos que as relações de forças não estavam comprovadas, não podíamos jurar, e temos um partido muito jovem; estávamos preocupados que Milei impusesse uma derrota em frio. A derrota em frio é quando você é nocauteado no primeiro round, como Tyson fez nos anos 1980.
Não foi assim; “exageramos” no cuidado, e estava correto, porque sempre inclinamos a vara, toda análise é egoísta; somos uma força política, não especialistas forenses que analisam cadáveres para ver do que morreram. O legista não aposta em nada, o “frio” já morreu; apostamos nos elementos vitais da realidade social.
Callinicos nos disse, naquele café de Londres, que “temos que reconhecer que estamos piores do que estávamos há vinte anos“, porque havia o Fórum Social Mundial etc. Mas isso era outro mundo, ainda era o mundo da estabilidade do pós-guerra, não tem nada a ver com esse mundo distópico. Ao mesmo tempo, não somos objetivistas, há perigos, não é uma piada. Este ano se passou por um teste na Argentina; agora está tudo anódino e nada acontece, mas no primeiro semestre do ano não paramos de intervir nos processos de luta, porque montamos o partido de forma mais defensiva e quando começamos a ver água na piscina partimos para a contraofensiva. Em muitos casos, fomos os últimos a nos retirar quando o governo lançou a repressão.
Milei esteve a ponto de cair. Agora, com as eleições, veremos que apoio próprio ele tem; pois agora depende dos outros, hoje não é um governo forte: o regime é forte, o que não é o mesmo; o peronismo é forte, são eles que apoiam Milei. Mas pode tornar-se forte? Sim, o caráter que dissemos que ele poderia ter é real; não no próximo ano, mas em 2026, se vencer as eleições, irá pelo direito ao aborto se considerar que tem uma maioria social que o apoia.
Não há melhor preparação para o partido do que dizer a ele que se explodir haverá mortes, é assim, porque estamos acostumados a não haver nenhuma. Mover-se na rua sem balas de verdade é uma piada; manejar uma coluna com balas reais é outra coisa, temos que ir, porque ainda não há condições para isso. As coisas começam a sair do terreno romântico e entrar no terreno real.
Nas jornadas de 14 e 18 de dezembro de 2017, não houve balas, mas havia muitos jovens plebeus que atiraram pedras. Se a classe operária entra na luta, tudo muda, porque a classe pode passar anos sem fazer nada, mas quando sai para lutar se manda todas as “ultradas” do mundo: o primeiro gendarme que pegarem leva um soco e podem matá-lo, por mais que lhes digamos “parem um pouco, ele se voltará contra nós”. A classe operária passa do reformismo mais “abjeto” ao revolucionarismo mais incontrolável (as e os trabalhadores são concretos: quando agem, são incontroláveis). É por isso que, para mim, estamos entrando em um mundo de revolução e contrarrevolução.
Mas a extrema-direita de hoje tem um aspecto reativo e preventivo, em defesa da ordem burguesa no sentido mais amplo do termo, não importa com qual modelo; em defesa dos lucros do capitalismo neoliberal. Ao contrário da extrema direita do primeiro período do pós-guerra, que foi uma resposta à iniciativa da revolução. Na era anterior à Primeira Guerra Mundial não havia fascismo; houve restauração, bonapartismo etc., mas nenhum fascismo; isso aconteceu no período entre guerras.
Esperamos que tenha ficado claro que a preparação para o partido não é apenas para aproveitar o estudantazo; é fazer uma ponte para algo que não experimentamos, que é a eventualidade de situações revolucionárias ou contrarrevolucionárias. Não é apenas um estudantazo: é um pouco mais profundo e mais perigoso.
O caso de Milei é simples: as relações de forças ainda não foram testadas. Se tiver êxito nas eleições, o que pode ser, a tentará. O que isso significa? O próximo ano pode vir em dois tempos: um primeiro momento de luta de classes e depois eleições. Mas o sujeito vem para tudo depois das eleições, quer um parlamento seu que vá para tudo. Se ele ganhar as eleições será difícil, porque ele terá legitimidade, e o regime político trabalha para a extrema direita; à extrema esquerda da FITU parece tê-la cooptada. Lembremos do debate do PTS com Manu: “com vinte deputados de esquerda isso não aconteceria“… Não é assim, nem mesmo com cem: a social-democracia alemã tinha cem deputados e Hitler veio da mesma forma. O correto seria: “isso não teria acontecido se liderássemos uma centena de comissões internas“, mas não dirigimos nem a quarta de Chacarita...
Há mais discussões; por exemplo, o que é classista hoje e o que é policlassista, referindo-se ao estudantado e ao movimento de mulheres. É uma discussão estúpida: o movimento estudantil é cada vez mais formado por trabalhadores, a universidade pública argentina é de massas e em um país dependente. Citam Trotsky para dizer que o movimento estudantil é “pequeno-burguês”, mas a universidade pública é uma invenção do segundo período do pós-guerra, Trotsky não estava mais vivo. Você sabe quantos estudantes havia na universidade onde Marx foi em Bonn? Duzentos; os melhores professores da Europa… para 200 alunos. Então, “Trotsky disse, Marx disse…” É ridículo nesta e em outras questões: devemos aprender a pensar com nossas próprias cabeças, com as ferramentas legadas pelo marxismo.
A Argentina preserva uma conquista que está se perdendo no mundo, que é a universidade pública de massa. No Brasil não há nenhuma; a grande universidade pública, a Universidade de São Paulo (USP), tem 90 mil alunos, e São Paulo tem 20 milhões de habitantes.
O movimento de mulheres tem correntes burguesas e pequeno-burguesas. Mas dizer que é “policlassista” para condená-lo tout court é uma definição economicista estúpida. O que deve ser dito é que a esmagadora maioria desse movimento está localizada à esquerda da gorilagem e que é um movimento de luta. Depois, há mulheres estúpidas que fazem lobby parlamentar, mas é uma minoria ao lado do movimento que está nas ruas. Em um sentido semelhante é o desenvolvimento no mundo do movimento LGBTT, que tem mais componentes “policlassistas”, mas, novamente, é imensamente progressista, assim como progressistas são os movimentos de emancipação nacional, mesmo que não sejam “classistas”.[14]
São definições de seitas, que servem para deixar o movimento operário sem aliados e sem revolução, incondizente a qualquer política revolucionária.
IX Congresso do NMAS, parte 2
O partido revolucionário na nova era de extremos
(Villa Gesell, 1º de janeiro de 2025. Artigo dedicado a André Breton (1896/1966), que apostou por Trotsky e pelo socialismo revolucionário à meia-noite do século XX e no 100º aniversário do surrealismo.) [15]
“Nenhuma ideia progressista emergiu de uma ‘base de massas’, caso contrário, não seria progressista. Somente a longo prazo a ideia encontra as massas, desde que, é claro, responda às demandas do desenvolvimento social. Todos os grandes movimentos começaram como ‘escombros’ de movimentos anteriores (…) O grupo Marx-Engels emergiu como um entulho da esquerda hegeliana (…) Se esses iniciadores foram capazes de criar uma base de massa para si mesmos, foi apenas porque não temiam o isolamento. Eles sabiam de antemão que a qualidade de suas ideias seria transformada em quantidade“[16] (Trotsky citado em ” Ensayo de interpretación del modernismo “, izquierda web)[17]
Apresentamos a seguir uma reflexão sobre a construção do partido revolucionário. Essa discussão, obviamente, não figura hoje na academia marxista que, no entanto, está exibindo novas investigações sobre o pensamento de Marx e Engels: uma pedreira sem fim, um verdadeiro recife de coral para o desenvolvimento criativo do marxismo muito distante das “ortodoxias” e esquematismos impostos pelo stalinismo no século passado (e aos quais grande parte do marxismo revolucionário se adaptou). A “marxologia” – a própria ciência do marxismo – está em ascensão, demonstrando que está saindo da defensiva das últimas décadas.[18]
No entanto, o mesmo não acontece com Lênin e Trotsky (Gramsci é outra história: uma figura densa na academia marxista). Ambos permanecem “palavra proibida” na academia em geral e até mesmo na academia marxista.[19] Mesmo na academia marxista, embora tenha havido novos trabalhos, como os de Tamás Krausz, Lars T. Lih ou Eric Blanc, não se pode dizer que haja pesquisas da mesma magnitude que as dos fundadores do marxismo.
Paradoxalmente, algo significativo está acontecendo dentro das correntes militantes. A reflexão sobre o partido revolucionário brilha por sua ausência. É dada como feita, mas não se reflete uma palavra sobre ela. É como se com o “O que fazer? (Lênin) é mais do que suficiente. Inclusive esse genial texto raramente é visitado.
Se houver alguma dúvida sobre o que estamos apontando aqui, basta ir ao Google e clicar em Lênin e você descobrirá que os textos referentes ao partido revolucionário são escassos (não confundir com textos sobre Lênin em geral, vários trabalhos sobre ele apareceram no ano passado por ocasião do centenário de sua morte). Claro, existem textos clássicos da geração marxista revolucionária anterior (a dos anos 70): “Estratégia e Partido”, de Daniel Bensaïd; o trabalho de vários volumes de Tony Cliff sobre Lênin, “A Construção do Partido”; “Leninismo sob Lenin”, de Marcel Liebman; “O Partido e a Revolução”, de Nahuel Moreno, entre outros. No entanto, não há obras dessa magnitude na última geração marxista revolucionária, com exceção do livro de Tamás Krausz, “Reconstruindo Lenin – uma biografia intelectual”, e as obras de Lars T. Lih sobre Lênin.
De nossa parte, nos últimos suplementos Marxismo no século XXI e por ocasião do nosso IX Congresso, apresentamos vários artigos sobre a construção do partido e, em breve, publicaremos uma obra intitulada “La política revolucionaria como arte estratégico” sob o selo editorial de Izquierda web, que se aventura no assunto.
Assim, este artigo é uma espécie de alerta sobre a situação atual, sobre a urgência de retomar o debate sobre a construção do partido revolucionário nesta “nova era de extremos”, nesta nova etapa de crise, guerras, barbárie, reação e revoluções a qual já estamos bem entrados neste século XXI que, de todo modo, não deixa de nos surpreender e que está necessariamente grávida de revolução.
1- O partido como “escola histórica”
O partido é necessariamente uma “relação social”: está em correlação com a vanguarda e a classe trabalhadora, bem como com todas as classes da sociedade. E embora tenha sua “lógica interna”, é um erro pensá-la fora dessas correlações sociais, fora de sua relação com a realidade, diante da qual é, ou aspira ser, um instrumento de transformação político-social.
A realidade externa a nós coloca nosso “campo de ação”, sobre o qual pretendemos atuar, e que em questões políticas, da luta de classes, é também, necessariamente, um campo de relações de forças.
O partido age sobre essa realidade “externa” para tentar transformá-la: é o elemento “subjetivo” da realidade, a potencialidade, o que pretendemos fazer, para se colocar em ação “medindo-nos” contra a realidade.
E isso requer um esforço da vontade, porque a realidade é sempre maior do que nós; tem tendências progressistas e regressivas e temos que contar com as progressistas para derrotar as regressivas, a “resistência dos materiais”; como disse Trotsky, a inércia é uma das forças mais poderosas da história.
Sendo uma força revolucionária, tanto no grande quanto no pequeno, é preciso um esforço da vontade porque estamos indo contra o estabelecido (lembremos que o ataque exige mais esforço do que a defesa, Clausewitz). Ser uma organização de vanguarda, ser vanguardista tanto na política quanto na arte e na ciência, é ir contra a inércia do estabelecido, e ir contra a inércia do estabelecido é sempre uma luta.
O partido revolucionário como o concebemos, o partido de vanguarda, a forma de partido político, é aquela instituição da modernidade para intervir nos assuntos gerais da sociedade, nos assuntos políticos, cujo antecedente mais claro foram os clubes jacobinos e, mais para trás na história, as várias correntes da Revolução Inglesa: os Levellers e os Diggers, niveladores e escavadores, lutadores pela igualdade política e pela igualdade social.
A discussão sobre o partido une essas duas partes: o que é objetivo para nós e o que é produto de nossa ação. Porque um partido é exatamente isso: um instrumento de ação prática sobre a realidade para transformá-la em um sentido revolucionário. Remete, em sua prática, em seu trabalho, ao ato pelo qual transformamos o mundo de acordo com a luta de classes dos explorados e oprimidos.
Em suma: um partido revolucionário (seja de propaganda, de vanguarda ou com influência de massas, não importa para sua definição geral), é uma forma, tipo, estrutura, de organização política, que intervém no campo das relações de classe estabelecidas para transformá-las em um sentido emancipatório.
Ora, no campo das organizações do marxismo revolucionário, o conceito de práxis, o marxismo como “filosofia da práxis”, é aplicado à ação partidária. O que isso significa? Que o tipo de ação transformadora especificamente adequada ao socialismo revolucionário é o da ação racional, não meramente pragmática. A militância socialista revolucionária é práxis: a inter-relação entre reflexão e ação; nem um mero teoricismo acadêmico nem uma mera pragmática populista.
Justamente por isso, esse ato de mudar as coisas tanto no grande quanto no pequeno é fundamental para sair das discussões solipsistas dos acadêmicos. Sem teoria revolucionária não há prática revolucionária, afirmou Lênin. E afirmou que o marxismo é uma ciência e que, como tal, deve ser estudado: como ciência. E estudar significa sentar-se na da cadeira e começar a ler; não há outra maneira de fazer isso.
Ao mesmo tempo, a ação revolucionária é uma “prática informada e informativa”. Em outras palavras, o partido é uma ferramenta de transformação social. Ele une os dois aspectos da coisa: ação transformadora e reflexão. O estudo do marxismo, da filosofia marxista, é essencial como ponto de apoio para nossa ação. Mas, ao mesmo tempo, se ele se tornar um solipsista, é impossível para ele encontrar a verdade. A verdade é uma questão prática, Marx apontaria logo no início de suas “Teses sobre Feuerbach” (1845).[20] Na tese II, depois de argumentar que foi o idealismo moderno e não o materialismo mecânico que chegou ao “lado ativo” das coisas, o caráter transformador de nossa ação, Marx aponta: “A questão de saber se o pensamento corresponde a uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. Na prática, o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a terrenalidade de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou irrealidade do pensamento isolado da prática é uma questão puramente escolástica”.
É por isso mesmo que Marx “superou e não superou a filosofia”, o plano da mera especulação.[21] Ultrapassou-o no sentido de que foi “para as coisas mesmas”, para o que é: a crítica das relações sociais capitalistas. Mas ele não o superou no sentido de que seu ângulo sempre foi crítico, nunca positivista.[22] No entanto, como a verdade é sempre concreta, Marx se dedicou às coisas mesmas, ao estudo crítico do modo de produção capitalista, que, em nosso caso e neste ponto, se refere à reflexão sobre o partido: à ferramenta pela qual nos ligamos à realidade e intervimos nela para transformá-la.
Em nosso caso, ainda não se trata de uma organização histórica, isto é, objetivada dentro da cadeia de eventos (Gramsci). Em todo caso, nossa prática diária, nossa intervenção na luta de classes, é, em última instância e por sucessivas aproximações, nosso critério de verdade, a terrenalidade de nossa política.[23] É por isso que o debate sobre o partido, sobre sua construção, que é sempre uma interação entre nós e a realidade, é muito rico.
E isso nos leva, novamente, às “Teses sobre Feuerbach“, neste caso à conhecida tese 11, que afirma que “os filósofos não fizeram nada mais do que interpretar o mundo; do que se trata é transformá-lo.” Isso também tem um conteúdo epistemológico: na ação de transformar, sabemos, quando e sempre seja uma ação consciente, uma ação sobre a qual se reflete, uma práxis transformadora.
Em nosso partido e corrente há um certo amadurecimento que significa que sabemos um pouco mais sobre o que estamos fazendo, há pouco mais de anos atrás. Há uma acumulação construtiva de conhecimentos que não tínhamos, o que, dialeticamente, constitui um ponto de chegada e um novo ponto de partida como intitulámos na parte 1 (“Um triunfo que é, ao mesmo tempo, um ponto de chegada e um novo ponto de partida“, esquerda web). Acontece que um partido nunca está totalmente construído.[24] muito menos as organizações que transitam entre a propaganda e a vanguarda, como é o nosso caso internacional e nacional (achatando um pouco os desenvolvimentos). Mas o partido também não está totalmente “construído” quando você assume o poder. Enquanto não houver uma sociedade harmoniosa, sem explorados ou oprimidos, comunista, a “ferramenta do partido” não termina o seu trabalho, não está totalmente construída.[25]
O problema do partido antes da revolução está mais bem resolvido na reflexão e na experiência do que o partido depois da revolução. Foi um dos problemas do bolchevismo em que “O marxismo e a transição socialista” tenta entrar.[26] Não está claro como é o partido depois da revolução, embora seja claro que é indispensável. Quanto ao partido antes da revolução, a experiência do bolchevismo foi a mais completa. Mas depois da revolução não há experiência “acabada“. Lênin, que dirigiu a revolução e construiu o partido revolucionário mais bem-sucedido da história, morreu angustiado porque outro problema havia surgido, que era a burocratização…
Falamos de práxis, mas ainda não definimos o que é um partido. Pelo menos em um de seus muitos aspectos, que está ligado ao que significa para sua militância. Há uma definição de Trotsky que também remete às “escolas” dos filósofos gregos, e que é profunda: “O partido é uma das escolas da história“. E não porque haja “professores” e “alunos” no partido; lembre-se que outra das “Teses sobre Feuerbach” enfatiza que “o educador também deve ser educado”.[27] Uma “escola de história” significa que uma parte da humanidade na modernidade, sua vanguarda política, militância, seres humanos envolvidos no empreendimento da emancipação humana, passam por uma parte importante de sua experiência de vida lá.
O partido é um terreno onde uma das experiências de vida mais completas é percorrida coletivamente.[28] Em encontros anuais como o Historical Materialism, que são progressistas e expressam um relançamento e uma contraofensiva do pensamento marxista no campo acadêmico, discute-se a dialética e outros temas, o que é extraordinário. O limite é que todas as nuances conceituais da dialética são desenvolvidas, mas isso não significa que realmente sabemos do que estamos falando. Porque a dialética é, acima de tudo, uma prática. Deve ser praticada, exercitada, vivida. O que é, como apontamos acima, o conceito de verdade em Marx: a verdade é encontrada na prática transformadora, na “terrenalidade do pensamento”. E a “forma-partido” tem essa especificidade: combina pensamento e ação. A organização específica que faz essa combinação é precisamente o partido revolucionário (não a academia ou a universidade).
Epicuro formou uma escola filosófica: O Jardim de Epicuro.[29] Na Grécia clássica, havia muitas escolas organizadas por filósofos notáveis: Jônica, Pitagórica, Eleática, Sofista, Socrática, Academia (Platão, IV a.C.), Liceu (Aristóteles, IV a.C.), Cinica, Cirenaica, Estoica e a já mencionada, Jardim de Epicuro. Todas eram, em termos gerais, esferas de compreensão, de processamento, da vida humana e da natureza.[30]
No século XX também houve muitas “escolas de processamento da vida”, na política, na arte e na ciência; a definição que fizemos no início deste texto sobre a vanguarda se aplica a todas elas. O surrealismo, por exemplo, foi uma escola artística, possivelmente a mais revolucionária da arte do século passado, a mais ligada – dialeticamente, não mecanicamente – à revolução socialista, e acaba de completar cem anos (em 1924 se lançou com o primeiro Manifesto Surrealista).
André Breton, seu “chefe editorial”, tinha uma admiração honesta e ilimitada por Trotsky; ele havia compreendido em profundidade – mais do que muitos “trotskistas”! – o significado da revolução socialista e se tornado um anti-stalinista convicto e declarado: “Na mais negra decepção, escárnio e amargura (como nos momentos dos Juízos de Moscou ou no esmagamento da insurreição de Budapeste), é necessário que sejamos capazes de tirar força e esperança daquilo que os dias de Outubro sempre retêm como eletrizante: a consciência do poder das massas oprimidas e da possibilidade de exercerem efetivamente esse poder, a ‘facilidade’ (a expressão é, penso eu, de Lênin) com que se desmoronam os velhos quadros (…)” (“Mensaje al mitin organizando por la sección francesa de la IV Internacional“).
O surrealismo é chamado não apenas a transformar a sociedade, mas também a “transformar a vida”; ambos estão inextricavelmente ligados se falamos de revolução e transição socialista [31]: “Os humanos tiveram que se conscientizar, não apenas de sua condição social, mas de sua condição de humanos” e de extrema precariedade desta condição’ (…) Breton transmite suas palavras de ordem às [jovens gerações]: ‘Devemos lutar não apenas pelo fim da exploração do homem pelo homem, mas também para acabar com a exploração do homem por um chamado ‘deus’ (…) também, sem hipocrisia ou demora, o problema da relação entre homem e mulher (…)” (Historie du Surréalisme; 218).[32]
Voltando ao nosso argumento, uma escola é um “campo de aprendizagem” e de luta. Onde você canaliza sua vida, em que marco faz sua experiência de vida? Na academia, se faz isso no campus, “olhando para o próprio umbigo” para ver se uma teoria da mais-valia mais importante do que a de Marx sai do seu umbigo; uma vida unilateralmente “teórica”. Com a militância populista, que despreza a teoria, vem uma vida reducionista em outro sentido: uma vida meramente pragmática, seguidista, acrítica, como todo populismo.
É por isso que é tão difícil encontrar uma escola tão rica quanto a do partido, que una os dois planos: o teórico e o prático. Um partido que não é um aparato desumano, mas onde o desenvolvimento de cada um é a medida do desenvolvimento de todos (Marx). Esse último é muito louco, porque inverte o bom senso; é uma frase anti-stalinista avant la letre, antes que o stalinismo existisse. Por “oposição”, a vida dedicada ao desenvolvimento de todos (a “empatia com estranhos”) é muito mais rica do que a vida dedicada exclusivamente a si mesmo (uma espécie de vida “narcísica”).
Atenção: aqui a palavra “oposição” é usada em um sentido não literal: a vida militante, que tem um caráter óbvio de “vida pública” dedicada aos assuntos gerais da sociedade, pressupõe um rico desenvolvimento da “vida privada”, não sua alienação. Apesar de ser uma vida mais “sacrificada” do que a vida média das pessoas de classe média, por definição dedicada ao mero “umbigo”, à sua vida privada no sentido literal e burguês do termo.[33]
Por exemplo: é óbvio que a “instituição de clausura” (Ervin Goffman) que são as fábricas, não permite que nada disso se desenvolva. O partido revolucionário muda a vida dos companheiros e companheiras operários, abre suas mentes; eles descobrem um mundo que não haviam imaginado. Mas aos companheiros e companheiras estudantes também mudam, porque isso os faz aterrizar: tampouco é uma vida plena estar “nas nuvens de Úbeda” (a expressão que copiamos de um velho caudilho peronista dos anos 80).
As organizações revolucionárias tendem a reunir as melhores pessoas, as mais abnegadas, aquelas que vinculam suas vidas a um compromisso com o “desconhecido”: é isso que torna o caráter “público” e não apenas privado da vida dos militantes. A vida pequeno-burguesa é privada por excelência. Na vida militante, deve “tirar” do centro a vida privada para se dedicar à “vida pública”, à militância pelos interesses gerais dos explorados e oprimidos.[34] Ter empatia com as pessoas próximas a você é fácil, a questão é tê-la com os universalmente explorados e oprimidos, tirando do centro os interesses exclusivos da vida privada.
O partido socialista revolucionário, essa escola da história atual, é, em nossa opinião, não um aparato desencarnado, mas uma teia de personalidades. Não há como um marxismo anti-humanista entender o que é um partido revolucionário, porque a direção de tal partido tem como uma de suas tarefas fundamentais a formação da militância: a consideração de que cada um dos militantes vale ouro.
Como digressão, ficamos impressionados com um valioso artigo de Alex Callinicos sobre Spinoza, “Marx y Spinoza”, de outubro de 2023, onde ele, no entanto, faz muitas concessões a Althusser.[35] O texto é valioso e educativo, mas as reverências a Althusser são enjoativas: que o filósofo francês está certo em sua ideia de “causalidade estrutural” (não entendemos o que isso acrescenta à dialética hegeliana), que Bellamy Foster comete um erro grave “quando reivindica a Dialética da Natureza de Engels”, que o conceito de negação da negação (“negação determinada”) é “altamente problemático”, etc.
O mais grave é quando ele afirma que Marx teria elementos “anti-humanistas” (sic): “(…) há um elemento de verdade (…) em que tanto Spinoza quanto Marx são anti-humanistas no sentido de Althusser. Ou seja, ambos rejeitam a problemática da soberania do sujeito autodefinido originada sobretudo em Descartes e em sua tentativa de fundar uma filosofia de pura ‘autoconsciência’: ‘Penso, logo existo’” (“Marx y Spinoza”).
Callinicos critica corretamente Franck Fischbach por sua aprovação de uma declaração de Frédéric Lordon, onde este inclina demais a vara para o lado do “determinismo” em sua leitura de Spinoza, perdendo de vista o fato de que para Marx “a liberdade é um valor central, alguém que acredita que os trabalhadores podem se emancipar da dominação do capital” (uma afirmação capital com a qual concordamos com Callinicos).
No entanto, por mais correta que nos pareça essa parte de seu ensaio sobre Spinoza (porque na realidade é mais um ensaio sobre Spinoza do que um estudo comparado a Marx), o que não se entende é o que Marx teria de “anti-humanista”: desde quando humanismo significa considerar os seres humanos fora de suas condições materiais de existência?
Para concluir esta digressão sobre Spinoza, nos remetemos a Nicolas González Varela que, como Callinicos, enfatiza que o próprio Althusser reconheceu que Marx não poderia encontrar em Spinoza o que encontrou em Hegel, a dialética, mas, além disso, acrescenta: “O materialismo de Marx pode ser pensado sem o método dialético? Eu não consigo imaginar. A tentativa, a fuga teórica do estruturalismo, de ‘buscar argumentos para o materialismo’ que Althusser defendeu pode chegar ao limite em que a interpretatio desfigura não apenas Spinoza, mas o próprio Marx” (Spinoza dopo Marx)[36]
Voltando ao nosso desenvolvimento, em síntese: o partido é um “entramado de personalidades”. E como o partido é isso, um conjunto de relações entre seus membros, devemos ter muito cuidado em separar o objetivo do subjetivo nessas relações. Temos amigos no partido. Mas o partido não é um “grupo de amigos”: é uma organização de camaradas que lutam pela revolução, o que é algo bem diferente. As relações entre seus membros são políticas e não pessoais, embora, insistimos, dentro do partido, inevitavelmente, existam grupos de afinidade por traços pessoais, o que é normal.
2- Uma “organização de combate”
Junto com o exposto, há outra reflexão que estamos interessados em desenvolver aqui. Não estamos no comunismo para nos dedicarmos ao “cultivo de margaridas”. Epicuro tinha belos pensamentos, mas vivia em uma sociedade que dependia da escravidão. Aristóteles era um pensador grandioso, mas dividiu os instrumentos de trabalho em “mugido” e “não-mugido”; os mugidos eram os escravos e os animais, os não-mugidos as ferramentas. Os seres humanos eram apenas os cidadãos…
Em nossa experiência histórica, em nosso “arco de experiência temporal” na sociedade de classes, tudo é luta, e o partido é uma ferramenta de combate para essa luta. É uma “escola” que se desenvolve em um contexto em que, se as coisas se põem revolucionárias (ou contrarrevolucionárias), o sangue corre. Porque não há transformação social sem revolução (isto é, sem sangue). O partido é também e acima de tudo uma ferramenta para fazer a revolução: um partido que faz revoluções. E fazer uma revolução é também uma “contabilidade” dos companheiros e companheiras que conseguem passar, e dos companheiros e companheiras que morrem em batalha… A guerra e a política dialogam entre si porque a luta política se transforma em luta física, em guerra civil.
Isso ocorre porque nenhuma classe social renuncia a seus privilégios sem opor a sua força material. E porque a força material dos exploradores deve se opor à força material dos explorados; passar das “armas da crítica para a crítica das armas” (Marx).
O partido é uma espécie de destacamento avançado da classe operária na luta para derrotar a burguesia política e fisicamente. Portanto, possui necessariamente elementos de organização de combate (mesmo que não seja só isso). E isso se combina com outro tipo de combate: aquele que ocorre entre correntes concorrentes. Mártov tinha identificado vivamente o carácter deste tipo de combate como uma «guerra de guerrilhas»: a luta das tendências é psicologicamente mais árdua do que a luta contra a burguesia. A luta de tendências forja a psicologia da militância e da liderança; “depois”, a luta contra a burguesia, a burocracia e o aparato estatal em geral, é o que forja a “consciência física” de uma organização revolucionária.
A luta contra o stalinismo combinou as duas batalhas que mencionamos acima: foi muito difícil porque era física e psicológica ao mesmo tempo. Inesperada, impensável, despercebida por nossos clássicos (Moshe Lewin), começou como uma luta política e psicológica e continuou em uma luta abertamente física e, e inclusive, policial. A contrarrevolução stalinista, lenta, rastejante e abrangente, como Trotsky a definiu, foi um grande desafio que permanece tão complexo até hoje (um verdadeiro “hieróglifo social”, como Bensaïd o definiu, comparando-o aos segredos ocultos da mercadoria).[37]
O Birô Político dos bolcheviques, nos anos 1924, 25, 26, como Trotsky estava enfermo, não se sabe de que – obviamente estava doente de estresse e depressão, porque via o mundo desmoronar diante de seus olhos – se reuniu em sua casa, em torno de sua própria cama, com Stalin e o resto, mas antes disso houve uma reunião secreta de facções de Stalin, Zinoviev e Kamenev preparando a reunião; foi um show. Não houve luta mais difícil psicologicamente do que a da Oposição de Esquerda. Basta ler textos clássicos como os de Arthur Koestler, Yogui y el comisario ou El cero y el infinito (dedicado às confissões nos Grandes Expurgos), obras de Victor Serge como Memórias de um Revolucionário, os próprios artigos de Trotsky como “Kamenev e Zinoviev” e tantos outros para perceber as circunstâncias dramáticas em que a Oposição de Esquerda teve que lutar.
A linguagem política se transforma em linguagem guerreira porque tem uma parte da luta que é física. Isso também é verdade para as relações entre as tendências da esquerda, contra as quais se deve romper “fisicamente” quando necessário. A arte da luta física se aprende melhor do que em qualquer outro lugar do que no seio da classe operária, porque ninguém luta melhor do que a classe operária quando está pronta para lutar.
A maioria das organizações revolucionárias deste período histórico é composta por poucos camaradas do ambiente manufatureiro.
Os “corpos” estudantis e de trabalhadores e trabalhadoras do Estado não são muito endurecidos na “vida física”; quando os operários e operárias aparecem, “são outros corpos”: são corpos forjados no trabalho fabril, que, apesar das análises pós-modernas em voga, continuam a ter um grande componente de exigência física. Inclusive na cultura popular existe uma prática diária dessa arte de “luta física” que não é característica das classes médias. Quando levantamos o problema do serviço militar, dizem-nos: “não vamos falar sobre isso, não cai bem“…, mas para quem vem da classe média, ser jogado em um quartel onde você não é ninguém, não é tão simples, obriga você a aprender a regular. E isso tem a ver com o que um partido deve ser em condições que estão se tornando revolucionárias: aprender a lidar com a vida (o serviço militar e o trabalho na fábrica são uma boa “escola revolucionária” nesse sentido para o mundo vindouro!). Nestas últimas gerações tão “light” no Ocidente, isso não é tão fácil de aprender: vamos colidir de frente com a maré da revolução e da contrarrevolução, e nesse espelho nós temos que olhar para nos preparar psicologicamente.
O problema é que, como em tantas outras coisas, não existem “aulas teóricas de natação”: você aprende a nadar mergulhando na piscina, e é por isso que as novas gerações terão que se forjar nas condições materiais de barbárie e revolução do mundo vindouro; para essa “escola” você tem que se preparar, em princípio, mentalmente.
As gerações anteriores tiveram o fio da Guerra Civil Espanhola, a experiência de ditaduras militares, a experiência de seus pais nos campos de concentração do nazismo e coisas assim; as novas gerações perderam esse fio de continuidade, que os partidos revolucionários devem restabelecer para prepará-los para os eventos sangrentos que estão por vir.
No campo da estratégia, a linguagem política se repisa com o “guerreiro” por causa de algo que Trotsky apontou em “Sua Moral e a Nossa”: há uma simetria inevitável entre os métodos de luta dos exploradores e dos explorados. O que isso significa? Se o inimigo pratica o terror branco e nós não praticamos o terror vermelho, o setor indiferente das massas vai com o inimigo, porque acaba se voltando para o lado de que mais tem medo.
Lembremos que este valioso texto de Trotsky (educativo, mas também crítico por resumido e concentrado) continha, por elevação, uma polêmica com Victor Serge, que tinha uma posição humanista tout court. Serge, seguindo os anarquistas, condenou Kronstadt e culpou Trotsky pela repressão da guarnição. Na realidade, não foi sua responsabilidade, mas de um voto unânime do X Congresso do Partido Bolchevique, uma decisão que defendemos,[38] mas o fato é que Serge defendeu uma espécie de “humanismo abstrato”, isto é, fora das condições concretas da luta de classes, a medida última para tudo em nossa opinião.[39]
Para Serge, com enorme sensibilidade socialista, a vida humana estava acima de tudo. Para Trotsky, e para nós, não: o que está acima de tudo são as leis de ferro da luta de classes revolucionária no sentido emancipatório; não há escapatória materialista disso, dessas condições de luta que não escolhemos, que nos são dadas pelo inimigo burguês e imperialista.[40]
Logicamente, a “repressão” da revolução não deve ser confundida com a da contrarrevolução, que é muito diferente. Nem devemos fazer da necessidade uma virtude: se somos forçados a praticar o terror vermelho, é porque não há outra alternativa; o terror vermelho significa perigos não apenas para os contrarrevolucionários, mas também para a revolução: pode desencadear uma lógica própria que militariza todos os acontecimentos, como aconteceu na guerra civil dos bolcheviques contra os brancos.
Os “homens de capa preta” agiram por conta própria, sem tribunais oficiais de justiça, muitas vezes se apropriaram da propriedade dos reprimidos etc., e a lição histórica é que devemos cuidar para que essas coisas não aconteçam; mas isso não pode dar origem a uma história de “revolução de veludo”. Como Engels afirmou no Anti-Dhüring, a violência é a parteira da história em sociedades grávidas de uma nova, e não há como pular materialmente a violência, a menos que os exploradores se tornem “pacifistas”.
Mandel tem um artigo dedicado à defesa da Revolução Russa, “Octubre de 1917: ¿golpe de Estado o revolución social? La legitimidad de la Revolución Rusa” (Viento Sur), que contém um relato crú de como o terror branco assassinou os bolcheviques que capturou: os enterraram vivos até o pescoço … e passavam com os cavalos sobre suas cabeças. Tal é a luta de classes: implacável.
E se o partido é revolucionário, tem que saber como é, mesmo que seja, por enquanto, intelectualmente: é bruto, é sangrento. Uma luta até a morte, assim como aconteceu na primeira era dos extremos (1914-1945).
No momento, não atingimos o nível de violência que havia nos anos 70. Mas, estamos entrando em uma nova era de extremos; novas condições revolucionárias (ou contrarrevolucionárias) estão chegando para as quais será necessário nos temperar em novas regras do jogo. E esse é o outro lado do partido: uma das escolas de história e uma organização de luta até a morte contra o inimigo de classe.
Nesse sentido, reivindicamos criticamente o PST dos anos 1970, um dos melhores momentos do morenismo (o PST teve mais de cem desaparecidos, além de vários camaradas assassinados pelo Triple A). O PST passou no teste da ditadura militar que deu origem à fundação do velho MAS. Sua história é uma parte crítica da tradição trotskista do pós-guerra que reivindicamos (os fios de continuidade revolucionária que eles expressaram).[41] Moreno lutou essa luta corretamente. Quaisquer que sejam os erros políticos que ele possa ter cometido, sua posição estratégica diante do guerrilheirismo estava correta.[42]
Foi mais terrenal e proletário do que o “romantismo revolucionário” de Mandel e Bensaïd, que, apaixonados pelo guerrilheirismo, enviaram dezenas de seus militantes para a morte. Bensaïd faz um relato honesto em sua autobiografia, “Uma lenta impaciência”, um texto de grande riqueza, do desastre da experiência de guerrilha de sua corrente.
Bensaïd veio à Argentina em 1974 para um debate com o morenismo, como não podia ficar com membros de seu grupo, a Fração Vermelha, devido à sua militarização, foi forçado a ficar em uma casa de membros do próprio PST. Os militantes morenistas transmitiram-lhe uma profunda desconfiança que o deixou extremamente desconfortável. Mas o fato é que a Fração Vermelha tinha toda a sua atividade militarizada, absorvida em buscar e rebuscar armas e no transporte daqui para lá; seu debate político era igual a zero e seu transbordamento organizacional era total, como o próprio Bensaïd reconhece. Pode passar algumas noites com seus companheiros e companheiras, apenas para meses após seu retorno à França ter todos os seus camaradas mortos pela repressão estatal … Ser enfant terrible no maio francês era uma coisa; ser um na Argentina do Triple A e da ditadura era algo muito diferente.
Em suma, o partido é essas duas coisas: uma das “escolas de história” no sentido amplo de “formação” militante e uma escola de luta. Nesse período histórico, as correntes de origem argentina têm a sorte de que a “prática no terreno” esteja presente desde o Argentinazo (2001). Periodicamente temos “sessões de formação” no confronto de rua, além de eventos de ocupação de fábrica, um tanto mais raros, mas de imensa importância estratégica,[33] que é um elemento importante para que os reflexos combativos da organização não sejam entorpecidos.
E isso também pode nos transportar para o clima que existia no início da Guerra Civil Espanhola e seu impacto em artistas surrealistas como Benjamin Péret, no local dos acontecimentos, em suas cartas a André Breton: “Vou para Madri, à frente da Somosierra. Já estive na frente de Aragão. As coisas se complicam pelo fato de que o governo francês [da Frente Popular, R.S.] obstrui por todos os meios o armamento de Barcelona e Madri. Por outro lado, o entusiasmo dos milicianos é magnífico, embora haja uma confusão entre os anarquistas que você não pode imaginar. Durante esta viagem, vi mais de sessenta aldeias e viajei mais de mil quilômetros. Em todos os lugares uma espécie de sovietes foi instalado, mas como eles não levam o nome, ninguém percebe, e a Generalidad da Catalunha faz esforços consideráveis para manter o povo em sua cegueira. Em Valência, o governo de Madri não tem poder. Os partidos operários aliados à pequena burguesia governam. Todos os dias penso em escrever-vos longamente, mas estou ocupado com mil coisas para o POUM e o POI (…) Conto ficar neste magnífico país por vários meses”. (carta de Péret para Breton, Valência, 26/09/36).[44]
Dado que estamos entrando em uma nova era de extremos e que este artigo também foi cruzado, diagonalmente, por questões relacionadas às vanguardas artísticas, podemos apontar que esses movimentos de vanguarda foram atravessados pelas circunstâncias geradas pela era dos extremos, começando com o movimento Dada, que repudiou niilisticamente toda arte para rejeitar a “civilização” (capitalista) que levou à carnificina (massacre) das trincheiras, mas também o próprio Picasso, que sempre pareceu tão distante das questões políticas (exceto no caso explícito de Guernica).
Em 2023 (50 anos após a morte do pintor espanhol) o Musée Picasso apresentou sua histórica coleção Picasso, Picasso Celebration, A coleção sob uma nova luz, dirigida pelo conhecido estilista britânico Paul Smith, de uma nova maneira e o faz em um catálogo muito educativo sobre as diferentes fases do pintor espanhol. A referência neste ponto final de nosso artigo está ligada ao significado de uma época de extremos mesmo na arte, não apenas tão explícita e brilhantemente apresentada em Guernica, mas em outras obras de Picasso. Por isso, a seguinte referência a uma etapa de sua obra é útil para concluir este texto: “Como que remetendo a um passado distante e até mesmo ao inelutável destino de cada indivíduo, os ossos serviram como objeto de estudo aos artistas, que os usaram como ponto de partida para muitas de suas criações ‘biomórficas’. Na fronteira entre a vida e a morte, entre o passado pré-histórico e o futuro apocalíptico, algumas destas obras com uma aparência de fim do mundo, poderiam ser interpretadas como uma mensagem programática face ao início da Segunda Guerra Mundial” (capítulo do catálogo que estamos citando dedicado à fase “biomórfica” da obra de Picasso; pág. 86).
E assim estamos: em um novo mundo que se equilibra entre barbárie e revolução e para o qual as organizações revolucionárias assumem uma nova e urgente relevância.
Bibliografia:
Alexandre Billet, “Além da realidade. No centenário do surrealismo”, againstthecurrent.org, 12/05/24.
André Breton, “Mensagem ao encontro organizado pela seção francesa da Quarta Internacional. O 40º Aniversário da Revolução de Outubro”, outubro de 1957, MIA.
Alex Callinicos, “Marx e Spinoza”, Socialista Internacional, 10/11/23.
Maurice Nadeau, Histoire du surréalisme, Maurice Nadeau, Paris, 2016.
Benjamin Péret, “Cartas para André Breton enviadas da Espanha, 1936/37”, com um esboço biográfico de Péret por Agustín Guillamon, MIA.
Elisabeth Roudinesco, Freud em seu tempo e no nosso, Debate, Argentina, 2023.
Roberto Sáenz, “Ensayo de interpretación del modernismo”, web left.
Política revolucionária como arte estratégica, esquerda da web.
“IX Congresso do NMAS. Um triunfo que é, ao mesmo tempo, um ponto de chegada e um novo ponto de partida”, web esquerda.
Paul Smith, celebração de Picasso. A coleção sob uma nova luz, Musée Picasso, Paris, 2023.
Nicolas González Varela, “Spinoza dopo Marx: apuntes de lectura”, web esquerda.
Notas:
[1] O documento fundacional de nossa corrente é intitulado ” Aportar al relanzamiento de la batalla por el socialismo “, novembro de 1999, e ainda não o carregamos no site izquierda web. [2] O texto se intitulava algo como “Panorámica general sobre el movimiento trotskista en el siglo XXI“, mas não está disponível na web. É óbvio que temos uma grande digitalização de arquivos de nossa corrente pela frente, especialmente quando nos afastamos dos últimos anos. [3] Essa ideia da “rotina dos dias” e sua quebra veio até nós de um conceito na obra do crítico de arte John Berger. [4] “Una vez más sobre la alternativa ‘socialismo o barbarie “, izquierda web. [5] Fanon, não por coincidência, era psiquiatra de profissão e pinta um retrato da pessoa sob a condição colonial que é extremamente penetrante. Outra questão é a de suas táticas terroristas, que não são o método do socialismo revolucionário. [6] O primeiro presidente provisório nomeado pela Câmara Legislativa também acaba de ser deposto, por razões que não são relevantes aqui. [7] O marxista brasileiro Valerio Arcary é outro exemplo desse unilateralismo: ele olha para o mundo a partir do Brasil e não vice-versa, como convém aos socialistas revolucionários. E com essa visão ele aprofunda sua teorização derrotista e reformista. [8] Temos uma visão não pacifista do serviço militar obrigatório. Mas não vamos desenvolver aqui esse tema que requer uma atualização no contexto do século XXI. [9] Também aqui existe a contradição entre o eleitoral e o estrutural. Em geral, os “centros nucleares” dos países do Ocidente, as capitais mais cosmopolitas, votam na centro-esquerda (embora haja exceções, é claro: São Paulo, Buenos Aires etc.). Este não é um fato menor que, em geral, não é levado em consideração. É também por isso que o mecanismo eleitoral e o regime político funcionam para a extrema direita: por suas características, uma pessoa – um voto, fazem valer o mais atrasado sobre o mais avançado (esse ensinamento também é útil para aqueles esquerdistas que defendem o sufrágio universal sob a ditadura do proletariado). [10] É óbvio que a derrota do velho MAS foi uma combinação de eventos internacionais e nacionais, desarmamento estratégico, a morte de Nahuel Moreno, as pressões do regime político etc. Foi chocante que isso significasse uma debandada vergonhosa de toda a sua velha direção; nenhum dirigente importante ficou de pé (exceto pelas correntes morenistas residuais, todas em declínio estrategicamente falando). O velho MAS tinha elementos de adaptação ao regime, mas não é que traísse; Trair é entrar em um governo burguês, e não foi o caso. Sua adaptação ao regime é bastante semelhante à que a FITU dirige hoje. Da crise do morenismo sem Moreno, nasceram duas correntes que surgem com perspectivas estratégicas, para além do que possamos avaliar mais “subjetivamente”: as correntes emergentes do PTS (FT) e do NMAS (SoB). O resto é apenas pó. A outra corrente latino-americana de algum peso é o altamirismo, hoje dividido em dois e para o qual é difícil encontrar uma perspectiva internacional em seu pragmatismo “cão”. Uma corrente que carece de qualquer elaboração estratégica em qualquer terreno do marxismo que não seja a “análise” da conjuntura e o piqueterismo. É lógico que, a partir dessa carência, seja uma corrente que só sabe se arrastar junto com as outras, ainda que faça caretas: o último sufoco foi o seu artigo contra as PASO, que durou um dia: quando o PTS os chamou à ordem, eles imediatamente se enquadraram novamente como gendarmes das PASO. [11] Apesar da vergonha insigne que é o peronismo, que não é muito visível além da ampla vanguarda, o voto útil, mesmo nas eleições parlamentares, pode funcionar muito bem. O dirigente da ATE, Aguiar, prometeu cortar a cabeça do leão (Milei)… com os votos de 2025 para o peronismo. De sua parte, Bregman se curva todos os dias aos K’s e joga o jogo do oportunismo parlamentar dia e noite; a grande “batalha” do dia do PTS e seus asseclas é rasgar suas roupas para a manutenção de seus negócios: as PASOs proscritivas.[12] Pessoalmente, estou muito incomodado com os “dirigentes” ou intelectuais marxistas que não se engajam na militância de base; eles são feitos de “papelão pintado”, eles não podem ver nada porque somente com a militância de base a realidade pode ser vista. Para “ver”, falando em termos marxistas ou em qualquer outra “ciência prática”, é preciso ser militante. Está cheio de caras que falam sobre dialética, que montam grandes esquemas, mas que não vivem, não sabem como praticá-la e, portanto, não sabem o que é. A dialética é uma arte e, como tal, deve ser praticada; nisso Ilyenkov é sólido: “Depois deste trabalho [referindo-se ao trabalho sobre os surdos-mudos, R.S.] estou convencido, com base nos fatos: trata-se da capacidade de um corpo humano de agir e se comportar em relação aos corpos do mundo externo de acordo com sua própria lógica. Toda criança, não apenas surda ou cega, torna-se um ser pensante quando aprende a agir com objetos criados pelo homem para o homem: uma colher, um prato, um brinquedo, um cobertor etc. Quando ele assimila este mundo e começa a agir em forma humana, ele obtém o que chamamos de pensamento humano, mentalidade” (“El Derecho a la Creatividad”, idem).
[13] As distopias de ficção científica estão em voga há várias décadas. Primeiro com a questão nuclear, agora com a crise ecológica, a ficção científica distópica se renova. Estamos em um contexto em que é difícil pensar em um mundo emancipado, como se essa aspiração fosse algo irreal; como se o comunismo fosse impossível. [14] Logicamente, é necessário saber diferenciar os movimentos de suas direções. [15] A base deste texto é o encerramento do ponto de partida do IX Congresso. No entanto, foi fortemente editado para publicação. [16] Não tínhamos percebido, quando escrevo este artigo, que os textos de nosso partido para este IX Congresso propõem exatamente o que Trotsky diz: aproveitar o salto de qualidade que alcançamos como corrente para dar um salto em quantidade. [17] E o artigo continua com algo muito pertinente no contexto do nosso IX Congresso, algo que foi pensado especificamente no calor da construção de nossos anos atuais (2014). Nossa investigação sobre a vanguarda artística foi realizada, expressamente, para compreender a dialética da luta das tendências políticas: “Em poucas palavras, Trotsky resume a ‘mecânica’ do surgimento de toda nova corrente que ganha o direito à sua existência histórica como tal, e que deve ser sempre ‘modernista’ à sua maneira, isso no sentido de passar por um movimento de superação crítica das ‘identidades’ estabelecidas. As vanguardas artísticas, [científicas] e políticas têm, portanto, pontos de contato sobre os quais o objetivo deste ensaio é refletir: o nascimento de cada nova escola e suas relações dialéticas com as anteriores” (idem). [18] A continuidade do projeto de publicação das Obras Completas de Marx e Engels, MEGA 2, deu um grande desenvolvimento a esse boom da marxologia expresso em vários dos autores com acesso a ele (a edição está em alemão original). [19] Kevin Anderson acaba de republicar uma obra de 30 anos atrás, precisamente dedicada à relação entre Lênin e Hegel: Lênin, Hegel e o marxismo ocidental. Embora Trotsky também não estejam indo bem, para ser honesto. Muitos dos estudiosos da dialética pulam um texto tão valioso quanto seus “Escritos sobre Lênin, Dialética e Evolucionismo”, MIA (veja a esse respeito nossa “Dialética como arma estratégica”, web esquerda). [20] É evidente que esse critério de verdade rompeu com o idealismo no caminho para o materialismo no campo epistemológico. [21] O jovem marxista japonês Kohei Saito está errado quando afirma que Marx abandonou a filosofia tout court (do desenvolvimento do materialismo histórico, 1846). Ele afirma isso erroneamente sem pensar duas vezes (Ecossocialismo de Marx. Capital, Natureza e a Crítica Inacabada da Economia Política, 2017). [22] Bensaïd é incisivo quando aponta que Marx faz “ciência de uma maneira diferente”, o que o próprio Marx chamou de “ciência alemã” (Marx intempestivo). Bensaïd desenvolve isso em polêmica com um marxista muito sério como Sacristán, mas que propôs uma regressão da dialética à lógica formal (positivista). [23] A ideia de aproximações sucessivas é importante aqui porque um duplo processo ocorre no curso da experiência militante, da construção de nosso partido e corrente: nossa reflexão foi amadurecendo em concomitância com nossa experiência militante e nossa aplicação o mais sistematicamente possível ao estudo crítico do marxismo. [24] Em nossos documentos partidários, apontamos que isso correspondia à ideia de análise de Freud e seu artigo “Análise Terminável e Interminável” (talvez mais do que com o conteúdo do texto, mantemos seu título para ilustrar nossa ideia sobre a dialética da construção partidária). [25] Para isso, basta olhar para o que aconteceu com o Partido Bolchevique com a burocratização stalinista. Chegaremos a isso imediatamente. [26] Parece que finalmente estamos nos inclinando para uma obra em três volumes, o segundo referindo-se à economia da transição e o terceiro, precisamente, à “forma-partido” e todas as vicissitudes que cercam essa forma específica de organização. [27] Trotsky retomou essa ideia, contra a burocracia stalinista emergente e a ideia zinovievista da liderança no “papel de educador” da base, em New Course. Lá, ele critica a afirmação de Zinoviev de que, devido ao baixo nível da base partidária na época, a democracia partidária não era aplicável: ele tinha uma ideia demagógica e aristocrática do partido. [28] Dizemos “coletivamente” devido ao fato óbvio de que um partido é uma organização coletiva, uma arena onde a experiência é levada adiante em relação aos outros. Se, no final, o ser humano é apenas delimitado na sociedade (Marx), o partido, como uma das escolas da história, é um dos “concentrados” dessa definição. Porque o partido, como qualquer outra “instituição” (as universidades, os hospitais, o exército etc.), é uma esfera de experiência coletiva, neste caso a experiência da luta pela emancipação da sociedade, pelo comunismo. [29] Samos, perto de Atenas, século IV aC. Sua escola pregava uma filosofia materialista de felicidade, tranquilidade da alma e ausência de dor (ele tinha um ponto fraco: rejeitava a política). Este espaço era uma espécie de “refúgio” intelectual onde Epicuro e seus discípulos refletiam sobre a vida, a morte, o prazer e a natureza do universo. Há um bom capítulo sobre Epicuro na Ecologia de Marx. Marxismo e Natureza, obra de Bellamy Foster de 20 anos atrás que nos parece melhor e mais conceitual do que a posterior (embora neste os capítulos dedicados a Engels sejam muito bons): O Retorno da Natureza. O último trabalho de Foster, A Dialética da Ecologia, não lemos. Além de suas posições políticas “pró-chinesas”, acreditamos que Foster contribui muito para a compreensão dialético-material do materialismo de Marx e Engels. [30] Quando dizemos «processamento da vida», queremos dizer que se trata de uma reflexão sobre a experiência da vida humana, o que o pensamento grego era, em última análise: uma janela aberta para a reflexão sobre o sentido da vida. [31] Nos debates na fase final do velho e muito velho MAS, um camarada meio esquemático, mas honesto e sensível, apelidado de “Lolo”, tinha assumido esta ideia para a opor, inexplicavelmente, à ideia do partido. Nunca mais o vimos, mas ele era uma das poucas pessoas honestas do grupo humano que mais tarde formaria a revista Herramienta (este grupo passou do socialismo revolucionário ao “nacional-socialismo” e hoje é um dos muitos grupos em que o FPDS foi dividido). [32] É importante deixar claro que o surrealismo se opôs frontalmente ao “realismo socialista” stalinista: “A primeira tarefa, então, é restabelecer o significado original do surrealismo. Surrealismo, uma palavra estabelecida por Guillaume Apollinaire em 1917: ‘sur’, que significa ‘além’, e ‘realisme’, realismo [ou seja, além da ‘realidade’ aparente, RS]” (“Além da realidade. No centenário do surrealismo”, Alexander Billet). Billet define o surrealismo como um “marxismo gótico”, uma definição que achamos sugestiva. [33] Enquanto escrevemos esta nota, estamos folheando um livro intitulado Freud em seu tempo e no nosso, de Elisabeth Roudinesco, um livro sério e documentado, mas o capítulo dedicado à vida privada de Freud, “Famílias, cães, objetos”, nos parecia um tédio de chumbo. Não pretendemos comparar a vida de Freud com as “vidas extraordinárias de pessoas extraordinárias” como Lênin ou Trotsky; mas mesmo as “vidas comuns de pessoas extraordinárias” como Marx e Engels, que se caracterizavam por sua conexão com a vida política, são mil vezes mais interessantes do que a vida de Freud, estritamente apolítica (Marx no século XXI, Web Left). [34] Logicamente, há gradações em tudo isso. [35] É claro que, em nossa opinião, Althusser é um guia equivocado para um marxismo pós-stalinista. [36] É claro que a NGV tem uma posição muito diferente em relação a Althusser do que Callinicos, uma posição que está muito mais próxima de nós. [37] É por causa da complexidade e das lições históricas dessa experiência que dedicamos décadas de elaboração ao assunto, resumido até agora em Marxismo e a Transição Socialista, Volume I, mas que trará nos próximos anos um Volume II e até mesmo um Volume III (a abordagem da economia da transição e a construção do partido revolucionário, tópicos que não estão na academia marxista hoje). [38] A este respeito, veja nosso texto “Ascensão e queda do governo bolchevique”, web esquerda. [39] Os anarquistas daquela época, 1937, eram hipócritas porque haviam entrado no governo burguês junto com o stalinismo, um governo que perseguiu Andreu Nin e a liderança do POUM até a morte, destruindo esse partido de fato. [40] Aqui podemos citar outro texto de nossa autoria: “Os fins, os meios ou as leis de toda política”, web esquerda. [41] Nossa corrente não reivindica em particular nenhuma corrente do trotskismo do pós-guerra. No entanto, afirmamos que em vários deles houve experiências importantes que deram continuidade ao marxismo revolucionário como uma experiência organizada. Somos nutridos pelo que consideramos melhor dessas experiências como uma “caixa de ferramentas” para nossas necessidades do presente e dentro da estrutura de nosso equilíbrio estratégico como uma corrente internacional. [42] Devemos a nós mesmos um balanço crítico da experiência do PST e, especificamente, do antigo MAS. Preferimos começar com um balanço histórico-estratégico-internacional e a partir daí abordar os balanços construtivos específicos, como os que temos pendentes em relação ao PST e ao antigo MAS. [43] Nosso Partido foi protagonista de vários deles no último período desde 2001 (assim como o PO e o PTS também tiveram os seus, não vamos entrar aqui no debate do equilíbrio). O PO liderou uma dura luta no Casino de Buenos Aires, o PTS em Zanon, Kraft e Lear (embora, em geral, se posicionando contra a ocupação da fábrica), e nosso partido no jornal Crónica (ocupação por 5 dias do prédio editorial), Pilkington, as duras lutas fundacionais da nova experiência antiburocrática no pneu, a apreensão da ponte rolante em Gestamp, entre outros. [44] Benjamin Peret (1899/1959), um grande poeta do surrealismo, viajou para a Espanha como representante do movimento trotskista. Ele permaneceu um revolucionário e anti-stalinista por toda a sua vida.
Tradução: José Roberto Silva