Declaração da Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie
O anúncio de um acordo de cessar-fogo em Gaza foi recebido com festejos nas ruas entre os escombros e tendas que se tornaram refúgio da população de Gaza. As coisas são simples, para os palestinos não há muito espaço para cálculos tácticos: a realidade é que resistiram a um genocídio sistematicamente perpetrado por 15 meses! Não estão interessados em pensar nos pormenores das concessões e nas idas e vindas de uma negociação internacional. Os palestinos festejam o fato de terem sobrevivido ao massacre. É por isso que encaram isto como um triunfo, é por isso que celebram, e têm razão para celebrar. É, de fato, muito simples de compreender.
Por outro lado, a sociedade e a burguesia isreaelense estão divididas. Os ministros de extrema-direita do governo de Netanyahu, como Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, ameaçam demitir-se e boicotar o governo se o pacto de cessar-fogo em Gaza entrar em vigor. Os seus desejos são também muito simples: não estão interessados nos reféns, apesar da campanha internacional do sionismo para que se concentrem neles. O seu único desejo é acabar o trabalho de destruição do Hamas e de limpeza étnica. Enquanto as organizações internacionais de lobby sionista encheram as grandes cidades do mundo com cartazes sobre os reféns, algo muito diferente foi feito no solo palestino ocupado: perpetraram o maior genocídio “político” desde a Segunda Guerra Mundial no gueto de Gaza.
Smotrich afirmou há alguns meses que “é possível e necessário ocupar Gaza” e que “podemos fazer com que a sua população seja menos de metade do que é atualmente em dois anos”. Ben-Gvir participou numa manifestação fora de Gaza da organização de colonos Nachala, dirigida por Daniela Weiss, na qual afirmou que o seu objetivo era “colonizar Gaza, não uma parte de Gaza mas toda a Gaza” e que “os árabes perderam o direito a estar aqui”. Não se trata de vozes marginais: são ministros do governo que podem definir o futuro do cessar-fogo em Gaza.
No entanto, a sociedade sionista está dividida. Israel também está cansado do esforço de agressão e massacre sistemáticos. E da resistência do povo Palestino, que conseguiu manter 100 reféns sob o seu controle, exercendo o seu legítimo direito de auto-defesa.
Em Tel Aviv, diante dos gabinetes de altos funcionários, as famílias dos reféns mobilizaram-se para exigir que todas as fases do acordo de cessar-fogo de Gaza sejam cumpridas. Temem que, quando for alcançada a fase 2, Israel desista, regresse ao massacre e os restantes reféns nunca sejam libertados. Desde o final de 2023, têm denunciado que o governo os está a utilizar como desculpa, que não tentou realmente nada para o regresso dos reféns. É verdade: quando se deu a primeira curta trégua ao massacre, em novembro passado, Netanyahu disse que não haveria paz enquanto o inimigo não fosse exterminado. Chamam-lhe Hamas, mas o seu objetivo subjacente é a limpeza étnica. Querem uma solução final para o povo palestino.
Na altura da invasão do Líbano por Israel, em outubro de 2023, afirmamos: A política sistemática de Israel de limpeza étnica contra os palestinos não é apenas mais uma característica do Estado sionista, é uma parte necessária da sua existência, inseparável do projeto sionista. A criação de um etno-Estado puramente judeu num lugar onde a população judaica era muito minoritária significou, desde o início, que a população majoritária e original da Palestina histórica seria varrida do mapa. Ninguém que não seja judeu não pode ser um cidadão de pleno direito num etno-Estado como Israel. Um projeto de Estado etnicamente “limpo” é semelhante ao dos nazis em muitos aspectos, e não pode existir sem os métodos dos nazis. A limpeza étnica num país que existe através da colonização é uma condição necessária para a sua existência”. (A agressão sionista ao Líbano é um aprofundamento do genocídio palestino)
A magnitude da agressão genocida desde os últimos meses de 2023 não tem precedentes. Isto desencadeou mobilizações mundiais em defesa do povo palestino, que têm semelhanças com as mobilizações em defesa do povo vietnamita há 50 anos. As marchas massivas pressionaram a administração Biden e agora pressionam Trump, que quer assumir o poder com “este problema resolvido”.
No entanto, estes desejos chocam-se com os de muitas figuras do alto escalão sionista, incluindo dentro do próprio governo, que vêem nesta ofensiva uma oportunidade para finalmente concretizarem a colonização total da Palestina (uma política que não é a do imperialismo tradicional, pelo menos até agora – veremos o que Trump levará adiante).
O seu projeto explícito, repetimos, é fazer desta “guerra” a fase final de sua limpeza étnica. No entanto, a sua crise reside no fato de verem o acordo de cessar-fogo em Gaza como um obstáculo no caminho traçado por toneladas de bombas. Daí a crise política aberta no Estado sionista, daí os atrasos na assinatura do acordo (que continua a ser parcial e instável). É por isso que se queixam enquanto os palestinos festejam.
O possível acordo de um cessar-fogo
O anunciado acordo de cessar-fogo em Gaza possui várias fases. Mas há que ter em conta que se trata ainda de um projeto. A sua aplicação ainda não foi confirmada, mas, em teoria, deveria entrar em vigor no próximo domingo. As negociações prosseguem assim como os massacres. 81 palestinos foram mortos por Israel nas 24 horas que se seguiram ao anúncio do acordo. A maior parte do acordo diz respeito à fase 1, todas as outras ainda seguem sendo negociadas.
Fase 1 (42 dias):
- O Hamas libertaria 33 reféns, incluindo mulheres soldados e civis, bem como crianças e homens com mais de 50 anos.
- Israel libertaria 30 prisioneiros palestinos por cada civil e 50 por cada soldada mulher. Milhares de palestinos estão detidos em prisões israelenses, sujeitos a condições desumanas de existência e tortura. Alguns cumprem penas de prisão perpétua. A grande maioria são vítimas civis do Estado do apartheid.
- Cessar-fogo em Gaza. As tropas sionistas retiram-se da maioria das zonas mais povoadas e deslocam-se para zonas próximas das fronteiras da Faixa.
- Os palestinos deslocados poderiam regressar ao que resta das suas casas e bairros, que é muito pouco. Israel permitiria a entrada de mais ajuda humanitária, que vem sendo bloqueada há quase um ano e meio.
Fase 2 (42 dias):
- Declaração de uma “calma sustentável”.
- O Hamas liberta os restantes reféns masculinos (civis e soldados) em troca de um número ainda não determinado de prisioneiros palestinos.
Esta fase é a mais polêmica das negociações. O Hamas exige a retirada total das tropas sionistas da Faixa de Gaza. Mas o governo israelita recusa-se a ceder num ponto-chave: exige que o Hamas não faça parte do novo governo de Gaza. Aparentemente, o Hamas concorda em ceder o atual governo, mas recusa-se a não fazer parte do próximo. É uma posição lógica: é o povo de Gaza e o conjunto do povo palestino que têm de decidir o seu governo, não o sionismo e o imperialismo.
Nas palavras, as negociações continuariam após a fase 1 e se não houver acordo não se avança à fase 2. Mas isto poderia ser uma armadilha para Israel: reiniciar a agressão militar como se nada tivesse acontecido. No entanto, eles têm um problema sério: o Hamas poderia, com toda a razão, manter um outro grupo de reféns para o caso de isso acontecer. E isso exerce pressão sobre Israel, porque os familiares querem que esta história acabe e que todos os familiares regressem para casa. O Estado sionista está num dilema existencial e essa é a sua pior derrota neste genocídio. A longo prazo, a sua continuidade está ameaçada.
Por outro lado, o Estado sionista não quer renunciar ao Corredor de Netzarim. Trata-se de um “corredor” controlado pelas tropas israelitas que divide o norte e o sul da Faixa desde o início da ocupação.
Não se trata de uma questão menor: Israel recusa-se a perder o controle da circulação de pessoas dentro da Faixa. O fato de não querer ceder o corredor constitui um escárnio flagrante de qualquer tentativa de paz. Implica dizer simplesmente que não abrem mão de exercer seu controle colonial sobre a população e da Faixa como tal, o que lhes impediria de retomar seus deslocamentos e os massacres sempre que quisessem.
É como dizer “negociamos agora, colonizamos depois”. Além disso, dizem que pretendem manter o Corredor de Netzarim para impedir que o Hamas possa se reorganizar e se armar. O Hamas tem o direito de o fazer. A realidade é que a ocupação e o massacre não conseguiram derrotar a organização palestina, nem o povo de Gaza enquanto tal. Esse era um objetivo explícito de Netanyahu, que agora se confronta com o espelho da realidade.
Perante um Estado que diz em voz alta que quer colonizar, exigem que o colonizado aceite desarmar-se. Quem aceitaria a condição de ter de enfrentar uma força de ocupação de mãos vazias?
Fase 3 (data a determinar):
- Troca dos corpos dos reféns israelenses falecidos pelos corpos dos prisioneiros palestinos.
- Execução de um plano de reconstrução de Gaza.
- Reabertura das fronteiras de Gaza.
A fase mais polêmica é a fase 2. Os ministros de Netanyahu dizem abertamente: só aceitarão o acordo se conseguirem recuperar os reféns e reiniciar automaticamente a destruição de Gaza. O Jerusalem Post diz que “Smotrich exige receber garantias de que as FDI (Forças de Defesa de Israel) continuarão a operar em Gaza após a conclusão do acordo”… “Isto inclui o regresso dos combates com maior intensidade e o controle da FDI sobre a distribuição da ajuda humanitária em Gaza”.
Esta é a crise política a céu aberto. A ala mais extremista de direita do governo quer apenas uma pausa para recomeçar a agressão. Porém, uma parte da população israelita está farta da “guerra”, quer voltar a uma vida mais normal, e o mundo e as centenas de milhares de apoiadores da causa palestina estão em alerta.
Holocausto e ocupação
Os números são uma evidência clara das intenções do governo genocida de Netanyahu. O número de mortos reconhecido até agora é de cerca de 46.000, mas o The Guardian esclarece que há pelo menos mais 10.000 nos escombros que ainda não foram encontrados ou identificados. Por outro lado, os feridos superam 110.000, variando a intensidade da sua gravidade (um terço teria lesões para toda a vida).
Mas a catástrofe vai muito para além dos massacres. Gaza é terra arrasada. A destruição de casas e infra-estruturas foi colossal. Só para limpar os escombros serão necessários 10 anos!
9 em cada 10 casas foram destruídas. 1,9 milhões de habitantes de Gaza, 90% da população, foram deslocados. Israel consagrou um novo crime de guerra no decurso deste massacre: o domicídio.
Israel destruiu todas as escolas de Gaza. O que resta delas é pouco, e é utilizado para cuidar dos feridos e dos famintos. Durante todo este longo ano, nenhuma única criança palestina pôde ir à escola em Gaza. Fala-se de uma geração inteira que, no futuro, sofrerá traumas a longo prazo devido à falta de educação, para além do trauma psicológico da barbárie contínua.
1.050 profissionais de saúde foram mortos por Israel. Apenas 17 dos 36 hospitais de Gaza estão funcionando, e apenas parcialmente. Foram registrados 654 ataques a instalações de saúde. As tropas das FDI controlam a entrada de ajuda e de medicamentos e, ao imporem a escassez, tornaram os cuidados médicos impossíveis para milhões de pessoas.
Em Gaza, a fome foi imposta. O número oficial de mortos não inclui os que morreram de fome e de doença. 96% das crianças não se alimentam devidamente. 345.000 pessoas enfrentam uma situação alimentar “catastrófica” e 876.000 uma situação de emergência.
Os números falam por si. A guerra de Israel não é uma guerra contra o Hamas, é uma guerra contra o direito dos palestinos à existência. Os seis milhões de assassinados pelo holocausto nazi devem sentir vergonha nas suas “sepulturas” pelo holocausto provocado pelo sionismo, que se revelou uma das correntes mais reacionárias e retrógradas do século passado. A sua política é a da colonização do século XIX no século XXI.
O acordo de cessar-fogo em Gaza: um enorme triunfo parcial palestino
As equipes diplomáticas dos governos velho e novo nos EUA são pressionadas a chegar a um acordo. Tanto Trump como Biden têm sido os principais sustentáculos internacionais de Israel no massacre, tanto política como militarmente. O fato de ambos quererem frear o massacre, pelo menos temporariamente, mostra que temem um enorme custo político: as mobilizações pró-palestinas só cresceram nos últimos 15 meses e ameaçam redobrar se este acordo não for concretizado!
O mesmo se pode dizer do próprio Netanyahu. Ele já negou várias vezes a possibilidade de qualquer trégua, mantendo a sua vontade de ir até ao fim, um objetivo que falha em concretizar apesar do banho de sangue genocida que promove.
Os ministros que protestam e ameaçam retirar-se do governo são fascistas que não medem quaisquer consequências. As demissões de ministros como Ben-Gvir e Smotrich podem abrir uma crise política no governo e até mesmo forçar eleições antecipadas. As principais manifestações em Tel-Aviv são a favor de um acordo. A sociedade israelita está profundamente dividida, embora a simpatia pelo genocídio siga sendo majoritária.
E enquanto Israel pode estar à beira de uma crise política, as forças palestinas se mostram mais unidas do que há dois anos. As negociações entre o Hamas e a Fatah poderão abrir a porta à reunificação política palestina após quase duas décadas. Isto é inédito. Os massacrados, entre os escombros de seus povoados e cidades, estão mais unidos e solidários uns com os outros. Os massacradores, os colonizadores, estão divididos.
A propaganda do sionismo e do imperialismo cúmplice enganou muitos. Muitos pensam mesmo que o conflito palestino é um conflito “religioso”. Mas a verdade é que as manifestações em todo o mundo mostraram que a causa palestina tem uma simpatia maciça por todo o mundo. Vivemos num mundo em que o rechaço da colonização e da segregação étnico-racial encontra um amplo eco. A extrema direita tem tentado fazer regredir os valores herdados da Revolução Francesa, das revoluções socialistas e anti-coloniais. Mas não conseguiram fazer recuar a roda da história.
O acordo de cessar-fogo em Gaza é insuficiente e tem muitos perigos. Diz pouco sobre a reconstrução absolutamente necessária e urgente. Não há garantias de que o sionismo não retome o genocídio.
Mas os palestinos celebram, ganharam esse direito. Entretanto, os defensores do genocídio protestam em voz alta e baixa. O seu ressentimento contra os palestinos deve-se ao fato de poderem perdoar o seu maior crime. Nenhuma violência palestina tem qualquer proporção com o que este povo sofreu, com as deslocamentos, com os massacres, com o fato de estar rodeado de muros e cercas, alvejado todos os dias por espingardas e metralhadoras. Não, não é a violência palestina que os colonos não perdoam. O principal crime dos palestinos, aquele que suscita a ira dos colonizadores, é o de continuarem a agarrar-se heroicamente ao seu direito de viver e de existir.
Viva o povo palestino!
Por uma Palestina única, laica, livre e socialista do rio ao mar!