Desde a Corrente Internacional “Socialismo o Barbarie” e, particularmente, por SoB – Tendência do PSOL, vimos fazendo um esforço de elaboração teórica, análises e leituras da realidade que cotidianamente apresentadas em nossos meios de propaganda e agitação, colocamos ao debate no seio da classe trabalhadora e das forças que tem como princípio a defesa dos interesses históricos desta última.
Por entender que o título acima (frase extraída da contribuição publicada abaixo) só pode ser alcançada no mais amplo, fraterno e honesto debate das mais diversas posições dos socialistas em geral e dos socialistas revolucionários em particular, apresentamos aqui importante contribuição do camarada Gilson Amaro, membro do diretório estadual de São Paulo do PSOL.
A partir de uma análise fundamentada da situação geral em que a pandemia do Sars-CoV-2 expõe e aprofunda todas as mazelas e políticas nefastas do capitalismo e da democracia burguesa, o camarada Gilson, afirma a urgente tomada de posição que não se resuma ao gerenciamento reformista da ordem vigente.[i]
A pandemia, o capital e o futuro
“Se o dinheiro, segundo Augier, ‘vem ao mundo com uma mancha natural de sangue numa de suas faces’, o capital, ao surgir, escorrem-lhe sangue e sujeira, por todos os poros da cabeça aos pés” (Karl Marx)
A atual pandemia mundial de covid-19 tem colocado em xeque as bases das falácias liberais e revelado sem nenhuma dúvida os limites do sistema capitalista, expondo inclusive o vazio de seu corolário ideológico. Medidas sanitárias e sociais de combate a pandemia negam o senso comum do individualismo capitalista. As personificações do capital, ao lidarem com uma situação que expõe sua lógica contrária a defesa da vida e cujo centro é a exploração e os lucros, são expostas em sua perversidade. Todas as medidas realmente efetivas de combate a pandemia expressam a negação dos cânones neoliberais.
Ao vermos o avanço da pandemia do novo coronavírus em todo o planeta, com mortes e seus efeitos na economia, precisamos entender que há tempos o sistema capitalista se encontra em profunda crise. Na verdade o que vivemos são as manifestações da crise estrutural do capital que levam o sistema de uma recessão a outra. Não se trata somente de um evento cíclico, que possa ser erradicado por medidas anticíclicas- esta fase do desenvolvimento do capital pertence ao passado. O que teremos como resposta a estas manifestações da crise serão alterações em diversos parâmetros na sua dinâmica de acumulação, produção e controle social, aprofundando ainda mais a barbárie. Nas palavras de Istvan Meszaros o capital “enche buracos cavando buracos ainda maiores”.
A atual crise sanitária intensifica a crise econômica que é estrutural, do mesmo modo que a absurda concentração de riqueza e a segregação social fruto do nosso sistema econômico agrava os efeitos dessa pandemia. O neoliberalismo nos legou índices absurdos de miséria e pobreza, desemprego, retirada de direitos trabalhistas e sistemas de saúde mercantilizadas, em sociedades com grande concentração de renda. Pesa ainda nesta equação, no caso brasileiro, a batalha política com pressões de setores da burguesia que em um impulso genocida tentam forçar — amparadas pelo governo federal — uma suposta normalidade econômica, retomando plenamente as atividades de comércio.
É inegável a correlação entre crise econômica e a pandemia na atual situação. Entretanto, de modo algum a pandemia será por si só a produtora exclusiva da onda recessiva que se intensificará em diante. Não estamos falando de um fato que interrompe um círculo virtuoso da economia capitalista, em que pese ser decisivo em seu aprofundamento. Conceber o contrário disso seria uma inversão absurda e falaciosa, típica da estupidez liberal onde os efeitos supostamente determinariam as causas, negando assim o caráter estrutural, e não conjuntural, da situação econômica global.
Com o avanço do covid-19, vemos que na esfera política a realidade se impôs ao preço de mortes e derrocada dos sistemas de saúde, mostrando a fragilidade de elementos fundamentais da narrativa de lideranças demagógicas, reacionárias, protofascistas e demais políticos autoritários. Estes são atores que erguem parte importante de seu edifício simbólico na negação da ciência e contra o que alguns intitulam de globalismo, atacando organismos internacionais, a exemplo da Organização Mundial de Saúde, como se estes fossem componentes de uma conspiração marxista.
Na Inglaterra pós-Brexit, o primeiro-ministro Boris Johnson, após dizer que os britânicos deviam se preparar “para se despedir mais cedo de alguns parentes” e defender uma política exclusiva de herd immunity (imunidade de rebanho) deixando a população jogada a própria sorte, recuou ante o aumento do número de vítimas fatais e após dados alarmantes serem revelados em estudo elaborado pelo Imperial College de Londres a respeito das mortes e o colapso do sistema de saúde britânico.
Já Donald Trump, pressionado pela disputa eleitoral estadunidense, segue errático entre a negação da pandemia e as medidas de contenção e políticas sociais, sendo movido principalmente pelo medo da corrosão da popularidade que o sustenta. Os EUA já são hoje o novo epicentro mundial do coronavírus e o cenário para Nova Iorque tem prognósticos desoladores, recentemente o infectologista Anthony Fauci, principal assessor de Trump no combate ao coronavírus, previu que podem ocorrer entre 100 a 200 mil mortes nos país.
A tendência em vários países com lideranças abertamente autoritárias, populistas de outras vertentes e inclusive enaltecidas democracias liberais, parece seguir o mesmo padrão, ou seja, aumentar a intensidade das medidas conforme a situação se torne politicamente insustentável em virtude do aumento das mortes e colapso do sistema de saúde. Porém, setores majoritários das cúpulas políticas somente acendem o sinal de alerta quando a crise começa a corroer a suas popularidades. Um triste cenário, pois gerará reações tardias possibilitando aumentos exponenciais de doentes e mortos, conforme nos mostra exemplo italiano no trato com o covid-19, em contraste com a resposta chinesa que foi muito mais eficiente de ser efetuada.
A questão da popularidade não é um dado menor. É um campo de batalha decisivo sobretudo no cálculo de lideranças demagógicas e protofascistas. Afinal a popularidade serve como pressuposto na quebra dos sistemas institucionais e para legitimar as medidas autoritárias. Também é um elemento chave para a manutenção e permanência no cargo, visando dissuadir eventuais tentativas de deposição que possam ser preparadas contra eles. A pandemia é uma prova de fogo para estes projetos de poder baseados em uma emulação antissistema, como evoca Bolsonaro, que, na verdade acentuam o status de miséria e aprofunda a desigualdade e pobreza.
No caso brasileiro a situação é ainda mais complexa, pois há um claro desprezo pela gravidade da crise sanitária e descaso com a perda de vidas por parte de Bolsonaro. O núcleo ideológico de seu governo, composto por olavistas, milicianos e demais reacionários, segue aplicando a linha política publicizada em pronunciamento nacional na noite de 24 de março, o que gerou uma ampla reação popular de rechaço ao governo. Neste fatídico episódio o presidente rotulou o coronavírus de “gripezinha” e defendeu uma absurda estratégia de isolamento vertical.
Esta forma de isolamento direcionada aos grupos de risco fracassou em outros países. O objetivo de Bolsonaro é tensionar a sociedade para forçar uma retomada das atividades econômicas, interrompidas pelas quarentenas. Isto fica evidente quando na sequência de seu discurso ele lança a campanha “O Brasil não pode parar”. Novamente o exemplo italiano mostra quantas vidas pode custar este tipo de inciativa. Em que pese estes fatos, temos que entender que atrás da aparente irracionalidade das ações de Bolsonaro, existe a aplicação de um modus operandi de estratégia fascista, genocida e de necropolítica. Ele dobra a aposta na sua guerra contra as instituições e abre fogo contra os governadores e setores da mídia, que aderem, mesmo que parcialmente as ações e recomendações da OMS.
Em seu pressuposto teatro de operações, Bolsonaro mira duas frentes: na primeira ele canaliza uma característica histórica da burguesia brasileira que foi definida por Florestan Fernandes: antissocial, antinacional e antidemocrática. E na segunda frente, aposta na combinação desta canalização com o prolongamento das quarentenas que potencializará a crise econômica, levando o desemprego a patamares de até 25% segundo algumas projeções, combinada a realidade de precarização e informalidade que ultrapassa 40% da população ocupada. Uma situação que deixará as pessoas em desespero extremo. Bolsonaro aposta no caos social para fazer suas novas movimentações, pois as vidas não importam, em uma explicita postura escravocrata.
Na ausência de medidas estruturais e abrangentes para enfrentar os graves efeitos sociais e econômicos da pandemia, as políticas de auxílio que foram sinalizadas pelo governo e Congresso Nacional, cujo valor mensal a ser pago é muito inferior ao salário mínimo, serão totalmente insuficientes para atender as necessidades do povo. Caso a situação se prolongue o cenário será ainda mais catastrófico. Temos, portanto, todos os elementos para uma crise sanitária e social profunda que levará a conflitos sociais e situações dramáticas nas próximas semanas e meses.
Para fazer uma real oposição a Bolsonaro e combater suas políticas e todo o risco que ela representa, temos que entender a natureza fascista de seu projeto de poder, que busca todas as oportunidades para a sua sobrevida ou avanço de suas pretensões totalitárias, não sendo antagônicas as determinações do capital. Pelo contrário estão em plena sintonia, realizando os desígnios de amplos setores das classes dominantes.
A deposição de Bolsonaro e a luta pelo impeachment é uma tarefa, inclusive de sentido civilizatório. A estratégia bolsonarista de disputa pelo poder está disposta a construir seu prolongamento ou avanço autoritário sobre pilhas e pilhas de cadáveres de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Isto não pode ser permitido, este ponto não pode ser tratado por meio de cálculos eleitorais, divagações abstratas sobre a realidade e as sempre evocadas razões de correlações de força desfavoráveis, ou por posturas explicitamente acovardadas e engessadas que vemos presentes em grandes setores da esquerda brasileira atualmente. Derrotar Bolsonaro e seu projeto é um ponto central.
Em que pese a situação narrada acima, podemos dizer que em um primeiro momento, que se pode observar em vários países, um aparente movimento rumo ao centro do espectro político. Isso pode reoxigenar o prestígio de instituições e lideranças, colocando em destaque as figuras que seguem as recomendações técnicas de isolamento e interrupção de setores da atividade econômica no combate a pandemia, em pleno contraste com as falácias genocidas e anticientíficas da extrema-direita. Esta é outra dimensão do combate político travado entre facções políticas da ordem.
Como este empuxo ao centro começa adquirir ares hegemônicos, sendo peça importante na luta entre frações da burguesia em todo o mundo, não se pode confundir uma retórica moderada com um compromisso real de combate à pandemia priorizando salvar vidas. Por isso é fundamental destacar que o novo coronavírus não é o gerador da crise nos sistemas de saúde no Brasil e no mundo. A pandemia agrava a situação, levando-a ao caos humanitário. Revelando no caso brasileiro o preço que pagamos pelo sucateamento da saúde pública e os efeitos da conversão da saúde em uma mercadoria e muita cara, agravada pela situação de miséria e destruição de direitos básicos que tem a assinatura de todos os partidos da ordem desde o início da Nova República.
É preciso destacar que este aparente movimento ao centro, terá duração efêmera e ilusória, pois, a dimensão da crise do sistema do capital se revelará avassaladora durante e na sequência dos efeitos da pandemia e todos os gerentes da ordem: dos extremos aos moderados serão impiedosos nas medidas contra o povo e generosos com o capital.
O fato de alguns parecerem sensatos, somente quando comparado a fascistas com discurso abertamente genocida, não significa que estes primeiros são defensores da igualdade. A repressão será certamente um instrumento de contenção lançado a mão de forma dura contra o povo pobre das favelas e periferias em todo o mundo, a tragédia tem um corte de classe e estes serão os mais afetados pela crise sanitária e econômica.
É indiscutível que devemos agir de forma urgente para salvar vidas e combater a negligência e os ímpetos genocidas que se revelam sem vergonha alguma aqui e em outras partes do mundo, e igualmente é fundamental entendermos a lição profunda desta experiência. Essa crise sanitária evidência os limites do capitalismo e coloca a urgência da construção de um movimento que busque a superação deste atual sistema econômico. A defesa do socialismo deve ser sinônimo da construção de um programa e estratégia política, longe das ilusões do gerenciamento institucional burguês que a cada dia se revela mais perigoso, seja pela realidade trazida pela pandemia ou pelos caos social e ambiental que está ligado a atual situação e segue levando o planeta ao extremo da catástrofe.
Sem uma alternativa real e concreta, o que veremos será uma ampliação da segregação e barbárie em uma nova etapa do sistema do capital que se abre, onde a guerra aos pobres se mostrará cada vez mais explicita, em uma luta de classes implacável, potencializada pelo uso de inteligência artificial e outras armas tecnológicas de monitoramento a serviço de um sistema que irá otimizar suas formas de exploração, acumulação e controle social. A crise ambiental fruto da destrutividade do sistema produzirá novos eventos com efeitos devastadores e é com este círculo vicioso presente e futuro que precisamos romper.
O desenvolvimento da crise sanitária e seu prolongamento com os efeitos na economia e nos tecidos sociais, estará ligado ao seu tempo de duração e da manutenção de medidas de quarentenas e lockdown necessárias para conter um caos maior. De todo modo, já podemos antever que temos um horizonte de muitos desafios pela frente em que a defesa da vida na situação imediata, não pode estar desconectada da busca de uma transformação radical da nossa forma de organização e produção. A realidade precisa ser compreendida em sua totalidade.
A atual situação nos traz a responsabilidade de aprofundarmos algumas discussões, afinal podemos afirmar, sem possibilidade de erro, que a existência de uma sociedade destinada a ser essencialmente o que é, deve ser o ponto de partida nas formulações das forças políticas e intelectuais da ordem. Seria estranho se assim não o fosse, mas o que dizer se tal premissa é abundante naqueles que se colocam à sua esquerda e supostamente defendem que “um novo mundo é possível”?
O capitalismo e o sistema global do capital, são construções históricas que tem um início, um desenvolvimento e terão um final. Defender a permanecia universal deste estado de coisas, além de mistificação grosseira é levar o debate para o campo da metafísica. Entretanto, é assim que procedem setores hegemônicos da esquerda, naturalizando e eternizando as atuais formas econômicas e políticas, numa negação da possibilidade e necessidade de mudanças radicais. Reduz-se, deste modo, a atividade política a uma miserável arte do possível, dentro dos limites do gerenciamento da barbárie.
Em momentos como a atual pandemia se evidencia a gravidade e a irresponsabilidade de tais posturas, que só podem ser compreendidas numa perspectiva histórica. Este momento é um sinal de alerta para a retomada de estratégias que de fato apontem na transição deste sistema destrutivo que se ergue sobre cadáveres para um novo sistema social de igualdade. A crise está em aprofundamento e é nosso dever travar este combate com radicalidade.
[i] Contribuindo com o chamado e elaboração do camarada Gilson, entendemos seu posicionamento pelo chamado a uma atitude revolucionária absolutamente irrevogável diante de um desenvolvimento histórico que não admite mais o reformismo e o possibilismo. Mas, como nossa contribuição, a partir mesmo dos elementos do texto, entendemos que a análise do capital e seus passos deve levar em consideração que seus avanços e ou recuos, a par de seu caráter hodiernamente somente destrutivo, comporta soluções que somente a luta de classes poderá determinar, visto mesmo os movimentos isolados mas fortes de levantes dos trabalhadores anteriormente à própria pandemia.
Sabemos que o camarada não propõe excludência entre estas coisas, mas, em nome da radicalidade do debate e da ação afirmadas ao final do texto, consideramos que seria muito importante a apresentação das alternativas de elaboração e luta, como subsídio para o confronto com as teses possibilistas e “institucionalistas” apresentadas pela esquerda em geral e por setores importantes da esquerda revolucionária, inclusive da direção do PSOL, que jogam contra a mobilização dos trabalhadores e seus instrumentos de organização.
De toda forma, aplaudimos a iniciativa e as posições do camarada e nos colocamos fraternal e honestamente a disposição de aprofundarmos esse debate.