Publicamos abaixo a terceira nota da SÉRIE PARTIDO intitulada A formação marxista. Escrito por Roberto Sáenz, o texto parte da formação teórica marxista que é fundada no materialismo dialético. Essa formação tem base na compreensão da totalidade material objetiva, ou seja, na relação do homem com a natureza e nas relações econômicas, sociais e políticas entre as classes sociais. Como a realidade sempre é prenhe de contradições, transforma-se constantemente, de forma gradual ou por saltos de qualidade. Mas, ela não pode ter nada de objetivista – descaminho pelo qual entrou praticamente todas as correntes revolucionárias do segundo pós-guerra e que a maioria não conseguiu ainda superar – pois, sem a intervenção consciente dos sujeitos coletivos (classes sociais) através de seus partidos revolucionários e organismos de autodeterminação na luta de classes, não se pode transformar a realidade no sentido da superação do capitalismo e de todas as formas de exploração e opressão. A formação marxista, também, não pode prescindir, em momento algum, do aprendizado que se obtém combinando o estudo teórico com o terreno prático da luta de classes. Sem esse aprendizado, nenhum militante/partido pode desenvolver a capacidade de apoiar-se nas tendências mais progressivas da realidade (sem perder, obviamente, de vista a dinâmica contraditória de todo processo) para levar uma politica revolucionária. A partir daí, segundo o autor, “a política pode mover montanhas quando se torna força material ao compreender os elos centrais da realidade e quando está organizada em um partido revolucionário, são alguns dos ensinamentos gerais da educação marxista que todo militante deve assimilar”.
Redação
A formação marxista
ROBERTO SÁENZ
“Em cada estágio há um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e dos indivíduos entre si, que é transmitida a cada geração pela anterior, uma classe de forças produtivas, capital e circunstâncias que, é claro, é modificado, por um lado, pela nova geração, mas que, por outro lado, prescreve a eles suas próprias condições de vida e lhes dá um desenvolvimento particular, um caráter especial; Em outras palavras, as circunstâncias determinam os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (Marx, citado por Ernst Bloch em “O princípio esperança”).
Nesta edição, voltamos à coluna habitual sobre os problemas da construção do partido, desta vez abordando os problemas da formação marxista da militância partidária. Vamos nos apressar em apontar que a formação marxista básica – além do que já apontamos aqui, que a primeira e principal escola de militância é a luta de classes do proletariado – tem dois pontos de apoio que se combinam dinamicamente. Não estamos nos referindo tanto à formação política, mas sim à formação teórica no marxismo: a abordagem materialista e dialética das questões, tão escassa hoje em dia no cenário das organizações políticas da esquerda revolucionária, caracterizada por egocentrismo, subjetividade, autoproclamação e outras aberrações.
Materialismo e dialética
O primeiro ponto de referência é a abordagem materialista. Precisamente, a mudança copernicana que Marx e Engels introduziram na compreensão da história e da sociedade é que são as condições materiais de existência das classes sociais (sua produção e reprodução material) que determinam suas representações ideológicas e formas políticas, que dão substância às lutas que se desenvolvem entre elas: quem fica com o excedente social (o excedente econômico). Eles chamaram isso de concepção materialista da história, que é o fundamento último dos acontecimentos: a “luta pela existência” travada pelas classes sociais exploradoras e exploradas para se apropriar do produto da riqueza, que não surge mais que da aplicação do trabalho da sociedade à exploração da natureza.
Por isso, Marx apontou que não é a consciência que determina a existência (interpretação idealista), mas, ao contrário, são as próprias condições de existência material das pessoas e das classes que determinam suas formas de consciência ou representações. Ou que, em última análise, é a estrutura material da sociedade (a maneira como ela é organizada para a produção e a extração do trabalho não remunerado dos trabalhadores) que determina as formas de representação e poder que são configuradas política, jurídica e ideologicamente (as formas de Estado, instituições, partidos políticos etc.).
Mas no solo granítico da interpretação materialista das coisas e dos eventos (uma base que corresponde à dialética do desenvolvimento da sociedade, bem como da natureza, cujas leis são semelhantes), outro elemento de grande importância é introduzido. Nenhuma dessas relações de correspondência entre fatores materiais ou “ideais”, entre fatores objetivos e subjetivos, é mecânica. A lógica do desenvolvimento social e natural é regida por uma certa dialética; todo processo histórico e natural é caracterizado por contradições, desenvolvimentos desiguais, saltos da quantidade para a qualidade, e assim por diante. E também com o fato de que a dinâmica entre o que é e a forma como as coisas são representadas é complexa. Há uma dificuldade em ter uma consciência real das circunstâncias, do que deriva a complexidade da “forma partido“.
É por isso que o marxismo lutou incansavelmente contra a interpretação idealista e religiosa dos fenômenos sociais e naturais, mas ao mesmo tempo advertiu contra uma abordagem mecânica que perderia de vista as relações mutuamente determinantes entre fatores materiais e ideais, objetivos e subjetivos, que são o que, em última análise, como subproduto deles, dão origem à história social e natural.
Sujeito e objeto
Parte do que temos apontado no campo da filosofia em geral e da filosofia marxista em particular são as relações estabelecidas entre as condições materiais econômicas e políticas objetivas e os sujeitos que atuam nessa realidade; determinados por ela, mas também determinando sua transformação em outra coisa. Esse é um debate que se estende por toda a história do marxismo. Houve variantes crassamente objetivistas e mecânicas: Althusser, ideólogo do PC francês, chegou a dizer que “a história seria um processo sem sujeito ou fins“; mas o fato de não ter fins teleológicos, ou seja, externos às próprias condições da luta, não pode significar que não tenha um sujeito! E também houve as subjetivistas, que perdem de vista as determinações materiais e objetivas nas quais os sujeitos agem, sem ver que uma lógica voluntarista não consegue mudar a realidade: as gerações presentes levam suas condições transformadas às gerações futuras, que objetivamente iniciam sua ação a partir de condições não criadas por elas.
A melhor abordagem dessa dialética foi deixada não apenas por Marx e Engels em textos brilhantes como as “Teses sobre Feuerbach” ou a “Dialética da Natureza”, mas pelos próprios Lênin e Trotsky nas “Notas Filosóficas sobre a Lógica de Hegel”, do primeiro, ou nos “Fragmentos sobre a Dialética”, do segundo, no início da década de 1930. Deles decorre uma abordagem metodológica na qual, embora tanto Lênin quanto Trotsky sejam insuperáveis em sua abordagem materialista, terrena e realista das questões envolvidas na luta de classes, ao mesmo tempo eles não são caracterizados por nenhum mecanicismo e nenhuma teleologia: o resultado das lutas históricas das classes sociais depende das próprias lutas e, portanto, da ação das classes sociais, de suas organizações, partidos e programas na disputa da história.
O mesmo aconteceu com Rosa Luxemburgo, quando insistiu no prognóstico alternativo para a dinâmica do capitalismo: socialismo ou barbárie, bem como nas notas críticas de Gramsci a Bukharin, onde, mesmo à custa de alguma unilateralidade, definiu a política como “história em ato“: a história não como algo predeterminado ou localizado “post festum” no passado, mas como estrategicamente se realizando por meio da ação de sujeitos históricos em determinadas circunstâncias.
O motor da história
Indo a graus menores de abstração, pode-se dizer que um par [dialético. Nota trad.] clássico na formação marxista é a relação entre economia e política, economia e luta de classes. Aqui, podemos apenas apontar rapidamente que não se trata nem de perder a base material das relações entre as classes, que cria a própria economia (forças produtivas e relações de produção nas quais os homens reproduzem suas relações de existência; seu metabolismo inescapável com a natureza para sua reprodução biológica, material e social), nem de fazer da economia um motor independente que por si só poderia mover a roda da história. Marx já apontava que “a história não faz nada, é o homem que produz e luta“, bem como a contrapartida dialética dessa afirmação, que diz que “os homens fazem a história, apenas sob determinadas condições“.
O contraste entre essa abordagem marxista e a imensa grosseria das abordagens objetivistas e catastrofistas, que acreditam que as próprias condições materiais podem fazer tudo no lugar das classes em luta, é óbvio. Não é à toa que a mola material da história é o desenvolvimento das forças produtivas, mas, como disse Marx no Manifesto Comunista, o “motor da história é a luta de classes“.
Agarrar-se ao elo central da corrente
Isso nos leva a outra característica problemática da ação política: a capacidade de avaliar cada circunstância e fenômeno em suas devidas proporções, sem se deixar impressionar. Isso é fundamental porque qualquer ação política, desde a mais elementar até a insurreição, exige uma apreciação objetiva das questões, sem se deixar impressionar pelo inimigo de classe ou pelo adversário da esquerda; é uma ciência e é uma arte, de conhecimento e intuição.
A militância se desenvolve no seio da luta de classes; o partido se constrói dentro dela. E essa luta de classes por interesses materiais opostos e irreconciliáveis, como Lênin apontou, significa todos os tipos de pressões sociais, econômicas, políticas e ideológicas. Armados com as armas do marxismo revolucionário, o partido e seus membros militantes devem abrir caminho através das muitas contradições e pressões sociais que são criadas em toda luta, sem se deixar impressionar e sem perder a fonte da vontade racional.
Não se deixar impressionar significa nunca perder de vista o fato de que a realidade é mais rica do que parece à primeira vista; ela sempre tem mais contradições e relevos do que parece na superfície das coisas. Ao mesmo tempo, não perder o impulso da vontade refere-se ao entendimento materialista de que a realidade sempre nos dá pontos de apoio para a ação. Como disse Lênin (Trotsky dizia que isso era característico dele desde a juventude), na ação política é sempre uma questão de tentar agarrar o elo central da corrente para tentar, a partir daí, assumir o controle da corrente como um todo, transformando a realidade.
Aprender a ser marxista, avaliar as circunstâncias em suas devidas proporções, saber como partir das condições materiais de existência das coisas, saber que não há nada mecanicamente determinado na dinâmica da luta de classes, que os processos são, em última análise, definidos apenas pela própria luta, e que a política pode mover montanhas quando se torna força material ao compreender os elos centrais da realidade e quando está organizada em um partido revolucionário, são alguns dos ensinamentos gerais da educação marxista que todo militante deve assimilar.
Traduzido de https://izquierdaweb.com/la-formacion-marxista/