O senador Marcos do Val (Podemos) trouxe à tona mais um episódio que faltava para tecer a rede da tentativa farsesca de golpe no dia 8 de janeiro. Do Val afirma que participou a convite do ex-Deputado Daniel Silveira (PTB) e de Jair Bolsonaro para uma conversa com o objetivo de organizar um plano para anular o resultado das eleições presidenciais. Essa revelação, em que pese o grau de amadorismo, apenas reforça a necessidade do conjunto do movimento de massas levar a campanha pela punição de Bolsonaro como tarefa central da luta de classes, essa é uma das condições necessárias para que haja uma mudança efetiva da correlação de forças.
ANTONIO SOLER
Os fatos narrados em entrevista à revista Veja[1] pelo senador Marcos do Val não traz à tona uma peça isolada na crônica golpista do bolsonarismo, mas parte de uma estratégia que contou com meios institucionais, apoio de setores da classe dominante e de setores do alto comando das forças armadas para impor na marra a permanência de Jair Bolsonaro no poder.
Bolsonaro combinou uma série de meios, dos institucionais aos extra institucionais: aumento do Auxílio Brasil, ajuda financeira a caminhoneiros e taxistas, impôs o congelamento do preço dos combustíveis e no dia das eleições usou a Polícia Rodoviária Federal para dificultar a votação de eleitores de Lula, sem falar em todo o assédio político histórico que a classe dominante fez nos locais de trabalho.
Como nada disso foi o suficiente para conter o voto castigo contra Bolsonaro e seu genocídio sistemático, após a derrota eleitoral uma nova estratégia teria que ser montada de improviso porque para o bolsonarismo a possibilidade de derrota se mostrava bastante distante. Desta forma, uma nova estratégia que contava com bloqueio às estradas, ocupação dos quartéis, tomada de Brasília e um decreto de intervenção federal no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi montada.
No dia 9 de dezembro, depois de um mês em silêncio de Bolsonaro após as eleições do segundo turno, o ex-presidente no “cercadinho” do Alvorada fez uma declaração um tanto quanto enigmática dizendo que o seu futuro dependia dos apoiadores e que tinha ligações com as forças armadas.
Logo após a declaração teria ocorrido a reunião para discutir o plano para cancelar as eleições. Apesar do plano impressionar pela grosseria em toda a linha, os relatos, troca de mensagens e o próprio testemunho de Alexandre de Moraes (Ministro do STF e presidente do TSE) atestam a sua veracidade.
A proposta que foi apresentada a Do Val era a de que, como o mesmo tinha contato com Moraes, fosse marcada uma conversa com objetivo de gravar uma fala de Moraes contra Bolsonaro ou em favor de Lula que fosse pretexto para colocá-lo sob judice como presidente do TSE, prendê-lo e criar assim uma crise institucional capaz de anular o processo eleitoral para que Bolsonaro continuasse no poder.[2]
Na entrevista, Do Val afirma que não respondeu à proposta e que iria pensar. Nos dias que se seguiram, Silveira enviou mensagens no sentido de pressionar o senador para que aceitasse a tarefa afirmando que pessoas importantes estavam envolvidas no plano e que todos depositavam nele “uma esperança sem precedentes”.
No dia 14 de janeiro, Do Val tem uma rápida conversa com Moraes em uma localidade do prédio do STF para informá-lo sobre o plano de anulação da eleição presidencial. No mesmo dia, depois dessa reunião com Moraes, deu por encerrada a conversa com Silveira, dizendo “irmão, vou declinar da missão”, o que, segundo ele, foi prontamente aceito pelo ex-deputado que agora está preso por violar condicional.[3]
Em que pese que Do Val tenha mudado algumas vezes de versão, uma hora que tinha sido coagido por Bolsonaro, a outra de que o plano era de Silveira e Bolsonaro teria ficado em silêncio, esse é um relato que coincide com outras evidências golpistas que envolvem diretamente o ex-presidente e que desembocaram no “capitólio à brasileira”, tais como a da “minuta do golpe” que vamos tratar brevemente abaixo.
A minuta do golpe
Como já apontamos acima, essa reunião descrita por Do Val não é um fato isolado, mas sim parte de um plano – tosco e sem viabilidade – para impor após a eleição a continuidade de Bolsonaro no poder através da “minuta do golpe” encontrada na casa de Anderson Torres.[4]
No dia 10 de janeiro de 2023, dois dias após os ataques golpistas à Praça dos Três Poderes, a polícia encontrou na casa de Torres uma minuta que traz a proposta de instaurar um estado de defesa[5] no TSE para anular o resultado das eleições e manter Bolsonaro no poder contra a vontade popular.
Essa minuta foi elaborada após as eleições de outubro e previa a investigação de abuso de poder por parte do TSE no processo eleitoral. De acordo com o texto, seria criada “comissão responsável pela apuração da conformidade e legalidade eleitoral” composta pelo Ministério da Defesa, Ministério Público Federal, peritos criminais e representantes do Congresso Nacional.
Como se pode ver, a tentativa de usar o bolsonarista Do Val para gravar qualquer fala de Moraes que depusesse contra a sua imparcialidade tinha o objetivo de ser utilizada em um processo mais amplo para desconhecer o resultado das eleições através de um decreto de defesa contra a justiça eleitoral.
O fato político gordo é que Bolsonaro não pode levar a sua vontade golpista adiante porque não houve a menor condição política de golpe, os grandes setores de massas aceitaram o resultado das eleições, a oligarquia política reconheceu imediatamente a vitória de Lula, a maioria da classe dominante aceitou o resultado e faz parte do governo com seus representantes e o imperialismo de todas as cores tem em Lula um aliado.
No entanto, essa impossibilidade de efetivação do golpismo pré e pós eleições não pode se confundir com uma visão de que o neofascismo no Brasil tenha ficado nas páginas da história. Ao contrário, essa é uma força política que mantém grande envergadura, forte bancada no Congresso, governos estaduais, base em setores da burguesia e apoio de setores de massas. Tudo isso, junto com o gatopardismo da ampla maioria da oligarquia política nacional, faz com que o bolsonarismo se configure como a força política que fará oposição direta ao governo Lula pela extrema direita e terá peso fundamental na correlação de forças nessa nova situação política – temos uma mudança parcial da correlação de forças após a derrota eleitoral de Bolsonaro – em que vivemos.
Luta pela extradição e prisão
Como nenhuma situação política pode ser alterada apenas através das eleições, é necessário que o movimento de massas, os movimentos sociais e a esquerda imponham de forma independente do governo Lula – governo de conciliação de classes voltado para a normalização institucional – uma derrota categórica ao neofascismo através das suas próprias forças.
Uma mudança substancial na correlação de forças política com o extremismo de direita, com o reacionarismo das forças armadas e com a classe dominante não passa pela velha proposta de criação de uma Guarda Nacional, como quer Lula e seu governo, mas pela imposição de condições políticas e institucionais totalmente diferentes das herdadas pela Constituição de 1988 e pela anistia aos crimes da ditadura militar. É necessário, como tarefa central do movimento de massas, organizar de forma independente amplas campanhas para exigir do governo e de todo o sistema político-jurídico a extradição e prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas e genocidas.
Não há esquematismo que valha na luta de classes e uma série de desdobramentos são possíveis, mas uma conquista como a extradição e prisão de Bolsonaro, fruto direto da luta do movimento de massas, contribuirá enormemente para impor outra correlação de forças; assim, podemos avançar para a luta pela revogação das contrarreformas, aumento salarial, redução da jornada de trabalho, garantia de direitos para todos trabalhadores, fim da polícia militar, fim da anistia aos militares, aborto legal, público e gratuito e uma série de demandas anticapitalistas que só podem ser conquistadas com luta independente do governo e dos patrões, auto-organizada e pela base.
[1] Veja em https://veja.abril.com.br/politica/do-val-relata-ordem-direta-de-bolsonaro-para-gravar-moraes-ouca-audio/
[2] Segundo Marcos do Val, ao perguntar como isso seria feito, ouviu de Bolsonaro que havia acertado com o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que é comandado pelo General “Linha Dura” Augusto Heleno, que daria suporte técnico com equipamentos necessários.
[3] O ex-Deputado foi condenado pelo STF e indultado por Bolsonaro foi preso no dia 2 deste mês por não cumprir medidas cautelares, como o uso de tornozeleira e continuidade aos ataques ao STF.
[4] Anderson Torres foi ministro da Justiça de Bolsonaro e, em seguida, nomeado como Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal pelo governo Ibaneis Rocha. Depois do dia 8/01 foi preso por determinação judicial e responde inquérito por ter responsabilidade nos ataques à Praça dos Três Poderes no dia 8/1.
[5] Medida prevista no artigo 136 da Constituição Federal, ela tem como objetivo “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. Antes de publicar o decreto, o presidente precisa ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional. Ao contrário do estado de Sítio, em que o Congresso autoriza, o Estado de Defesa não depende de autorização, porém, o Congresso precisa ratificar o ato em 24 horas e a maioria absoluta dos parlamentares precisa aprová-lo.