O século XXI é marcado por um lado pelo aprofundamento das premissas neoliberais, determinantes para a instalação da crise de 2008 (ainda não superada pelo capital, ao contrário disso) e por outro por rebeliões populares, greves de trabalhadores e movimentos de resistência, como os do Irã, que hoje se espalharam por todo o mundo – vemos crescer também a ultra direita.

Em meio a isso os explorados e oprimidos veem suas esperanças lançadas nos chamados primeiros governos progressistas do século (hoje mais na forma de frentes amplas com a burguesia que invertem a proporção dos elementos sociais pelos liberais), através de eleições, se esvaírem, e, por outro lado, na cooptação da insatisfação em relação à democracia burguesa pelas falácias antisistemicas de partidos e epígonos do conservadorismo ultrareacionário em suas últimas consequências, em todos os continentes.

Diante de tal quadro, no Brasil as organizações da esquerda socialista, oscilando entre um sectarismo estéril como o do MRT e do PSTU e o reformismo possibilista e oportunista que levou o PSOL (principalmente as correntes de tradição trotskista como MES e Resistência) a um giro traidor da independência de classe, se passando com armas e bagagens para a conciliação descarada consubstanciada na adesão à chapa Lula-Alckimin e seu programa.

Como viemos apontando já há algum tempo, nesse quadro polarizado, a tarefa estratégica de construir organizações sociais revolucionárias, que lutem pela independência de classe e saídas anticapitalistas para a crise, permanece válida e, mais que isso, urgente.

É preciso vencer a postura vigente de que a construção revolucionária passa única e exclusivamente pela autoconstrução das  próprias organizações existentes para imediatamente passarem a abrir um chamado à um fórum comum visando a construção de uma frente de esquerda socialista que pavimente caminho para as condições necessárias de conformação de uma frente única revolucionária pró-novo partido da esquerda socialista no Brasil.

A reorganização política da esquerda socialista em nosso país é um fato da realidade que irá pautar todo o próximo período para o qual é necessário ter abertura política para que possamos oferecer à classe trabalhadora e aos oprimidos uma alternativa para fazer frente aos desafios históricos que temos. Por isso apresentamos abaixo, para o debate, mais uma elaboração de nossa Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie.

Como diz o seu autor, Roberto Saenz, grande camarada e dirigente da Corrente, é um trabalho inicial e bastante sumário, mas que através dos elementos históricos e teóricos que construíram a história da III Internacional, a internacional comunista, da qual somos legatários, resgata importantes lições e ferramentas na luta estratégica pela socialismo.


Questões da frente única – primeira parte

Por Roberto Saenz

Escrito em São Paulo em 10/09/2022.

“Um parlamento sem maioria, com alas irreconciliáveis, representa um argumento evidente e irrefutável a favor da ditadura. Mais uma vez, os limites da democracia se desenham com toda a evidência. Quando se trata dos próprios fundamentos da sociedade, não é a aritmética parlamentar que decide, mas a luta.”

Leon Trotsky, La lucha contra el fascismo en Alemania, Ediciones Pluma, volume II, Buenos Aires, 1974, pp. 13.

A Terceira Internacional revolucionária esteve de pé entre 1919 e 1923. Durante este período, foram realizados quatro congressos que se tornaram parte da herança da tradição programática do marxismo revolucionário. Em certo sentido, devido aos acontecimentos desencadeados pela experiência da Revolução Russa, esta elaboração e acumulação programática, este desenvolvimento da ciência e da arte da política revolucionária, de sua estratégia e tática, foi o ponto mais alto alcançado por nossa corrente histórica do ponto de vista prático, deixando, como tal, lições universais.

Em outra oportunidade, apontamos que o bolchevismo forjou as armas político-práticas com as quais lutamos ainda hoje. E assim é: a tradição bolchevique, continuada pela tradição do trotskismo, que ao mesmo tempo foi a continuação da tradição do marxismo clássico de Marx e Engels, e o acúmulo de experiências refletidas na Primeira Internacional e na etapa progressiva da Segunda Internacional (1889/1914), são, em grande parte, nossas bases programáticas.

Que fique claro: não nossos fundamentos teórico-estratégicos, que estão em outro plano (por exemplo, o balanço do estalinismo do qual carecem 99% das correntes). Mas os fundamentos de nossa ação político-prática, que, obviamente, com os acontecimentos da Revolução Russa e dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista (Comintern), levaram as questões de tática e estratégia ao ponto mais alto até os dias de hoje.

A isto deve ser acrescentado, logicamente, as lições deixadas pela burocratização da própria Revolução Russa e a abordagem crítica da experiência das revoluções anticapitalistas (mas não operárias e socialistas) do pós-guerra, bem como a atualização do marxismo nas condições do capitalismo do século XXI e do ciclo de rebeliões populares.

Entretanto, se de nossas armas se trata, se é uma questão de passar das “armas da crítica para a crítica das armas”, como disse Marx, se é uma questão da experiência acumulada de luta, das armas forjadas no calor da luta, sempre abordada, em todo caso, de um ângulo crítico, é bastante claro que seu ponto mais alto foi a experiência da Revolução de Outubro que durou, basicamente, até a derrota da Revolução Alemã (outubro de 1923[1]).

Os quatro primeiros Congressos da Internacional Comunista, a conjuntura política que os cercou e, sobretudo, a elaboração e as definições sobre estratégia e táticas que neles foram alcançadas (mesmo com as limitações e indefinições que muitas dessas resoluções continham[2]), são então o tema deste texto ainda inicial (que publicamos um pouco “sumariamente”, dados os recentes acontecimentos na Argentina e no Brasil; a urgência que representam para armar a militância de nossa corrente), que, quanto ao demais, tratará de se concentrar em um só ponto: a tática da frente ú nica; além de abordar, também, as questões estratégicas ligadas ao poder proletário.

A fundação da Terceira Internacional

Muito poderia ser dito sobre a história das internacionais. Resumiremos aqui apenas algumas características gerais como estrutura para este texto[3]. A Primeira Internacional, presidida a partir da “sala dos fundos” por Marx (Engels tomou parte direta em suas tarefas somente no final, a partir de 1870) foi, em grande parte, uma espécie de frente unica das tendências operárias e socialistas européias da época. Socialistas internacionalistas (basicamente Marx e Engels), sindicalistas ingleses (a base material da Internacional em Londres), Proudhonistas franceses, anarquistas Bakuninistas e toda uma série de matizes intermediárias foram as correntes que lhe deram vida. Uma internacional operária de propaganda política federalista que resumiu as primeiras aquisições programático-político-práticas do socialismo internacional e resolveu, em certa medida, o debate com o anarquismo (Bakuninistas, Proudhonistas, etc.).

A Segunda Internacional, fundada em 1889, já expressava uma decantação. Foi, em geral, em sua primeira etapa, uma internacional socialista progressista onde as diversas variantes antipolíticas do anarquismo foram deixadas de fora. Como o próprio Trotsky apontou em A guerra e a Internacional (1915), sua tarefa foi educativa, formando partidos socialistas de massa em vários dos principais países da Europa Ocidental, além de irradiar por toda a Europa, colaborando de forma qualitativa na formação de um movimento operário socialista de massas – sobretudo europeu, repetimos – no final do século XIX (Engels participaria do Segundo Congresso da Internacional Socialista durante sua vida, que lhe renderia uma grande ovação[4]).

Foi uma internacional socialista em uma etapa reformista que forjou muitas das armas das táticas políticas, mas onde tais práticas foram dissociadas de qualquer perspectiva estratégica por toda uma série de razões, de modo que o que lhe faltava era qualquer pensamento estratégico. Na Segunda Internacional era característico falar de “questões de tática”. A palavra estratégia ainda não havia sido fundada dentro do movimento socialista, e só viria a ela a partir do pensamento militar de Carl von Clausewitz após a Terceira Internacional. Ou seja: o pensamento estratégico propriamente dito, o pensamento dos meios ordenados até um fim que não é outro senão o poder do proletariado, é a tarefa específica da Terceira Internacional. No entanto, ela já figura desde o final do século XIX no pensamento de Rosa Luxemburgo, e também anos depois no de Lenin e Trotsky – cada um à sua maneira e com suas próprias nuances também (Cuestiones de estrategia, izquierda web).

A Segunda Internacional desempenhou um papel progressivo até certo ponto e degradou-se conforme se degradava, reformistamente, o seu principal partido: o Partido Social Democrata Alemão (SPD). Finalmente, com a giro para a Primeira Guerra Mundial em agosto de 1914, ela capitulou e não se recuperou desta traição histórica. A explicação básica para esta capitulação reside na adaptação a certas condições reformistas de ação em uma época de intenso crescimento capitalista-imperialista no final do século XIX. A adaptação contra a qual não houve antídotos, ou melhor, os antídotos que surgiram mais ou menos conscientemente – o leninismo na Rússia, o esparataquismo de Rosa na Alemanha e na Polônia, o que mais tarde se tornaria a corrente conselhista nos Países Baixos, etc. – não pesaram imediatamente na Segunda Internacional. Somente com a fundação da Terceira Internacional, surgiu um pólo revolucionário internacional.

A partir de 1914 a Segunda Internacional caiu em bancarrota, e em uma série de Conferências Internacionais minoritárias (Zimmerwal e Kienthal) começaram a se agrupar para além dos vários matizes que não podemos desenvolver aqui, os internacionalistas que se opuseram à carnificina imperialista: “Embora a vanguarda da classe trabalhadora soubesse em teoria que o poder é o pai do direito, seu pensamento político foi completamente conquistado pelo espírito de oportunismo e adaptação ao legalismo burguês. Agora eles aprendem com a lição dos fatos para desprezar este legalismo e derrubá-lo. Agora as forças dinâmicas estão substituindo as forças estáticas em sua psicologia. Os grandes canhões estão martelando em suas cabeças (…)” (Trotsky, A Guerra e a Internacional).

Deve-se entender que, embora tendo uma visão internacionalista, os socialistas revolucionários russos, basicamente os bolcheviques de um lado e Trotsky do outro, sem esquecer Christian Rakovsky e outros dirigentes, eram, naquela época, basicamente correntes ou partidos nacionais, não internacionais propriamente ditos (o bolchevismo se internacionalizou como uma corrente com a Revolução Russa). Outra coisa, lembremos sempre, é que elas eram correntes internacionalistas, não nacionalistas, repetimos, e que atuavam dentro da estrutura de uma internacional, a Segunda Internacional.

Há muitas coisas a dizer, mas basta fazer assinalar um ponto evidente: com o triunfo da Revolução Russa, com seu imenso impacto no resto do mundo, a partir da concepção internacionalista de Lenin, Trotsky, Rakovsky e cia., a tarefa colocada pela falência da Segunda Internacional para criar uma nova Internacional tornou-se possível, e começou a levar-se adiante a partir de 1919, quando se realizou o Primeiro Congresso da Terceira Internacional Comunista[5].

Logicamente, os fundamentos desta recém fundada Terceira Internacional eram superiores aos da Primeira e Segunda Internacionais (sem perder as aquisições positivas destas). Se a Primeira Internacional tinha sido uma Internacional programática, por assim dizer, e a Segunda Internacional foi uma Internacional de massa organizada em torno das tarefas cotidianas do movimento operário socialista, a Terceira Internacional foi, desde o início, uma Internacional de estratégia revolucionária. Uma Internacional fundada com a perspectiva – mais ou menos imediata – da luta pelo poder em vários países – sobretudo, no início, países europeus – além da Rússia (é bem conhecido que os bolcheviques previam que a Revolução Russa estava condenada se não se espalhasse internacionalmente; eles estavam especialmente interessados na Revolução Alemã, razão pela qual ela tinha um lugar central na época revolucionária da Terceira Internacional – ou seja, até 1923 inclusive).

Disto derivaram uma série de características, e também de paradoxos, alguns dos quais poderemos desenvolver neste artigo, mesmo que não seja seu tema específico. Mas, em todo caso, o que deve ser entendido é que a Terceira Internacional foi o ponto mais alto alcançado pelo movimento operário na tentativa de estabelecer uma espécie de “comando em chefe da revolução internacional”, e por isso foi, nas palavras de Trotsky, uma verdadeira escola de política revolucionária.

Nada disto quer dizer que as coisas foram simples, ou que os bolcheviques, que eram o núcleo em torno do qual a Internacional estava organizada, tinham todas as coisas resolvidas (Pierre Broue, em seu monumental trabalho sobre a História da Internacional Comunista, pinta um quadro completamente diferente de qualquer abordagem edulcorada da mesma).

Muito pelo contrário: Trotsky apontou muitíssimas vezes como no calor daqueles anos, os anos mais revolucionários da humanidade, quase não havia tempo para sentar-se e refletir sobre a experiência que estava realizando-se na marcha. Ou seja, sob seus próprios olhos: veremos mais tarde o dramático transbordamento que marcou a ação da Internacional em seu período áureo.

Além disso, o internacionalismo direciona seu olhar a partir dos elementos comuns que determina o mercado mundial capitalista e o sistema mundial de Estados; a globalização do sistema-mundo em que vivemos hoje. Ao mesmo tempo, também é verdade que cada país é, em certa medida, um “mundo”: uma refração particular das tendências universais (uma combinação particular dos elementos universais). Combinação particular que, entretanto, só pode ser entendida de um ponto de vista internacional[6].

Esta é a dupla tensão dialética da política e da construção revolucionária: apreciar os elementos universais comuns e também as nuances nacionais dentro desta estrutura geral. Acontece que a revolução não se depara com “fotocópias” em todos os países e regiões do globo. Daí o lamento de Lenin de que muitas das resoluções da Terceira Internacional fossem “muito russas“, ou que necessariamente surgissem os clássicos debates sobre a revolução no Oriente – e Extremo Oriente – e no Ocidente, e afins (os elementos comuns e também as nuances colocadas pelas diversas circunstâncias regionais e nacionais[7]).

Um elemento não insignificante e paradoxal, também observado por Pierre Broue em seu bem documentado trabalho sobre a Historia da Internacional Comunista (1919-1943), é que na maioria das vezes os principais líderes bolcheviques, os mais comprovados, os mais capazes, Lenin e Trotsky, estavam tão absorvidos pelas vicissitudes do poder soviético, da guerra civil, do giro à NEP, etc., que muito pouco puderam dedicar – em tempo real – aos assuntos internacionais. Para todos os fins práticos, as tarefas diárias da Terceira Internacional foram deixadas nas mãos de líderes menores como Zinoviev – presidente da Terceira Internacional em seu apogeu – Bukharin, Radek – que desempenhou seu melhor papel na época da Revolução Alemã apenas para depois entrar em um declínio dramático – etc., sem mencionar personagens cinzentos ou aventureiros sem esperança como Bela Kun e tantos outros “Espartaquistas y bolcheviques”, Izquierda Web).

É claro que havia um número enorme de quadros muito valiosos nos mais diversos países, com uma experiência muito rica e de imenso valor, mas que deixaram uma lição marcada a fogo: partidos revolucionários não podem ser improvisados; não podem ser construídos de um dia para o outro (e muito menos deseducando a base dia e noite como fazem as seitas ainda marcadas pelas práticas estalinistas![8]). Forjar um partido e uma direção revolucionária significa uma acumulação complexa ao longo dos anos, um processo de “seleção política natural” que foi o problema básico com o qual a Terceira Internacional se deparou quando não tinha praticamente nenhum partido em nenhum outro país além da Rússia que fosse maduro o suficiente para enfrentar o surto revolucionário que se desencadeou imediatamente após a Revolução de Outubro.

Mas mesmo assim, a Terceira Internacional foi uma escola de elaboração de estratégia revolucionária sem igual; uma escola onde durante a luta e no calor da experiência, e tentando generalizar e universalizar as lições da Revolução Russa e do Partido Bolchevique, Lenin, Trotsky, Rakovsky e outros líderes foram elaborando, em meio aos acontecimentos, muitas das armas que compõem o arsenal político de nossa prática cotidiana de hoje.

Algumas definições eram mais claras, outras menos. A discussão sobre a frente única, os problemas do “governo dos trabalhadores”, as consignas transitórias, a questão colonial e a proposta da frente anti-imperialista, etc., foram questões, algumas bem resolvidas e outras não (Bensaïd), que marcaram os primeiros quatro Congressos da Internacional Comunista em sua época revolucionária, e que deixaram uma fonte de experiência acumulada até os dias de hoje[9].

Uma fonte de experiências ratificada com a fundação da Quarta Internacional (precisamente, chamada a salvaguardar esse legado do bolchevismo), bem como atualizada pelas lições do surimento do estalinismo como fenômeno sem precedentes de burocratização de uma revolução socialista, das revoluções do pós-guerra, das características do capitalismo atual, etc.., em uma combinação entre a salvaguarda de um legado com ensinamentos universais e um desafio para relançar o marxismo revolucionário nas novas condições[10], que fazem, repetimos, a forja de nossas armas programáticas, estratégicas e de ação que hoje, no século XXI e diante dos crescentes desafios da luta de classes que se observa, devemos colocar à prova em nossa intervenção revolucionária.

Mudança da frente na Terceira Internacional

A Terceira Internacional atuou em um cenário bem definido. Teve dois momentos em seu período revolucionário: a) o momento de ascensão após a Revolução de Outubro que marcou seus dois primeiros congressos (1919 e 1920[11]), e b) o período de relativa estabilização econômica e política na Europa Ocidental após esta primeira onda revolucionária e o rescaldo imediato da guerra mundial. Um período que então levou a um novo ascenso na Alemanha em 1923[12] (e que foram os anos de 1921 e 1922, nos quais se realizaram o Terceiro e Quarto Congressos da Internacional Comunista).

A mudança da frente entre os dois primeiros congressos e os dois últimos foi enorme: no início acreditava-se que a revolução estava “ao virar a esquina”, por assim dizer, mas uma série de contratempos e conquistas capitalistas, devido, entre outras coisas, à imaturidade dos novos partidos comunistas, tornou possível ao capitalismo europeu estabilizar a situação.

Um marco fundamental neste processo foi, naturalmente, a sangrenta derrota do levantamento – prematuro – Spartaquista em janeiro de 1919 na Alemanha, que tirou a vida de Rosa Luxemburgo, Karl Liebchneck, Leo Jogiches alguns meses depois, etc., e que praticamente acabou com o recém-fundado Partido Comunista da Alemanha[13].

Em geral, neste período, houve surtos revolucionários bastante “espontâneos” em vários países (Itália, por exemplo, retratada magistralmente por Gramsci e seu grupo: L’ordine nuovo), bem como revoluções abortadas e/ou derrotadas. É o caso da Hungria dos conselhos na primeira metade de 1919 (na qual foram cometidos erros basicamente oportunistas), a derrota da Revolução Finlandesa de 1918, também por razões oportunistas (aqui, ao contrário, uma traição da social-democracia à revolução em curso), etc., e outra série de derrotas onde o ponto chave foi a traição da social-democracia alemã, em primeiro lugar, assim como da imaturidade esquerdista e até mesmo exiguidade dos partidos comunistas nascentes[14].

O Primeiro Congresso da Terceira Internacional, o congresso fundador, foi basicamente o assinalado: um congresso com pouca representação, embora o “Rubicão” tenha sido cruzado (a Internacional foi fundada). O Segundo Congresso já era muito mais representativo e suas tarefas estavam basicamente ordenadas em torno das famosas 21 condições de admissão dos múltiplos processos – embora complexos e cheios de contradições – da divisão de toda uma série de formações social-democratas à esquerda, fundindo-se com os pequenos núcleos comunistas sob certas condições de funcionamento para tornar essas organizações revolucionárias e não reformistas.

Ainda durante o Segundo Congresso se respiraram ares revolucionários com o caso de Lenin inclinado sobre um mapa da Europa seguindo os desenvolvimentos do Exército Vermelho que entrava na Polônia no início de 1920 na expectativa de que os trabalhadores de Varsóvia se levantassem revolucionariamente, algo que nunca aconteceu (uma lição de que a revolução não pode ser imposta pelas baionetas, como Trotsky apontou em tempo real – Trotsky se opôs a esta incursão enquanto Lenin se deixou levar pelo entusiasmo[15]).

A derrota na Polônia foi outra das derrotas que permitiram o giro desta crise revolucionária para uma frágil estabilização capitalista. O Partido Comunista Polonês nunca se recuperaria totalmente desta derrota e, devido às suas características independentes e “Luxemburguistas“, foi simples e criminalmente dissolvido por Stalin em 1938, apenas para formar um novo partido burocrático no início dos anos 40, o partido que deveria exercer o poder na Polônia burocrática do pós-guerra. Isaac Deutscher, que veio deste partido, tornou-se um trotskista nessa batalha contra o estalinismo, embora tenha deixado de militar posteriormente e escrito um trabalho fundamentalmente equivocado sobre as características deste último.

Tampouco teve sucesso a revolta dos trabalhadores no norte da Itália, com fortes traços espontâneos, como já assinalamos, e traída pelos social-democratas do PSI (Partido Socialista Italiano, além da cegueira sectária do PCI recém-formado[16]), o que posteriormente levaria o pêndulo da luta de classes em direção ao triunfo do fascismo em outubro de 1922.

Rumo ao 3º e 4º Congressos da Internacional Comunista, as coisas se tornaram mais sérias, por assim dizer. Os partidos comunistas já estavam, em certo sentido, relativamente formados. Mas a conjuntura européia havia mudado de ofensiva para defensiva, embora seja necessário entender bem isto: o período revolucionário ainda estava aberto como expresso nos acontecimentos na Alemanha em 1923, por exemplo.

Por esta mesma razão, dada a maior maturidade da própria Terceira Internacional e dos partidos sob sua liderança, as discussões destes dois últimos congressos foram as mais frutíferas; o que não significa que o transbordamento da Internacional Comunista, de sua direção, não tenha sido uma característica permanente de sua ação, nem que menos erros tenham sido cometidos. Os erros cometidos foram uma multidão, mas devem ser tomados como erros de aprendizagem dos revolucionários, ainda assim a direção de Zinoviev e Bukharin teve altos traços de inépcia. Outra coisa será a Internacional sob a liderança de Stalin, convertido, como Trotsky apontou em um brilhante texto de mesmo nome, em um grande organizador de derrotas[17].

Então, é nestes dois últimos congressos da Internacional Comunista (o terceiro e o quarto) que temos uma espécie de “síntese” por assim dizer (ainda que a palavra não seja realmente aplicável a estes trabalhos e resoluções abertos e realizados com a marcha dos acontecimentos em andamento) das mais importantes lições e ensinamentos de táticas e estratégias revolucionárias onde questões como a frente única, as consignas transitórias (estas, paradoxalmente, repetimos, melhor abordadas no Quinto Congresso que, embora artificioso, ainda assim expressou debates reais 18]), o parlamentarismo revolucionário, os problemas dos governos dos trabalhadores (não confundir com a ditadura proletária, como veremos) e, em geral, as lições revitalizadas pela experiência fracassada do mês de outubro alemão, da estratégia revolucionária para o poder, que Trotsky expressou, uma e outra vez, durante os debates sobre a Alemanha em 1923, e novamente no Lições de Outubro em 1924 e em tantos outros escritos da época.

Detendo-nos por um momento neste debate, Trotsky insistiu que uma oportunidade revolucionária foi perdida não apenas por responsabilidade de Brandler, a quem a direção da IC queria culpar por todos os erros, mas sobretudo por causa da responsabilidade da própria direção da Internacional. Mantendo seu perfil intriguista e baixo, Stalin sempre se opôs a lançar-se ao poder na Alemanha, enquanto Zinoviev e cia. esmurravam a mesa para convencer um irresoluto Brandler a tomar o poder, mas de uma forma abstrata.

Trotsky agiu de maneira oposta, tentando convencer pedagogicamente Brandler (até o acompanhou no trem no dia em que retornou de Moscou para Berlim). Ele lhe apresentou uma questão muito concreta: dadas as circunstâncias mais do que maduras, era necessário estabelecer uma data e uma hora para a tomada do poder, a fim de proceder à sua organização prática: a colocação em movimento do lado prático da coisa[19]. Até se candidatou para ir pessoalmente à Alemanha para ajudar (ao que a direção da Internacional se opôs por razões de “segurança” e a má imagem de um estrangeiro dando “ordens” em outro país – desculpas para mantê-lo fora do jogo).

A lição, no geral, é que quando todas as outras condições políticas estão maduras ou mais do que maduras, o lado prático das coisas segue: é preciso passar do plano político para organizar a insurreição, ou seja, para o lado militar da insurreição, além de todas as demais tarefas estratégicas de organização.

Outro ensinamento foi contra o democratismo. Brandler exigiu que se votasse em uma frente única com os social-democratas para a tomada do poder, ao que estes últimos evidentemente se recusaram. Uma aposta democratista, repetimos, porque a tomada do poder já estava no “ar”, legitimada pelas bases dos trabalhadores, e é este aspecto da democracia real e não formal, da legitimidade de fato, que deve ser imposto e não a já mencionada “democracia” parlamentar, que não vale nada.

Debates estratégicos na Terceira Internacional

De toda a enorme elaboração programática e prática da Terceira Internacional, de fato, queremos nos deter sobretudo em dois capítulos: os debates em torno da frente única e os debates em torno do problema do poder. Ou seja: as pressões de esquerda a direita e de direita a esquerda, as mudanças em uma direção ou outra, oportunistas e sectárias, que estão sempre presentes nas ações dos revolucionários. Trotsky insistia que dirigir é saber corrigir a tempo estas pressões e/ou desvios que sempre marcam a marcha do partido, que jamais se desenvolve em linha reta, mas em ziguezague. É sempre necessário ir contra as pressões “naturais” com as quais se sobrecarrega o partido: para um lado e para o outro, dependendo do seu tamanho e da conjuntura particular de sua ação.

Com vistas ao Terceiro Congresso da Internacional Lenin conclui um panfleto que fez história: Esquerdismo, doença infantil do comunismo. É evidente que a juventude dos partidos comunistas nas condições da Revolução Russa e da traição social-democrata exerce pressões esquerdistas sobre todas as organizações. Isto era asim, inclusive, no partido bolchevique, onde na época estava presente a chamada “Oposição Militar”, que era uma fração inspirada em Stalin e localizada na Geórgia, que contrapunha a guerra de guerrilhas ao Exército Vermelho”profissionalizado”, que defendia e havia imposto corretamente Trotsky (que apontou com veemência que uma certa “simetria nas formas” era inevitável se o objetivo fosse enfrentar e derrotar o inimigo militarmente; ou seja, ele tinha uma abordagem não romântica e muito materialista da guerra civil – Sua Moral e a Nossa, entre outros textos, incluindo aqui os textos teóricos de seus Escritos Militares[20]).

No Ocidente, a revista Kommunismus (1920/1), inspirada pelo jovem Lukács, era o ponto de encontro intelectual de todas as correntes esquerdistas que rejeitavam a ação nos parlamentos e sindicatos burgueses, declarando-os “historicamente ultrapassados”. Lenin lhes responderia, muito claramente, que a obsolescência histórica muitas vezes não coincide com a obsolescência política[21] e que os revolucionários tinham a obrigação de agir onde as massas estavam, apresentando um panfleto épico no qual ele mostrava como os bolcheviques se tornaram grandes praticando com maestria todas as formas de luta (a ciência e a arte da política e estratégia revolucionárias).

Lenin considerava o esquerdismo da época como uma doença infantil, na medida em que se tratava de partidos constituídos principalmente pela geração mais jovem de trabalhadores sem muita experiência prévia. Ao mesmo tempo, e este foi um ponto fundamental, diferenciava os pecados do esquerdismo dos duplamente graves pecados oportunistas – estes sim traidores da social-democracia – mas não por isso menos prejudiciais.

No entanto, outra coisa completamente distinta seria o traidor giro estalinista, primeiramente sectário – o chamado “terceiro período”, aonde se capitulou sem lutal a tomada do poder por Hitler[22] – e depois o frentepopulismo a partir do VII Congresso da Internacional “Comunista” (devemos colocar um parênteses porque não sobrou nada da internacional revolucionária de outrora) com o qual se subordinou aos partidos comunistas e a classe trabalhadora do Ocidente à conciliação de classes com a burguesia, entregando-se desta maneira a revolução e a guerra civil espanhola, entre outras traições históricas já sob o formato oportunista.

As frentes antifascistas, concebidas já como uma frente de conciliação de classe e não como frentes de luta das organizações dos trabalhadores, como frentes únicas de luta de independência de classe, foram parte desta orientação entreguista; da justificativa da aliança política com a burguesia sob a desculpa da “luta contra o fascismo”.

O ensinamento, como foi apontado: pode-se capitular tanto à direita como à “esquerda”; a política revolucionária não é, mecanicamente, nem de direita nem de esquerda, ela é revolucionária, ou seja, a política justa, correta para cada momento dado ou, o que é o mesmo, o aprendizado do que era mais forte em Lenin, como foi apontado por Trotsky: a força de seu realismo revolucionário, de sua avaliação concreta das coisas[23] (que obviamente não tem nada a ver com a real politik, com o possibilismo – ou, para colocar em termos que são contemporâneos para nós no século XX, o impossibilismo dos “progressismos”).

Da direita a esquerda, esta segunda etapa da história revolucionária da internacional teve que enfrentar primeiro o desvio sectário infantil e depois com o desvio oportunista que tragicamente rifou a revolução alemã (“se a revolução não tivesse sido perdida em 1923, toda a história do século passado teria sido diferente”, The lost Revolution, Chris Harman).

A tática da frente única. Considerações gerais

Quanto à tática da frente única dos trabalhadores, a primeira coisa a se entender é que existem muitas formas de frente única, não apenas uma.

a) Os sindicatos são frentes únicas de tendências de fato, porque reúnem aos trabalhadores na sua qualidade de trabalhadores e, portanto, com todos os seus matizes políticos.

b) Uma forma muito mais elevada de frente única são os organismos de base tipo frentes sindicais, ou, ainda mais, os conselhos de trabalhadores ou soviets, que como tais organismos de duplo poder ou poder, são frentes únicas de tendências políticas, embora não devam ser constituídas apenas por acordo entre diversas tendências (no entanto, tal acordo pode e deve convocá-los se houver condições); eles surgem como uma necessidade no curso da luta. (Isto pode ter muitas combinações porque depois da Revolução de fevereiro, por exemplo, as várias tendências socialistas – reformistas e revolucionárias – concordaram em criar novamente o Soviete de Petrogrado e, a partir daí, os sovietes se espalharam por todo o país).

Deve ficar claro que as formas de organização a partir de baixo, os organismos de base, as frentes sindicais, os conselhos de trabalhadores, surgem “naturalmente” das necessidades da própria luta, ou seja, não podem ser artificiais. Embora, atenção, nós revolucionários devemos promovê-los e propagandeá-los – de forma sistemática – em todos os casos em que for necessário (Trotsky, Aonde vai a França?); que sua necessidade seja colocada objetivamente, inclusive, a partir de agora, tomando a iniciativa de sua formação (óbvio: repetimos que se não houver condições, nada surgirá).

c) Por outro lado, há outra forma de frente única, que é a que emerge do acordo entre organizações da classe trabalhadora e a esquerda. Ou seja: não é tanto um organismo de luta e poder, mas um acordo de tendências políticas. Esta forma de frente única dos trabalhadores entre organizações da esquerda é a forma clássica do acordo de tendências. Pode ser que entre todas elas haja acordo para avançar em direção a uma frente única eleitoral de independência de classe ou em torno de uma série de pontos delimitados, e então a frente emerge, ou pode ser que não haja acordo e, então, nosso desafio para sua formação seja uma forma de encurralar-los empurrá-los para sua formação, ou desmascará-los para sua base por sua posição.

d) Deve ficar claro, em qualquer caso, que nesta última forma de frente única entre as organizações, e em frentes únicas em geral, o partido mantém sua independência política incondicional e sua liberdade de crítica.

A formulação clássica a este respeito, embora mais aplicada à unidade de ação, mas que também é válida para todas as formas de frente única, é a de atacar juntos e marchar separados, ou seja, a força dos trabalhadores é unificada na ação, mas nunca são reduzidos ou postos de lado nosso programa, nossa independência política e nossa liberdade de crítica.

e) Que em nenhum caso fazemos fetiche de qualquer forma em geral. É claro que os organismos de poder do tipo soviético são mais estratégicos, por assim dizer, mas, no entanto, nunca nos ligamos a nenhuma forma particular deles; não fazemos, repetimos, nenhum fetiche de uma forma ou de outra, mas partimos dos organismos que os próprios trabalhadores se dão – tais organismos são medidos por seu conteúdo revolucionário alternativo aos poderes do Estado, não por sua forma[24].

f) Deve ficar claro que a frente única entre as organizações é uma tática extremamente importante. No entanto, não deixa de ser uma tática. A unidade da frente dos trabalhadores, a unidade dos trabalhadores de todos os matizes para a luta, é da maior importância, mas ainda é uma tática, não só porque a frente única dos trabalhadores pode assumir as mais variadas formas, mas também porque, em última análise, o que é estratégico é o programa revolucionário, e, como apontara Trotsky, tornando materiais as coisas, o programa é o partido. Um programa político deve encarnar-se em uma organização que o ponha em prática, e essa organização política, e não apenas um sindicato, é o partido revolucionário.

É claro que a mobilização das massas também é estratégica; sem elas não há nada. E, ao mesmo tempo, assim são os órganismos de poder sem fetichizar nenhuma de suas formas (o caráter estratégico dos organismos de poder das próprias massas é parte do balanço das revoluções do século passado, embora, mais uma vez, não devemos fetichizar nenhuma forma delas ou fazer esquematismos quando se trata de como a classe trabalhadora se organiza no poder, que é a definição de ditadura do proletariado em Marx[25]).

Mas, em suma, o mais estratégico, o menos natural no desenvolvimento da luta de classes, é o partido ou organizações revolucionárias para este fim, assim como o menos natural é a política, a luta política, e o mais natural na classe trabalhadora é a luta por reivindicações, as exigências diárias e materiais que surgem ao ponto da exploração. O que é estratégico, em resumo, é que todas as nossas ações estão estrategicamente voltadas para a luta pelo poder.

g) Em seguida, vêm as delimitações. Uma, que a frente única dos trabalhadores não tem nada a ver com a frente popular, a frente de conciliação de classes ou “campismo”. Nosso terreno é o da classe trabalhadora, de sua independência política. A frente única dos trabalhadores é uma tática para este fim de unir forças entre organizações de classe contra o inimigo de classe comum, a burguesia, ou, no terreno político, para lutar pela independência política de nossa classe, pela convicção de que a classe trabalhadora pode se transformar em classe histórica e dirigir a sociedade.

O oposto é a frente popular, que é a subordinação política da classe trabalhadora, sua suposta “orfandade” em relação à classe burguesa, sob seu comando, sob a idéia de que somente os políticos burgueses, seus advogados ou o que quer que seja, são os que podem “fazer política” e/ou comandar as coisas.

O estalinismo passou da recusa de realizar a frente única dos trabalhadores contra o fascismo com as organizações socialdemocratas e passou, com armas e bagagem, para a frente popular: para a frente política de conciliação de classes, que poderia ser expressa hoje, por exemplo, em tempo real no Brasil, na capitulação do PSOL para a frente ampla popular de Lula e Alckmin que funciona sob o mesmo pressuposto: o paternalismo, que a classe trabalhadora seria um “nada” político e não poderia se levantar de forma independente, deve ser comandada por aqueles que “sabem”, aqueles que “têm estudo”, ou o que quer que seja.

h) Segunda delimitação: a frente única e a unidade na ação são táticas diferenciadas. Unidade de ação, como diz a palavra, é a ação comum para um único ponto que não dá origem a nenhum organismo permanente. Ela começa e termina com a própria organização da luta específica e, por isso mesmo, não tem um critério de classe exclusivista: a unidade de ação se faz com “o diabo e sua avó” (como disse Trotsky contra todo o sectarismo), de modo a entender que tomamos as ruas junto com todas aquelas forças que compartilham o objetivo comum específico da própria luta. Por exemplo, no recente caso argentino, a rejeição do ataque contra Cristina Kirchner, vice-presidente da nação, que, além do mais, é um ataque a todas as liberdades democráticas.

A unidade de ação é assim: ela pode ser realizada e se leva a cabo de fato, com as direções reformistas dos trabalhadores, e também com suas direções burguesas porque, ademais, é somente nas ruas golpeando que podemos e devemos, ao mesmo tempo, disputar suas bases (não há como realmente disputar as bases a não ser na ação comum, ação comum que se estende até certo ponto e depois se rompe porque as direções reformistas e burguesas nunca apelam, principistamente, à mobilização; elas têm sempre medo de serem esmagadas pelas massas).

No caso da frente única, ela tem mais elementos de permanência ao longo do tempo. Ela se organiza em torno de certos pontos, ou um determinado programa, e seu objetivo, também, é passar à ação e não permanecer meramente verbal. Mas significa uma “cristalização organizatival”, por assim dizer, e, portanto, seu critério deve ser de classe: jamais politicamente e, exceto excepcionalmente em condições muito específicas, nunca entramos em uma frente única com organizações burguesas (instrumentos de frente única mais permanentes podem ser forjados com organizações deste tipo excepcionalmente no caso de golpes militares; mas mesmo neste caso é preciso ter muito cuidado e seu caráter será episódico[26]).

i) Por outro lado, e como temos escrito, falar sobre a frente única é mais fácil do que realizá-la (isto se deve às pressões às quais estamos sujeitos, tanto sectárias quanto oportunistas). O fato é que a frente única dos trabalhadores, especialmente quando se trata de um acordo com organizações burocráticas, pode ser útil por um certo tempo para levar adiante a luta, e para que os trabalhadores façam experiência com as organizações reformistas e burocráticas. Mas a partir de um certo momento, estas organizações, que são efetivamente uma cristalização de práticas reformistas e traidoras ao longo de todo um período histórico, irão necessariamente trair e se retirar da luta. Pode ser que aí haja ruptura nas mesmas e se aproximem do terreno revolucionário, o que seria extraordinário, e pode ser também – isto é, em parte, do objetivo da frente única dos trabalhadores, para além do atacar juntos contra o inimigo de classe – que muitos trabalhadores façam a experiência com estas direções. Mas devemos estar conscientes de que elas são um milhão de vezes mais pérfidas do que nós, têm uma vida inteira de experiência em perfídia política e em algum momento do caminho eles vão trair a luta, e é por isso que devemos “evitar engolir o fingimento”: antecipar o movimento, o momento em que temos que quebrar a frente única ou a unidade de ação para não dar cobertura pela esquerda a sua capitulação[27].

j) A frente única dos trabalhadores é uma tática que é realizada por cima e por abaixo, ou seja, concebe áreas comuns – transitórias – com as direções, e também a unificação dos trabalhadores pela base. A leitura sectária é pensar que os trabalhadores reformistas se unirão aos revolucionários mesmo que não estabeleçamos a frente única com suas direções, ou seja, em todas as áreas: por baixo e por cima também. E a visão oportunista é a de acreditar que a frente única por cima é suficiente. Não é verdade: não é suficiente. Pode ser que de cima os reformistas nos joguem a todos seu “mel”, mas se a frente única não for uma alavanca para a mobilização das massas, ela se torna um antro reformista. Uma lição sobre o uso reformista da frente única foi criticada por Trotsky na época da greve geral na Inglaterra em 1926, onde através do chamado “Comitê Anglo-Russo” os comunistas daquele país estavam numa frente única com a burocracia reformista do Partido Trabalhista no exato momento em que estes traíam aquela histórica greve geral…[28].

k) Finalmente, embora não vamos desenvolvê-la muito aqui, houve a tática na Terceira Internacional da frente única anti-imperialista nos países coloniais ou semicoloniais por sua independência. Com a generalização da teoria da revolução permanente de Trotsky em 1929 para todo o mundo, esta tática tornou-se obsoleta porque a burguesia, mesmo semicolonial, passou para a ordem burguesa e deixou de enfrentar o imperialismo de forma minimamente consistente.

É claro que isto admite muitas nuances, mas não podemos desenvolver esta discussão neste texto. Basicamente: é possível entrar em unidade de ação com setores da burguesia no desenvolvimento de qualquer exigência que ela, mesmo episodicamente, assuma contra o imperialismo, mas pensar que frentes únicas mais ou menos duradouras podem ser estabelecidas com ela contra o imperialismo está fora das circunstâncias históricas, especialmente nas condições da globalização do capital neste século XXI.

Em síntese: todas estas lições que resumimos em uma síntese muito enxuta aqui, nesta primeira parte deste ensaio, mostram a enorme complexidade da tática da frente única que, naturalmente, embora ainda tenha complexidades, é muito mais simples quando é uma “frente única de bolso” entre organizações da esquerda que têm uma perspectiva comum de independência de classe.

É muito mais difícil medir-se contra as forças burocráticas e até burguesas ou pequenas burguesas que dirigem o movimento de massa, e que têm milhões de vezes mais experiência prática acumulada do que a esquerda revolucionária, e, repetimos, infinitamente mais perfídia (perfídia é o pão cotidiano de suas ações!).

Daí surgem dois reflexos muito comuns: a) um é a adaptação reformista possibilista a elas, por exemplo hoje, entrando numa ampla frente popular como se fosse uma “frente de esquerda”[29], b) outro é o reflexo sectário por medo do abraço do urso por parte das mesmas (atenção: um perigo real, mas que deve ser evitado com maestria revolucionária[30]).

Na segunda parte deste ensaio nos dedicaremos então, com mais profundidade, aos debates que surgiram na Terceira Internacional a partir da frente única, que não é sobre uma “receita” particular, mas sobre a série de certas lições de estratégia revolucionária, do “laboratório estratégico” que efetivamente foi a Terceira Internacional – mesmo com seus erros – sua época revolucionária.

Bibliografía[31]

Perry Anderson, Antinomias de Antonio Gramsci.

AA.VV., Los cuatro primeros congresos de la Internacional Comunista, 1919-1923, ediciones pluma, serie documentos n>1, Argentina, 1973.

-“Tesis sobre la unidad del frente proletario”, ídem.

-“Tesis generales sobre la cuestión de Oriente”, ídem.

Daniel Bensaïd, Estrategie et partido.

Pierre Broue, Historia de la Tercera Internacional, Sunderman.

Revolución y contrarrevolución en Alemania, tomo I, II y III.

Chris Harman, The lost revolution.

Miguel Romero, “El origen de la política de frente único: debates de estrategia en la Internacional Comunista (1919-1923)”, Textos de combate, Google.

León Trotsky, Escritos latinoamericanos.

-“Consideraciones generales sobre el frente único”, 1922.

  • León Trotsky, La lucha contra el fascismo en Alemania, Ediciones Pluma, tomo II, Buenos Aires, 1974.
  • Escritos Militares.
  • Stalin, el gran organizador de derrotas.

Francoise Sabado, “Elementos centrales de estrategia revolucionaria en los países capitalistas desarrollados”.

Roberto Sáenz, “La política revolucionaria como arte estratégico”, izquierda web.

-“Cuestiones de estrategia”, izquierda web.

[1] Sob condições gerais defensivas, novos eventos decisivos ocorreriam mais tarde na Alemanha, como a ascensão do nazismo no início dos anos 30: o resistível avanço de Hitler ao poder, uma luta traída pelo estalinismo e sua cegueira criminosa para aplicar uma política de frente única com a socialdemocracia, entre outras coisas (geralmente se esquece que esta foi a maior traição do mesmo).

[2] Bensaïd refere-se a essas indefinições às quais voltaremos mais tarde (Estrategia y partido). Ou seja: nem tudo foi resolvido pela Terceira Internacional, nem todas as suas resoluções, têm a “transparência” – ou a solidez – que geralmente se acredita. Exemplos disso são as resoluções sobre o “governo dos trabalhadores”, que é muito confusa, ou sobre a “frente única anti-imperialista”, ainda etapista.

[3] Os especialistas na Primeira e Segunda Internacionais são D.H. Cole, com uma obra clássica em vários volumes no caso da primeira, e George Haupt para a segunda.

[4] Em algumas de suas notas, Marcello Musto aponta que Marx não teve a sorte de ganhar um reconhecimento tão maciço durante sua vida.

[5] Rosa Luxemburgo, lastreada por certas concepções conservadoras de organização, ordenou ao delegado do KPD no primeiro congresso da Terceira Internacional que votasse contra sua formação “até que forças maiores tivessem superados as suas fileiras“, o que, de qualquer forma, acabou acontecendo – “naturalmente” – para o Segundo Congresso da Terceira Internacional (dada a força gravitacional dos acontecimentos). Era evidente que a Terceira Internacional tinha que ser fundada imediatamente após o triunfo da Revolução de Outubro e a falência da Segunda Internacional (“Problemas de la Revolución Alemana “, Izquerda da web).

[6] Afirmamos isto porque a inter-relação política e econômica é hoje um fato inevitável: esta inter-relação internacional de fenômenos é a maior que já existiu na história da humanidade.

[7] Repetimos que os elementos internacionalistas, comumente, só tendem a se fortalecer com o desenvolvimento capitalista, mas, também é verdade que a subsistência dos estados nacionais e formações culturais em cada país e/ou região do mundo trazem consigo a riqueza da refração das tendências universais em cada uma delas, além da plena operacionalidade da lei do desenvolvimento desigual e combinado.

[8] Referimo-nos aqui a organizações como o PTS argentino, carente de um balanço estratégico do século passado, ou, por outro lado, organizações degradadas de forma reformista como o MES ou a Resistência no Brasil e seu crime de ingressar em uma frente ampla popular no Brasil. Isto para não mencionar a perda do caráter militante e o oportunismo mais ou menos orgânico das organizações pós-Mandelistas europeias.

[9] A partir do V Congresso, já sob a égide do estalinismo, a educação política foi degradada em uma série de discussões, resoluções e zig-zags a direita e a esquerda que deseducaram a vanguarda dos trabalhadores.

Entretanto, ainda que seja uma discussão desse congresso, o debate sobre as consignas transitórios permanece válido. Mas é praticamente a única coisa que conserva valor (Bensaïd resume bem este debate em Estrategia y partido, assim como outros autores).

[10] Dizemos recriação porque nas condições do fechamento de uma etapa histórica e da abertura de outra, a corrida para frente de muitas correntes as condenou à esterilidade política e estratégica.

[11] O Primeiro Congresso foi muito incipiente, com pouca preparação e pouca participação, mas o primeiro passo fundacional já havia sido dado. O Segundo Congresso foi o das 21 condições, onde foi feita uma tentativa de estabelecer condições de admissão porque muitas frações à esquerda da socialdemocracia oficial estavam prontas para aderir formalmente, por assim dizer, mas sua prática não era revolucionária. É muito para desenvolver isto aqui, mas o processo e as discussões em torno das eventuais incorporações, ou não, deixaram muitos elementos educativos (ver a obra de Broué tanto sobre a Terceira Internacional quanto sobre a Revolução Alemã, extraordinária esta última – seu melhor trabalho, eventualmente).

[12] A ocupação francesa do Ruhr no início de 1923, a parte mais industrializada da Alemanha, sob o pretexto de não pagamento de reparações de guerra, desencadeou uma crise revolucionária e uma situação hiperinflacionária que só se extinguiu com o fracasso da revolução e um plano clarividente de assistência à Alemanha por parte dos Estados Unidos que se propôs reduzir essas reparações, o Plano Dawes (agosto de 1923).

[13] Rosa se colocou contra a revolta, mas não pôde impedir que Liebchneck participasse dela. Quando Berlim foi isolada e a repressão começou, ela não queria deixar o proletariado da cidade sozinho e, nessas circunstâncias, foi presa, torturada e assassinada.

 [14] O recém nascido Partido Comunista Alemão estava fundado sobre uma geração jovem que não tinha conseguido fazer uma superação dialética do oportunismo social-democrata: eles basicamente rejeitaram tudo o que seria organização, assim como a participação nos órgãos legislativos e nos sindicatos majoritários, e tinham uma orientação bastante putchista de levantar as massas através de ações exemplares (a ação de março de 1921 foi basicamente isso).

Posteriormente, em um ziguezague clássico à direita, em 1923 o PCA deixou passar a maior crise revolucionária que a Alemanha contemporânea já conheceu em sua história.

[15] Esta é uma das raras ocasiões em que Trotsky tinha razão contra Lenin em uma questão específica (há outras, no entanto, como a preocupação de Trotsky com o planejamento econômico, que Lenin inicialmente não soube avaliar).

[16] O jovem Partido Comunista italiano, inicialmente dirigido por Amadeo Bordiga, cometeu, entre outras coisas, o erro sectário de não fazer contato com o Arditi del Popolo, que era uma espécie de milícia popular de massa formada por ex-combatentes, mas que se posicionavam à esquerda em oposição revolucionária ao fascismo. Bordiga tinha a política ultimatista de que se submeteriam ao partido, o que, evidentemente, não ia acontecer (e não aconteceu).

Gramsci, naquela época ainda muito jovem e inexperiente, não se diferenciou desta orientação, embora mais tarde, quando assumiu a liderança do partido por volta de 1926, levou adiante um giro na orientação (é claro que ele entendeu a importância de táticas de frente única, mesmo que algumas de suas formulações estratégicas fossem confusas, As Antinomias de Antonio Grasmci, Perry Anderson).

[17] Stalin, o grande organizador das derrotas, é uma obra que contém vários textos de Trotsky, muito educativos e focalizados em questões de estratégia na política revolucionária (estes são textos escritos antes e depois do Sexto Congresso da Internacional Comunista, já sob o controle absoluto do estalinismo).

[18] August Talheimer, um teórico do PCA ligado à corrente de Brandler (Secretário Geral do partido na época dos eventos de outubro alemão e de tendências oportunistas, ainda que honestos), foi quem desenvolveu naquele congresso da Internacional (Moscou, junho-julho de 1924) a discussão sobre a importância das consignas transitórias acompanhado, até onde nos lembramos, por Clara Zetkin e pela oposição esquerdista senil de Zinoviev ainda à frente da Internacional naquela época.

Nesse congresso, por sua vez, todas as tentativas foram feitas para evitar levar adiante uma avaliação honesta dos erros oportunistas cometidos na Alemanha no ano anterior (veremos isso em seguida).

[19] Leon Trotsky: “¿Es posible fijar un horario para la revolución?”, setembro de 1923, MIA.

[20] “Problemas da guerra civil“, 29 de julho de 1924, é um texto brilhante que resume muito dos problemas estratégicos da revolução e a passagem para o plano militar das coisas (ver, também, “Política revolucionária como arte estratégico“, de nossa autoria sobre estes mesmos temas, esquerda web).

[21] A dialética entre caducidade histórica e caducidade política se refere ao quão conservadora é a consciência em relação aos fatos. É evidente que, entre as grandes massas, a ação precede a consciência, que nada mais é do que uma apreciação materialista dos acontecimentos em relação a elas. Outra coisa é como se realizam estes termos entre os revolucionários, quer dizer, na vanguarda, onde o pensamento muitas vezes precede a ação. Ação, experiência e consciência têm vínculos dialéticos que devem ser avaliados de forma materialista, ou seja, concreta, e em cada caso histórico particular (Mandel e Moreno desenvolveram nos anos 70 um debate sobre este assunto, em ambos os casos unilateral, embora não possamos aqui nos dedicar a ele).

[22] Durante o terceiro período o estalinismo levou, sem luta, à traição frente ao nazismo, sem mais nem menos, rejeitando, como um de seus principais argumentos, qualquer frente única com as organizações socialdemocratas, considerando-as como “social-fascistas”, ou seja, pior ainda que os nazistas….

[23] Lenin forjou as armas de sua avaliação materialista dialética concreta, de seu realismo político, não só, evidentemente, na experiência prática militante (que ensina sobre as artes da dialética na ação), mas também, aplicando-se duramente ao estudo de Marx e Hegel, nas brilhantes Notas Filosóficas sobre este último, ou seja, seu estudo consciencioso da Ciência da Lógica (Raya Dunevskaya, Kevin Anderson).

[24] Trotsky insiste nesta delimitação entre conteúdo e forma dos organismos de luta e poder e adverte contra qualquer fetichismo democrático em Lições de outubro de 1924, um texto de enorme riqueza e complexidade como temos apontado em outras ocasiões.

[25] A forma finalmente encontrada da ditadura do proletariado, a organização do proletariado no poder, é a definição de Marx da ditadura do proletariado, após a experiência da Comuna de Paris. Trataremos deste assunto em extenso em nosso trabalho Dialéctica de la transición, em preparação.

[26] Esta discussão é complexa e tem que ser vista nas circunstâncias históricas concretas. Devemos ter claro que as “frentes antifascistas” das quais hoje podemos falar pedagogicamente diante do surgimento da extrema direita, são frentes ou comitês independentes, de classe, inclusive com organizações reformistas; não um tapa sexo da frente popular – isto é, de uma frente política de conciliação de classe – como utilizava o estalinismo na segunda metade dos anos 30.

[27] Na experiência do velho MAS, foram cometidos erros de ambos os lados: sectários ao virar as costas a uma mobilização em massa do sindicato dos professores; oportunistas ao não quebrar a frente única com a burocracia telefônica no tempo em que esta última se lançou abertamente para trair a luta (“Apuntes sobre marxismo, Estado y bonapartismo“, izquierda web).

[28] Cobrir os reformistas pela esquerda é um típico erro oportunista na aplicação do mesmo. Se você quer “garantias” ou algo assim diante da complexidade da política revolucionária, é melhor se dedicar a outras tarefas.

[29] Valerio Arcary, no Brasil, é um exemplo disso. Durante dois anos ele fez um debate confuso apenas para finalmente juntar-se a uma frente de conciliação de classe com Lula e Alckmin.

[30] Este tipo de covardia sectária e oportunista é o que a FITU expressou ao se recusar a tomar as ruas contra o ataque fascista contra Cristina Kirchner na Argentina, apenas para acabar indo chorar ao Congresso Nacional no dia seguinte… e inventar desculpas implausíveis nos dias seguintes.

[31] As fontes bibliográficas serão completadas na segunda parte deste artigo, pois estou escrevendo de São Paulo sem toda a documentação em minhas mãos.

 

Traduzido por José Roberto Silva a partir do original em https://izquierdaweb.com/cuestiones-del-frente-unico-primera-parte/