Apesar da maquinaria de extrema direita e da política de conciliação do lulismo, a classe trabalhadora e seus setores mais explorados e oprimidos impuseram uma derrota eleitoral histórica ao neofascismo no Brasil.

ANTONIO SOLER

Tivemos as eleições mais importantes, mais polarizadas e com o resultado mais apertado desde o processo de redemocratização do país. Além do acirramento, estas eleições também foram marcadas pela votação recorde do primeiro colocado, Luiz Inácio Lula da Silva, que obteve mais de 60 milhões de votos – essa foi a maior quantidade de votos desde a eleição de 1989, quando Lula enfrentou e perdeu para Fernando Collor de Melo. 

Lula venceu o segundo turno por 50,90% (60.345.999) contra Jair Bolsonaro, que obteve 49,10% (58.206.354) dos votos válidos, uma diferença de apenas 1,80% (2.139.945). As abstenções chegaram a 20,58% (32,2 milhões), um registro também significativo, pois foi a menor desde a eleição de 2006 e também foi a primeira vez que a abstenção no segundo turno é menor do que a do primeiro. O resultado que mais se aproximou desse quadro eleitoral geral foi o da eleição de 2014 entre Dilma Rousseff, que obteve 51,64% (54,4 milhões) dos votos válidos, e Aécio Neves, 48,36% (51 milhões) – uma diferença de 3,4 milhões de votos. 

Em relação às regiões do país, Lula venceu apenas no Nordeste com 69,34% dos votos, já Bolsonaro obteve 61,84% dos votos válidos na região Sul. A região Norte foi a mais disputada, com Bolsonaro vencendo com 51,03%. A divisão regional do país fica evidente quando vemos que Lula ganhou em todos os estados do Nordeste, no Amazonas, no Pará e no Tocantins, estados do Norte, e no Sudeste, apenas em Minas Gerais. Já, Bolsonaro venceu em toda a região Sul, e na maioria dos estados da região Sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, e na maioria dos estados do Norte. No âmbito municipal, Lula se sobrepôs em 3.125 cidades, em sua maioria no Nordeste, e Bolsonaro em 2.445, sendo a maioria no Centro-Oeste; nas capitais, Lula venceu em 11 e Bolsonaro em 16. 

Apesar desta ter sido a disputa eleitoral mais acirrada desde a redemocratização, o resultado deste 30 de outubro foi uma vitória político-eleitoral inconteste das massas trabalhadoras e oprimidas contra o neofascimo, ou seja, uma vitória que ocorreu apesar da política da frente ampla. Em que pese a natureza burguesa, liberal-social, da frente Lula-Alckmin, para eleger Lula, a classe trabalhadora e os oprimidos tiveram que enfrentar espontaneamente – sem quartel – a máquina pública federal, dos estados e municípios e do patronato das empresas privadas, todas elas alinhadas com a extrema-direita bolsonarista. 

Bolsonaro se utilizou, como ninguém, da máquina pública e da coação de amplos setores da classe dominante para impor um segundo mandato. Do ponto de vista institucional, foram mais de R$26 bilhões utilizados na chamada PEC Kamikaze. Esse projeto rompeu com a regra de que não se pode criar projetos em anos eleitorais, que ampliou o Auxílio Brasil de R$400 para R$600, criou a Bolsa Caminhoneiro de R$1000 e o Vale-táxi no mesmo valor. Além disso, após sucessivas trocas da presidência da Petrobras, finalmente o governo conseguiu, pela redução do recolhimento do ICMS de 25% para 18%, segurar o preço dos combustíveis com fins eleitorais.   

Em relação às ações não-institucionais para ganhar as eleições, tivemos muitas ações desde o começo da campanha, mas a que mais marcou foi o assédio eleitoral histórico do empresariado sobre os trabalhadores para votar em Bolsonaro (foram mais de 2.360 casos notificados de assédio cometidos por empresas e gestores públicos segundo o Ministério Público do Trabalho).

Como se não bastasse, após ter fracassada totalmente a tese de fraude nas urnas eletrônicas e de desmoralização do ministério da defesa, ninguém poderia dizer com precisão por onde Bolsonaro iria tentar influenciar no resultado do segundo turno, por uma ação direta de intimidação dos eleitores mais pobres, cercando os colégios eleitorais, como ele mesmo havia anunciado, ou por algum outro meio.

Eis que o plano posto em prática foram as operações ilegais da PRF que mesmo sob expressa decisão contrária à determinação do TSE, realizou 619 abordagens a ônibus de passageiros durante todo do dia 30, 108% a mais do que no primeiro turno, em clara e aberta tentativa de impedir que os contingentes da população de menor renda – majoritariamente eleitores de Lula – não chegassem às urnas.

Mesmo assim, Bolsonaro sai derrotado das urnas graças ao voto da população do nordeste, dos trabalhadores de baixa renda, das mulheres e dos negros, que pela experiência de classe – mesmo contra tudo e contra todos – em uma politização eleitoral forjada na mais absoluta desproporção frente à máquina estatal em três âmbitos, à classe dominante, aos pastores neopentecostais e à política de conciliação da candidatura de Lula, impôs histórico freio à extrema direita no país. Sobre esse último aspecto voltaremos no final desta nota.

Em próximas notas vamos trazer a votação de Lula nas macrorregiões e cidades com maior densidade de trabalhadores, mas pesquisas prévias às eleições já indicavam uma composição de classe que dava a Lula os votos da ampla maioria da classe trabalhadora, particularmente a de menor renda, periférica, negra e feminina. Além da grande vantagem que pôde ser aferida nas urnas, segundo pesquisa do IPEC no dia 29/10, um dia antes das eleições, entre os que ganham até 1 salário-mínimo Lula chegava a 62% de intenções de voto e Bolsonaro a 30%, por exemplo, o mesmo fenômeno se via entre os de menor escolaridade (58% a 35%) e entre os negros (54% a 36%). 

Esse não é qualquer fenômeno político, pois indica um processo de politização de amplos setores de massas feito a partir da experiência existencial com o governo Bolsonaro. Ou seja, os dados indicam uma politização das massas mais exploradas e oprimidas que se fez nas condições mais difíceis, sem o apoio do comando da campanha de Lula ou de um processo de mobilização que permitisse uma totalização da consciência popular – ocorreu de forma espontânea.

É preciso armar a classe com outra estratégia para esmagar definitivamente o neofascismo

Tendo em vista o caráter neofascista de Bolsonaro e de parcela importante de sua base social, que visa o fechamento do regime, a sua derrota eleitoral coloca um cenário, evidentemente, muito mais favorável para a luta e organização dos trabalhadores. Porém, como sempre insistimos em nossas notas, o resultado eleitoral não pode por si só mudar a correlação de forças mais geral entre as classes e as instituições do Estado burguês. O que se faz como hipótese para explicar o porquê, após as eleições, estávamos enfrentando essa movimentação neofascista, mesmo que minoritária, para desconhecer o resultado das eleições.

Primeiro partimos do fato de que não temos considerado em nossas análises desde antes das eleições que tenhamos correlação de forças para um golpe de estado no sentido clássico. O imperialismo, a maior parte da classe dominante, as instituições, o alto comando das forças armadas e a maioria da população não querem um golpe de estado, o que significaria hoje desconhecer o resultado das eleições. 

Bolsonaro e o seu “Capitólio” saem fragorosamente derrotados, mas isso não significa que Bolsonaro que obteve 49,10% dos votos, a maior bancada na Câmara dos Deputados e no Senado, não possa impor uma forte oposição de extrema direita ao próximo governo.

Esse inédito fenômeno pós-eleitoral de questionamento dos resultados eleitorais – em que pese o seu isolamento social e político e que Bolsonaro foi obrigado a recuar para que o país não fosse a um processo de radicalização sem controle – só pode ser explicado por uma mudança ainda incompleta da correlação de forças geral entre as classes. Isso é fruto, em grande medida, da política de conciliação imposta pelo lulismo às massas que vem desde a sua fundação no final dos anos 1970. Essa corrente política sempre se pautou em não armar politicamente a classe trabalhadora para o choque, sempre procurou uma saída exclusivamente institucional (por cima), sem a participação ativa de nossa classe. 

De uma forma geral, essa importante vitória eleitoral poderia ter sido ainda mais categórica e com potencial de mudança completa da correlação de forças se tivesse sido combinada com uma mobilização desde a base. No entanto, além do bloco burguês reacionário que se formou em torno de Bolsonaro, a política de conciliação de classes do PT e cia foi um fator importante para que não pudéssemos enfrentar a eleição com um movimento mais ativo da classe trabalhadora e dos oprimidos.    

Essa conciliação de classes liberal-social não se traduziu apenas na constituição de uma frente eleitoral com vários setores da burguesia, mas é parte da estratégia do lulismo como movimento político histórico. Poderíamos dar mil exemplos, mas fiquemos nos mais recentes. Quando as torcidas organizadas enfrentaram em 2020 os atos neofascistas para fechar o Congresso e o Supremo ou em 2021 quando as mobilizações pelo fora Bolsonaro poderiam ter ganhado status de massas, esses processos foram inibidos pela política de Lula e da sua burocracia. 

No processo eleitoral, a chapa Lula-Alckmin apresentou uma campanha totalmente nos moldes da conciliação de classes, desde a composição com representantes orgânicos do capital financeiro, até o programa, passando certamente pelas táticas de campanha. Ao gosto de uma frente com a burguesia, a campanha de Lula foi marcada por uma disputa eleitoral em que o programa passou longe de atender as necessidades mais sentidas da classe e, muito menos, de colocar a auto-organização no centro do processo. 

No geral, a campanha Lula-Alckmin foi uma campanha passadista (voltado para os hipotéticos louros do passado), negando as demandas populares (o caso mais emblemático foi o tema do aborto), para responder aos preconceitos do fundamentalismo religioso (Lula jurando de pé junto que acredita em Deus e que não vai fechar igrejas) e de uma mobilização estritamente por cima (atos e caminhadas eleitorais com a estética política de micaretas). 

O ponto alto da campanha se deveu mais aos erros de Bolsonaro do que a estratégia de Lula, exemplo evidente disso foi o deslize que deu o ministério da economia com Paulo Guedes que deixou vazar um estudo sobre a supressão do reajuste do salário-mínimo de acordo com a inflação, o que a campanha de Lula aproveitou parcialmente, conseguindo se conectar com as massas e conter o avanço de Bolsonaro. 

A classe operária no Brasil está fora de forma, mas sabe lutar. É preciso construir uma frente de esquerda socialista para dar conta dos desafios históricos que se colocam

Fazemos telegraficamente esse breve panorama da história recente para afirmar que as manifestações de teor golpista do bolsonarismo que estão ocorrendo hoje só são possíveis porque as eleições não mudaram por completo a correlação de forças. Mas agora há muito melhores condições de esmagar o bolsonarismo nas ruas, através da luta direta, o que evidentemente não faz parte da estratégia lulista, que mais uma vez demonstra que não pode armar a classe para vitórias decisivas. 

Diante dos bloqueios das rodovias, assistimos a estratégias totalmente opostas. De um lado, mais uma vez, operários, populares e torcidas organizadas espontaneamente enfrentaram a situação como deve ser, ou seja, a caminho dos jogos – moradores de São Mateus (ES), operários da BrasFelsm, a Gaviões da Fiel, a Mancha Verde, a Galoucura (Atlético-MG) e várias outras torcidas – enfrentam o golpismo neofascista colocando para correr a covarde movimentação nas estradas sem a menor dificuldade. 

Enquanto isso, ontem (2), um dia depois de reconhecer a derrota nas urnas e oficializar o ministro da Casa Civil para coordenar a transição do lado do governo, Bolsonaro, divulgou um vídeo pedindo que apoiadores recuem dos bloqueios. “Quero fazer um apelo. Desobstrua as rodovias. Isso aí não faz parte, no meu entender, dessas manifestações legítimas. Não vamos perder essa nossa legitimidade”, que “o fechamento de rodovias pelo Brasil prejudica o direito de ir e vir das pessoas, está lá na nossa Constituição. E nós sempre estivemos dentro dessas quatro linhas. Eu tenho que respeitar o direito de outras pessoas que estão se movimentando, além de prejudicar a nossa economia” e que “prejuízo todo mundo está tendo. O apelo que eu faço a você: desobstrua as rodovias. Proteste de outra forma, em outros locais, que isso é muito bem-vindo, faz parte da nossa democracia”. Ou seja, Bolsonaro pede recuo nos bloqueios das rodovias – obviamente porque sabe que está isolado, não têm correlação de forças para manter essa ação e que tem que recuar para manter o seu capital político – mas diz serem legítimos, democráticos e bem-vindos atos em 24 Estados da federação que pedem intervenção militar (golpe de Estado) contra o resultado das eleições, ou seja, contra a soberania popular.

Diante do recuo de Bolsonaro – do contrário, manter o golpismo poderia levá-lo a uma situação de não retorno de grave explosão social – para tentar hegemonizar a oposição de direita e voltar a carga em 2026, do outro lado temos Lula, PT, PSOL, PCdoB, CUT, UNE na mais absoluta passividade. Essa burocracia traidora confia, como sempre, que as instituições do Estado Burguês resolvam tudo por cima: política essa que permitiu o crescimento extrema direita e o fenômeno do bolsonarismo. Lula (em férias) nomeia Alckmin para coordenar o governo de transição ao governo de conciliação de classes e mudanças no orçamento de 2023, em troca de reforma administrativa (ajuste que pode afetar camadas importantes do funcionalismo público) para atender às propostas de campanha de Lula sem mexer um milímetro com os interesses da classe dominante. 

Agora cabe à esquerda socialista, que pelo mais puro sectarismo da maior parte das organizações não soube criar uma frente de esquerda para atuar nessa que foi a eleição mais importante desde a redemocratização, organizar-se com o objetivo de construir uma frente política que seja capaz de, em unidade de ação com as torcidas organizadas e exigindo a ação das direções do movimento de massas, garantir até o final soberania popular. Por outro, precisamos começar já a responder a qualquer medida de transição ao próximo governo que atinja os interesses da classe trabalhadora, como a reforma administrativa que Lula e sua equipe de transição já estão acenando que irão fazer em troca de mais verbas para o Auxílio Brasil. 

A tremenda e histórica vitória popular contra o bolsonarismo não pode se confundir com apoio político ao próximo governo burguês de conciliação de classes e, muito menos desmobilização. Com a falência política do PSOL, que muito provavelmente irá compor o governo de frente ampla, dando mais um passo significativo na traição ao seu projeto original, está sob a responsabilidade política da esquerda socialista, que não se vendeu e soube manter-se no campo da independência de classes, articular a reorganização da esquerda e construir uma oposição concreta à altura do próximo período.