ARTIGO APRESENTADO EM INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS
“Para vender o mito de que se está construindo um mundo melhor graças à tecnologia, é preciso esconder as sombras sinistras de uma produção baseada na exploração selvagem de milhares de trabalhadores. A classe média dos países ricos deve se refletir no espelho do custo humano e ecológico que nossa existência digital precisa materializar”, escreve Agustín Moreno, ativista pelos direitos sociais e democráticos, ao comentar o livro La máquina es tu amo y señor, que retrata elementos cruciais da sobre–exploração trabalhista do modelo industrial chinês, em artigo publicado por Rebelión, 19-08-2019. A tradução é do Cepat.
Aqui, cravado junto à linha de montagem,
mãos à obra, quantos dias claros, quantas noites escuras, desse jeito,
adormeço de pé.
Xu Lizhi
É sabido que, em inícios dos anos 1980, aconteceu uma mudança histórica no mundo: foi a vitória neoliberal aplicada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, no Reino Unido e Estados Unidos. Mas, o que não é tão conhecido é que, em 1979, ocorreu outra mudança igual ou inclusive de maior transcendência histórica: a aposta de Deng XiaoPing, na China, pelo “socialismo de mercado” e sua adesão à Organização Mundial do Comércio.
O país mais populoso do planeta se tornou a grande fábrica do mundo. Alcançou níveis de crescimento econômico de dois dígitos de forma sustentada. Tornou-se uma grande potência industrial e econômica. Os custos sociais e ambientais estão sendo elevadíssimos.
O livro La máquina es tu amo y señor (Yang, Jenny Chan, Xu Lizhi, Li Fei e Zhang Xiaoqio. Editora: Virus, 2019), escrito por vários autores, pesquisa com entrevistas, muitas anônimas, e com trabalho de campo, as causas e consequências da sobre-exploração trabalhista deste modelo industrial descontrolado. Analisa o fenômeno dos escravos eletrônicos ou iSlaves chineses. Também inclui depoimentos como o de Tian Yu (17 anos), uma operária migrante que sobreviveu após se lançar do quarto andar da residência da fábrica, e os poemas do jovem operário Xu Lizhi, que optou pelo suicídio.
A maior empresa do setor privado chinês é a tailandesa Foxconn, cujo principal centro está em Shenzhen, que fabrica mais da metade da produção eletrônica mundial. Seus clientes são multinacionais como Apple, Microsoft, Amazon, Google, Nintendo, Nokia, etc. Tem 1,4 milhão de trabalhadores e centros como o de Longhua, com 350.000 operários, muitos deles jovens migrantes.
Trabalham 12 horas por dia e 60 por semana na cadeia [de produção] com diferentes métodos como o taylorismo clássico ou o toyotismo just-in-time, sem possibilidade de negar fazer horas extras, com procedimentos de controle para ir ao banheiro. Recebem grandes pressões para aumentar as cotas de produção e os controles de qualidade, sofrem violência verbal e reprimendas. Controlam suas posturas, como se sentam ou ficam em pé. Sofrem humilhações e castigos públicos, como permanecer em pé durante horas por um erro.
A empresa organiza toda a vida do trabalhador com o sistema de residências onde dormem, mas vivem em profunda solidão. A vida dos trabalhadores é atomizada e, como eles dizem, é muito difícil fazer alguma amizade. A prática de turnos rotativos contínuos, de dia e de noite, dificulta o descanso e fragiliza a possibilidade de estabelecer redes de apoio social entre os trabalhadores. Busca-se petrificar emocionalmente os operários. Como disse uma operária: “a fábrica é um imenso lugar cheio de estranhos”.
Tudo isto, combinado com uma filosofia empresarial que utiliza recursos retóricos (Corre para os seus sonhos mais preciosos…) com outros motes stakhanovistas (Crescimento, seu nome é sofrimento). Em resumo, é um sistema de gestão da mão de obra de corte militar: obediência absoluta, cadeia de comando, sistema hierárquico em níveis profissionais. Os encarregados perguntam aos operários: Como você está?. E estes têm que responder: “Bem, muito bem, muito, muito bem!”. Algo apavorante. Uma espécie de Tempos Modernos com brutalidade, com trabalhadores alienados e alinhados aos milhares nas cadeias [de produção] e vestidos com macacões rosas.
Diante deste brutal sistema de exploração, que converte os operários em uma extensão da máquina e em aprendizes de escravos, só cabia uma forma de resistência, com as pequenas sabotagens, o boicote, o abandono ou, inclusive, o suicídio. Em 2010, houve uma onda de suicídios por puro acúmulo de desesperança: 18 trabalhadores de 17 a 26 anos o tentaram, houve 14 mortes. A empresa nega que as causas estejam no sistema de trabalho e se justifica falando das médias nacionais, sem nenhuma compaixão, nem justiça com as vítimas. Atribuem os suicídios à “pouca capacidade de lidar com os problemas pessoais”, aos “espíritos frágeis”.
O certo é que o ocorrido não tem precedente na história industrial da China. Embora na Europa também tenha ocorrido algo parecido com a France Télécom, onde, entre 2007 e 2010, aconteceu uma onda de suicídios (19 mortes e 12 tentativas) provocada pelos métodos de gestão de pessoal, que buscavam eliminar 22.000 empregos de um quadro de 120.000 trabalhadores. Atualmente, a acusação de assédio moral contra sete ex-diretores da companhia está pendente de sentença nos tribunais. Os dois casos têm em comum o mesmo sistema: um capitalismo depredador.
Na China, o sistema não mudou nada, apesar das denúncias pelos suicídios. Nem o regime fabril, nem as estruturas de gestão das relações trabalhistas, nem as pressões para aumentar a produtividade ou as humilhações nas fábricas. Inclusive, tentaram fazer com que os operários assinassem um termo “antisuicídio”, para exonerar a empresa de qualquer responsabilidade, mas foram obrigados a retirá-lo em razão das críticas sociais e trabalhistas. Diante de uma nova onda de suicídios, também em 2010 (6 mortos), a empresa optou em colocar redes de segurança e cercas nas janelas para que os operários não se jogassem, tornando as residências uma espécie de jaula com cercas de arame. Tudo menos atuar sobre as causas.
E os sindicatos? A Federação de Sindicatos da China (ACFTU), promovida pelo Governo chinês, tem 258 milhões de filiados, mas é dependente operacional e financeiramente da administração, o que mina sua capacidade de representação dos trabalhadores. O sindicato na Foxcom tem 90% de filiados, mas fracassou em proteger a saúde e a dignidade dos trabalhadores. Isso não evita que os protestos e greves espontâneos sejam numerosos e nem sempre são reprimidos pelas autoridades, a não ser que se convertam em um movimento político.
Diante desta realidade está o Vale do Silício. Lá, os trabalhadores das grandes companhias podem chegar a receber 100.000 dólares por ano, gozam de todo tipo de serviços como piscinas de bolinhas para relaxar e fazer “brainstormings”, ginásios, restaurantes gratuitos, bicicletas comunitárias, atividades filantrópicas remuneradas… Inferno e paraíso são duas caras da mesma moeda, como resultado da divisão mundial do trabalho.
O estudo é muito interessante pela arrepiante análise da exploração dos trabalhadores chineses. Também se percebe o negativo impacto ambiental. Estamos frente a uma economia e um modelo industrial insustentável. Não há planeta que resista este ritmo de exploração dos recursos naturais. Uma sociedade que se pretenda minimamente coesa e que defenda os direitos humanos, não pode permitir que as pessoas se suicidem por causa de seu trabalho.
Para vender o mito de que se está construindo um mundo melhor graças à tecnologia, é preciso esconder as sombras sinistras de uma produção baseada na exploração selvagem de milhares de trabalhadores. A classe média dos países ricos deve se refletir no espelho do custo humano e ecológico que nossa existência digital precisa materializar. Não se pode olhar para outro lado. É preciso questionar o consumismo introduzido pelas altas tecnologias e saber que a fábrica que produz com o trabalho mais alienante não foi superada, mas, ao contrário, no máximo, deslocada de lugar.