Com mais de 40% dos votos apurados, os dois candidatos tidos como “extremos” chegam com grande diferença no segundo turno no Chile. É a primeira vez desde a queda de Pinochet que os partidos tradicionais ficam de fora.

Redação IzquierdaWeb

A rebelião de outubro de 2019 foi um terremoto que moveu todas as prateleiras e nada foi colocado de volta no lugar. Cada um dos políticos clássicos foi destituído da corrida presidencial. Mas nem sequer isso, que deveria ser suficiente para colocar todo um sistema político em crise, é o mais importante. O mais significativo é que as forças políticas clássicas dos proprietários capitalistas do país foram claramente derrotadas. 

Liderando as contagens estão o pinochetista Kast, de direita, com cerca de 28% dos votos expressos, e o reformista “esquerdista” Boric, com 24%. A coalizão do atual presidente Piñera, com seu candidato Sichel, ficou em um constrangedor quinto lugar, com 11%. Os outros são Parisi, com 13%, e Provoste, com 12%. Os olhares já estão definidos para o segundo turno: Sichel chamará voto em Kast e o antigo PS chama voto à Boric.  

Kast: o Pinochet de extrema direita (28%)

Quem lidera a eleição com 28% é José Antonio Kast, advogado católico ultraconservador filho de um hierarca nazista, ferrenho opositor da convenção constituinte, xenófobo e abertamente pinochetista. Seus alinhamentos internacionais, sem surpresa, são encontrados em Jair Bolsonaro (com quem ele já teve reuniões) e no ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Kast é filho de Michael Kast, um oficial do exército nazista que chegou ao Chile no final da Segunda Guerra Mundial. Claro, nem crimes nem afinidades políticas são herdados, o que torna ainda pior que Kast voluntária e conscientemente abrace a maior parte das ideias de seu pai. Desde a juventude iniciou sua militância política pela direita junto com Jaime Guzmán, o “intelectual” oficial da ditadura de Pinochet e um dos autores da Constituição que o povo chileno agora começa a questionar.

Embora inicialmente seu ativismo político tenha começado na União Democrática Independente, de estilo pós-pinochetista e que atualmente apoia o governo de Sebastián Piñera, a partir de 2016 Kast fundou seu próprio partido independente, o Partido Republicano. A partir daí, como um outsider, ele foi capaz de desenvolver mais abertamente seu discurso de extrema direita.

Assim como Trump ganhou as eleições ao propor a construção de um muro na fronteira com o México, Kast afirma que quer cavar uma trincheira na fronteira norte com a Bolívia para impedir a chegada de imigrantes ao país.

A inspiração no ex-presidente dos Estados Unidos não para por aí: Kast também nega a importância das mudanças climáticas e propõe reduzir os impostos sobre os ricos. Além de propor uma política de “mão forte” contra as populações Mapuche do sul do país. Kast critica Piñera pela direita em todos esses aspectos.

A rebelião popular de 2019 foi um terremoto político para o país transandino. Daquele momento até hoje, os partidos tradicionais da democracia pós-Pinochet ruíram, tanto os de centro-direita quanto os de centro-esquerda. A ascensão da figura de Kast representa a reação hostil ao imenso movimento progressivo da rebelião.

A tradicional direita hoje encabeçada por Piñera não sofreu apenas o golpe mortal da mobilização. Além disso, os escandalos de corrupção estavam corroendo sua legitimidade em sua própria base social de direita. O escândalo da aparição de Sebastián Piñera nos Pandora Papers levou ao início de um processo de impeachment que poderia levar à destituição do atual presidente, foi aprovado pelos deputados, mas rejeitado pelos senadores.

Com Piñera atingido pela rebelião e pela corrupção, e como uma reação hostil à Convenção Constituinte e aos debates que se abriram, uma parte importante do eleitorado que sempre votou nos partidos tradicionais de direita se voltaram para a extrema direita na figura de Kast. Na verdade, o percentual de votos coincide quase exatamente com o percentual de rejeição no referendo para modificar a constituição.

Kast é o candidato das classes médias que querem ver esmagada a rebelião de 2019, a do pinochetismo sem máscaras, a do capitalismo selvagem e repressor.

Boric: a reformista “esquerda” … e capituladora (24%)

Longe da campanha de histeria anticomunista contra os Boric e a aliança “Apruebo Dignidad”, eles começaram a capitular muito antes de terem sua influência atual, continuaram a fazê-lo sempre que puderam, o fazem por causa do comércio e da convicção.

A trajetória política de Boric é bastante parecida com a do agora aposentado Pablo Iglesias na Espanha, já que sua FA é como o PODEMOS. Surgiram como uma crítica mais “radicalizada” da “esquerda” clássica, enquanto davam sermões sobre “realismo” político para a esquerda marxista. O “realismo” de um e de outro prevaleceu sobre sua “radicalidade” repetidas vezes, até que se tornassem piores do que o próprio velho stalinismo.

Boric emergiu como uma referência nas lutas estudantis de 2011, quando milhares foram às ruas contra a privatização do sistema universitário. Por se apresentar ao longo daquele ano como mais “combativo” que a direção da FECH (o PC e a internacionalmente conhecida Camila Vallejos), ele os destituiu no ano seguinte, colocando-se à frente da principal organização estudantil da Universidade de Santiago de Santiago de Chile.

Já na direção da FECH, começou a carreira e o cargo de capitulação. O governo Piñera da época queria desmobilizar sem entregar a demanda das mobilizações nacionais: as universidades públicas. Em vez de fazer uma mínima transformação no sistema educacional mercantilizado, o governo apresentou a chamada “bolsa universitária gratuita” como solução. Boric à frente da FECH assinou a “concessão” e entregou a luta ao governo e ao regime dos 30 anos. 

Mas o seu papel mais desastroso foi o que desempenhou na rebelião de 2019. À frente de um “partido” sem militância nem papel relevante nas mobilizações, votou como deputado a favor da “Lei Anti-Barricada” apresentada pelo governo Piñera. É isso mesmo, o candidato da “esquerda”, enquanto dezenas de milhares e milhões de jovens enfrentavam a brutal repressão dos pacos, escolheu a barricada dos fardados de verde votando por uma lei claramente repressiva.

Foi também signatário do chamado “Acordo de Paz”: sentou-se com o pior do regime dos 30 anos, com todos os partidos filhos do pinochetismo, para lhe dar uma saída institucional, um desvio, da crise nas ruas. A “paz” tinha que ser garantida pela rua, enquanto os pacos no dia seguinte implementavam a política pacífica do estado, matando um estudante na Plaza Dignidad. Assim foi a quinta roda do carro de Piñera, um papel tão lamentável que nem mesmo o velho e desacreditado PC queria cumprir. Que sua lista seja chamada de “Aprovar Dignidade” para roubar as bandeiras da rebelião de outubro é tão consistente como se Bolsonaro se apresentasse com listas com slogans de tolerância e Macri com o “partido operário”.

Sua trajetória política é consistente em um único ponto: o de sempre fazer o contrário do que se diz para ganhar influência. Quanto aos presos políticos da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (guerrilha que enfrentou o pinochetismo nos últimos anos), passaram de reivindicar publicamente sua liberdade para argumentar que, caso vencessem, não teriam nenhum tipo de perdão.

Como resultado da inconsistência, ele agora usa o capital político obtido criticando a política de alianças do PC tentando estender “Eu Aprovo a Dignidade” a membros e partidos da antiga Concertação de Bachelet. Boric experimenta a faixa presidencial com antecedência e se olha no espelho, imaginando-se rodeado por funcionários “sérios”: ele quer que seus ministros e secretários sejam os simpatizantes daqueles que dirigiram a ala “esquerda” do regime dos 30 anos .

Os capitalistas o veem com simpatia como o candidato para a superação da rebelião, a tentativa de desviar a mobilização das ruas para as urnas e a desmoralização das massas. Eles querem que milhões olhem com expectativas, fiquem decepcionados e voltem para casa achando que nada pode mudar. Boric é a política do Gatopardo: “Tudo deve mudar para que tudo continue como está.”

Sichel: ala direita de Piñera com uma nova cara (11%)

O candidato de direita mais tradicional foi Sebastián Sichel, que se apresentou como “independente”, palavra muito defasada para ocultar a própria identidade política e evitar qualquer identificação com as forças políticas da qual faz parte. Não, Sichel não é um “independente”.

Parece que, enquanto os outsiders à política vencem formalmente, nessas eleições todos os prêmios foram levados pelo camaleonismo político. Sichel começou sua carreira como funcionário de Bachelet, sob cujo governo ele ascendeu às principais ligas da administração estatal. Em 2008, ele alcançou o cargo de conselheiro-chefe do Ministério da Economia. Até então apresentava-se como membro da centro-esquerda “Democracia Cristã”, o grande aliado do PS nos seus sucessivos governos.

No entanto, em 2010, no governo Piñera, já havia gostado da poltrona de funcionário público e foi nomeado vice-presidente da Empresa de Fomento à Produção, órgão do governo vinculado ao Ministério da Economia. Ele rapidamente ascendeu ao cargo de Ministro do Desenvolvimento Social. Ele acedeu a ambas as posições por recomendação de ninguém menos que Andrés Chadwick, um oficial de Piñera que também era um oficial de Pinochet.

Com a convicção do convertido (e do arrivista), sua campanha foi de confronto direto com todas as aspirações massivas expressas na rebelião.

Tradução: Renato Assad