Balanço e perspectivas de uma greve histórica que traz ensinamentos para todo o conjunto da classe trabalhadora, pois resgata ferramentas e métodos clássicos de luta dos explorados e oprimidos.
Renato Assad
Com todas as dificuldades de mobilizar a categoria dos entregadores de aplicativos – sindicato tomado pela burocracia pelega e traidora, grande rotatividade no corpo dos entregadores, precarização extrema (um dia sem trabalhar pode significar uma conta sem ser paga), a maior parte do tempo em deslocamento na moto ou em bicicleta (o que dificulta a discussão e organização da categoria) assim como as jornadas de até 13 horas diárias -, o último dia 11 foi um importante dia de paralisação nacional. Mas, em uma determinada cidade a greve continuou por mais 6 dias: em São José dos Campos aconteceu algo inédito até então para a categoria que pode marcar um novo período na luta dos entregadores.
Na semana passada, por mais que a grande mídia e os seus veículos tentassem esconder e com pouca adesão de setores da esquerda, movimentos sociais, figuras públicas e etc, houve, uma importante repercussão da histórica mobilização dos entregadores de aplicativos na cidade do Vale do Paraíba, município palco também de históricas greves dos trabalhadores e trabalhadoras como a greve dos 1300 metalúrgicos da Bundy em 1989 e a emblemática greve dos trabalhadores da GM que ocuparam a fábrica por 27 dias onde enfrentaram heroicamente a repressão policial.
É então sobre este processo que tentaremos aqui, de maneira mais concreta possível, fazer uma balanço sobre a greve e organização dos entregadores de SJC e quais as perspectivas para o próximo período.
O breque dos apps – nome dado ao movimento e paralisações dos entregadores que já completa mais de um ano de uma marcante mobilização deste novo setor do proletariado da área de serviços nos grandes e médios centros urbanos – foi convocado para o último dia 11 de setembro com caráter nacional onde várias capitais e cidades do país presenciaram uma mobilização e paralisação de pontos importantes de distribuição de entregas (na sua maioria restaurantes) com piquetes realizados pelos entregadores, o famoso breque.
Com maior ou menor adesão, a depender das cidades, o último sábado (11) foi palco de mais uma movimentação importante por parte dos entregadores contra a intensa precarização e exploração do trabalho de entregas, a escravização moderna em pele de autonomização, os bloqueios indevidos nas plataformas e as baixíssimas taxas pagas pelas empresas que se aproveitam da grande massa de desempregados para explorar cada vez mais esta categoria, transferindo parte significativa dos dos custos de operação direta para esses trabalhadores.
Já no domingo, as cidades que presenciaram a mobilização do breque no dia anterior amanheceram com o sistema de entregas funcionando normalmente, menos São José dos Campos. Por que? A resposta à pergunta se dá por uma combinação de fatores que foram decisivos para a mobilização de seis dias. Primeiro é preciso constatar que existe uma indignação e revolta coletiva dos trabalhadores de aplicativo, uma volatilidade permanente sobre a categoria, não só no Brasil, mas em várias cidades do mundo por conta das condições desumanas de trabalho e exploração capitalista somadas às pioras significativas das condições de vida dos trabalhadores a nível internacional, intensificada no período de pandemia. Ou seja, é uma categoria que nasce a partir das contradições do modelo de acumulação capitalista deste século e da intensificação das relações de exploração através de novos mecanismos que configuram um proletariado do setor de serviços – um capitalismo extremamente agressivo e sufocante por conta de uma crise estrutural crônica.
Ora, até aí poderia-se então dizer que estas condições se aplicam a nível internacional. Justamente, mas é sobre estes pilares de exploração que os entregadores de São José dos Campos se insurgem e colocam sobre a mesa métodos e ferramentas apropriadas e renovadas da luta dos trabalhadores, o que foi decisivo para sustentar os 6 dias de greve na cidade. Quais seriam estas ferramentas e métodos?
Quando falamos em greve, estamos acostumados, por conta do peso que exercem as direções burocratizadas dos sindicatos, a presenciar paralisações sem piquetes, sem solidariedade de classe e campanhas de arrecadação, sem discussão pelas bases, a falta espaços auto-organizados para deliberações, ou seja, movimentações que nascem muitas vezes com um caráter protocolar e que não carregam como horizonte métodos de ocupação por exemplo, e tampouco apostam efetivamente na ofensiva dos trabalhadores para as reivindicações – no protagonismo da própria classe organizada como pilar central das reivindicações. A burocracia costuma resolver tudo de portas fechadas e não hesita um milímetro sequer em entregar a mobilização se lhe for oferecido algo tentador.
A greve
Os entregadores de SJC colocaram em prática uma movimentação semelhante às lutas clássicas do proletariado do final do século XIX e do século XX, em que a luta pela redução da jornada de trabalho, por melhores condições e salários, contra demissões em massa, e etc, apresentava ao mundo uma classe trabalhadora organizada, autodeterminada e que ao se assentar como classe histórica colocava ao horizonte da história ferramentas e métodos que levariam a vitórias marcantes. Como não recordar que a Revolução de 1905 na Rússia czarista foi palco do surgimento dos Sovietes (Conselhos Operários), a partir de uma reivindicação inicial dos tipógrafos, em outubro, de São Petersburgo por melhores condições de trabalho que culminou em uma emblemática e histórica greve geral dos operários russos que seria o primeiro passo para a Revolução de Outubro em 1917, doze anos depois.
Antes do dia 11, alguns entregadores da cidade do vale começaram a estudar como se brecava (fazer piquete) restaurantes e shoppings para impedir a retirada de todo e qualquer pedido, atualizando a velha e poderosa tática para os novos tempos. A partir daí, estes ensinamentos gravados em vídeo pela página do Treta no Trampo, os entregadores começaram a panfletagem e o boca a boca com a categoria para preparem o dia 11. Este estudo coletivo, apropriando-se dos velhos métodos e inventando novas formas, e a circulação didática sobre as ferramentas que seriam utilizadas para o primeiro dia de paralisação foram um ponto de partida que mudaria em poucos dias a capacidade de organização e adesão à greve; isto é, sem estas ferramentas tradicionais da classe operária não seria possível presenciar o que aconteceu por lá. No entanto, não se trata apenas da repetição de velhos métodos, mas de uma apropriação coletiva e criativa que conta em sua organização com a dinâmica e flexibilidade que permitem a utilização de aplicativos de mensagens e o deslocamento rápido no terreno permitido pelas motocicletas.
Reivindicando uma taxa mínima de R$ 7 de entrega e que seja acrescido R $2 a cada km rodado, os entregadores entraram em greve no dia 11. Divididos em grupos locais foram brecando (formando piquetes) todos os estabelecimentos vinculados às plataformas de aplicativo, fazendo com que nenhum pedido fosse retirado. A partir daí, entregadores que chegavam para retirar, desavisados ou contrários à mobilização (uma minoria), eram convencidos e impedidos de passarem pelos piquetes, tarefa que precede de uma intensa e organizada disciplina para fiscalização de todas as entradas e saídas de estabelecimentos. Com isso o movimento ia ganhando adesão e força, uma vez que este método de organização e piquetes nas portas dos shoppings que concentram lojas de fast food se mostrava extremamente eficiente para a greve – consequentemente as condições subjetivas sofriam mudanças qualitativas importantes e a categoria dava-se conta da sua própria capacidade de mobilização e luta.
Além disso, os entregadores começaram a construir um apoio de setores da população em geral e as primeiras notícias da manutenção do estado de greve iam circulando por outras partes do país, elemento importante para toda e qualquer luta, um processo subjetivo capaz de alimentar e inflamar a base do movimento que está em luta em outras regiões mas que todavia não reúne condições para uma ofensiva.
Ainda no primeiro dia de greve, ao final da da primeira jornada os entregadores colocaram em prática uma central ferramenta que se tornou permanente durante este processo, determinante para manter o movimento organizado pela base e os piquetes em pé todos os dias: assembleias democráticas e diárias de balanço de greve com votação sobre os próximos passos.
Ou seja, toda e qualquer decisão do movimento, qualquer passo ou tática que fossem tomar, passava necessariamente pela discussão coletiva e sua deliberação também coletiva, uma ferramenta inegociável da classe trabalhadora e vital para a autodeterminação da mesma. A partir daí, a greve ganha uma figura importantíssima, uma liderança orgânica escolhida e colocada à prova pela própria base que ganhou a confiança não só dos entregadores mas de parte dos trabalhadores dos restaurantes também. Uma liderança que tinha experiência na luta de classes, havia sido metalúrgico e participado em algumas greves, demonstrando imensa sensibilidade e capacidade de mobilização – por questões de represálias por parte das empresas não colocaremos o seu nome aqui.
A greve então, construída democraticamente, seguiu por mais 5 dias. Neste processo o movimento também encontrava algumas dificuldades objetivas – a principal delas foi a questão financeira, como estavam em greve não somavam recursos financeiros e foi sobre este terreno delicado que entrou mais uma ferramenta fundamental que deu sustentação ao movimento, uma campanha financeira para garantir a alimentação de todo o corpo grevista.
Esta foi uma articulação que aconteceu em escala nacional e a arrecadação foi um verdadeiro êxito. Foram usadas plataformas virtuais para a circulação da campanha e contribuição financeira para o movimento, mais um exemplo da apropriação de novos meios para velhas e substanciais táticas dos trabalhadores, isto porque não muito longe na história era comum que trabalhadores de fábricas vizinhas da que estava em greve deixassem os seus lanches para que os grevistas pudessem se alimentar. Com isso o movimento ganhou sobrevida e uma equipe de entregadores responsável pela compra de alimentos distribuía todos os dias, em todos os locais de piquetes, água, sucos, sanduíches, frutas e etc, e ao final do dia na assembleia também eram distribuídos estes alimentos.
Assim foi caminhando a greve, e o Ifood, principal empresa de entregas da cidade, se viu pressionado a emitir um parecer, a se posicionar frente às demandas da categoria paralisada e organizada. Com estabelecimentos fechados a empresa começou a se desligar de alguns restaurantes sem qualquer aviso e começou a exigir para outros para que abrissem as suas portas novamente. Em uma tentativa de disputar a opinião pública local, o Ifood começou a dizer que tinha materiais de gravações de entregadores reclamando da greve e poderia usá-los, ou até mesmo, de maneira indireta, que a polícia poderia começar a comparecer nos locais piquetados com clara tentativa de intimidação. Pressionado, disse que estaria disposto a abrir um caminho de diálogo e negociação com o movimento a partir de um representante chamado Johnny, figura conhecida e responsável para desarticular o movimento em escala nacional dos entregadores. No sexto e último dia de greve, este tal Johnny se reuniu com as lideranças pela parte da manhã e disse que até a noite apresentaria algum tipo de proposta.
A última assembleia de greve
Após todo o sexto dia de greve, nós que estávamos no local acompanhando toda a movimentação e participando dos piquetes, já nos dávamos conta do desgaste por parte dos entregadores, mas o sentimento de luta e a sede de vitória eram ainda extremamente presentes. Com o anoitecer nos deslocamos para frente do Estádio Municipal onde estavam reunidos cerca de 70-80 entregadores – uma cena impressionante.
As ligações aconteciam entre a liderança e Johnny, e toda atualização das negociações eram imediatamente colocadas na assembleia. Foram cerca de 4 horas de discussões, tensão e apreensão ali em frente ao estádio. Foi aí que chegou a última proposta por parte do Ifood: uma promoção maior para os próximos dois finais de semanas, que incluía as sextas-feiras, e a promessa de uma reunião para o próximo dia 28 deste mês para discutirem as reivindicações de taxa mínima e valor por km rodado, reivindicações centrais do movimento.
Após uma série de intervenções de entregadores e das lideranças – na sua maioria refletiam por um lado um desgaste e por outro um sentimento de conquista, por mais parcial que fosse, generalizou-se a percepção na ampla maioria ali do poder da organização e mobilização dos trabalhadores e sob este quadro ficou decidido que iriam suspender a greve com indicativo de paralisação para o dia da reunião do dia 28. Reunião que se porventura não acontecer ou se não forem apresentadas propostas que o movimento tenha acordo irá provavelmente desencadear, como definido na última assembleia, uma nova greve dos entregadores da cidade e consequentemente abrir para possibilidades de nacionalização do movimento.
Assim que terminada a assembleia, sorrisos e abraços eram presenciados. Estava ali naquele espaço uma concreta demonstração do poder da auto organização deste setor da nova classe trabalhadora, da sua autodeterminação e da importância inegociável de ferramentas históricas de luta da nossa classe. Era uma experiência inédita para a ampla maioria que esteve paralisada nestes 6 dias, porém, era um marco, descobriram que só a luta pode mudar a vida, isto é, as próprias condições de vida e que a fragmentação impostas pelas novas formas e ferramentas de exploração podem ser suplantadas pela solidariedade e subvertendo estes mesmos meios de exploração.
É a partir dela, da mobilização, que se materializa no campo da luta de classes os interesses mais imediatos e históricos dos explorados e oprimidos. Uma experiência que reafirma para este período de recuo da classe trabalhadora a necessidade superar a política traidora das burocracias sindicais totalmente esclerosadas e sem qualquer compromisso com o avanço da classe – no final das contas não há nada mais pequeno burguês que falar em nome dos trabalhadores sem apostar no protagonismo político destes e sem dizer abertamente a burocracia evidencia que não querem que a própria classe que todavia dirigem se reconheçam como sujeitos capazes de transformar a realidade e o seu próprio destino.
E agora?
Antes de mais nada, queremos destacar o papel educativo que esta greve teve para o conjunto dos lutadores e trabalhadores. Colocou em prática uma construção democrática, auto-determinada e reivindicou no plano concreto da luta métodos e ferramentas históricas de luta da classe trabalhadora, isto, neste período político de luta pela recomposição da classe operária, não é qualquer coisa.
Esta experiência significa – contraditoriamente às condições políticas de ataques brutais aos direitos do trabalho, à direção burocrática da classe trabalhadora e às duras condições materiais de vida que colocam um estado permanente de subsistência – uma ruptura prática com a política traidora e desarticuladora da burocracia sindical que historicamente substitui politicamente a base dos trabalhadores em negociações a portas fechadas com os patrões e por outro lado com o pós-modernismo revisionista que tenta, a partir de malabarismos constrangedores e anti científicos, afirmar que métodos como estes para a luta estão no passado e já não são relevantes. Ou seja, foi justamente o contrário a isso que assistimos na greve dos entregadores de SJC que souberam ressignificar os métodos do piquete, da solidariedade de classes e das assembleias democráticas a serviço de uma conquista parcial ainda, mas que serve para valorizar a principal conquista dos trabalhadores na sua luta dentro do capitalismo e na transição para o socialismo: a capacidade de auto-organização.
Eis então a importância do aprendizado prático, da experiência forjada na luta para as novas gerações – claro que isso não significa encarar a realidade sem a teoria, algo que culminaria exclusivamente em um puro empirismo. É no terreno concreto da luta de classes que a política é colocada à prova, que as históricas ferramentas táticas e estratégicas se reafirmam e que a classe trabalhadora se dá conta do seu papel, das suas necessidades e que não pode em qualquer circunstância ser substituída por nada e nem ninguém.
Como dissemos acima no relato desta histórica greve, os trabalhadores de SJC seguem mobilizados e organizados, por mais que a greve esteja suspensa, para retomar a luta a depender dos desdobramentos. O dinheiro que sobrou da campanha financeira está sendo utilizado para impressão de material para a agitação e adesivos para as “bags” (mochilas de nós entregadores) deixando claro que a depender do próximo dia 28 entrarão em greve mais uma vez.
Este é um cenário de ofensiva por parte dos entregadores, porém em um recorte espacial ainda limitado é aí que surgem os desafios e possibilidades de avançar a categoria nacionalmente para colocar as empresas de aplicativos, principalmente a empresa brasileira Ifood contra a parede e acender a labareda que pode inflamar outras categorias de trabalhadores. Escrever é infinitamente mais fácil, colocar no plano da realidade é outra história, mas é preciso construir e mobilizar para que isso aconteça. Não se faz mais necessário duas linhas para evidenciar as possibilidades.
Nesta semana, ocorreu uma reunião nacional de todos os entregadores em luta e lideranças do movimento, da qual estivemos presentes, para pensar e materializar os próximos passos e planos concretos de construção política preparatória para o dia 28 que poderá ser decisivo. Tática e estrategicamente é urgente que todos os sindicatos, centrais sindicais e partidos de esquerda cubram esses preparativos de solidariedade, divulgando a situação e a luta em todos os meios possíveis para reunir condições políticas para nacionalizar a luta no dia 28. Além disso, construir uma campanha de boicote ao Ifood com denúncias e exigências à empresa por parte de figuras que tenham um relevante alcance nas redes sociais, para além do balanço da greve de SJC, é fundamental para fazer avançar a categoria que está tomada por um sentimento de revolta e ambições.
Ainda sobre os encaminhamentos desta última reunião, ficou decidido que comitivas de entregadores da região do Estado de São Paulo irão se deslocar no dia 28 para São José dos Campos para darem peso e prestar apoio no dia das negociações, essas que devem ser feitas com o maior número possível de entregadores mobilizados e não precisamos desenvolver o porquê. Além disso, cidades mais afastadas irão realizar atividades neste mesmo dia de faixaços em apoio a luta da categoria, algo que não pode se limitar apenas aos entregadores como apontamos acima.
Uma vitória dos entregadores de aplicativos pode significar uma mudança substancial na movimentação das massas em relação aos ataques brutais como a Privatização dos Correios, a Contrarreforma Administrativa colocados pela agenda bolsonarista e na luta em defesa dos direitos democráticos como o Fora Bolsonaro e Mourão, assim como para construir uma saída desta crise pelos e para os trabalhadores – fator que será decisivo para derrotar de uma vez por todas as ameaças golpistas.
Viva a luta dos entregadores de São José dos Campos!
Atendimento imediato de todas as reivindicações!
Não aceitaremos nenhuma repressão ao direito democrático de luta e organização dos entregadores!
Faça seu vídeo de apoio ou outra iniciativa para divulgar essa luta!
Boicote o Ifood até que atenda todas as reivindicações!