Às vésperas de mais um Congresso do PSOL, trazemos o artigo Althusser: filósofo tardio do estalinismo de Roberto Sáenz. O debate interno presente em nosso partido reproduz a luta de ideias existentes desde Marx e Engels contra o oportunismo economicista e o esquerdismo sectário, expressas em diversas propostas presentes no interior do partido.
Na luta contra os rumos tomados pelos PC´s no mundo após o Relatório Kruschov e notadamente contra o revisionismo direitizante do eurocomunismo, Louis Althusser, num debate interno do PC Francês, acaba sucumbindo à defesa do maior revisionismo de todos: o de Stalin e da burocracia soviética.
O mais impressionante, é que após quatro décadas de uma ideia derrotada no confronto com a história, ela possa ser reintroduzida, na América Latina, por um partido trotskista: o PTS argentino. Sáenz critica o estalinismo tardio de Louis Althusser e os dirigentes do PTS, Ariel Petruchelli e Juan Dal Maso, em reivindicar acriticamente tais ideias como “pedra de toque” para a renovação do pensamento marxista.
Assim, na busca da reconstrução do ideal socialista revolucionário, conforme a defesa da dialética e das posições de profundo fundamento materialista expostos por Lenin, Rosa, Gramsci, Trotsky e outros, apresentamos abaixo o artigo-debate de Roberto Sáenz acerca do estalinismo tardio de Althusser e de setores do trotskismo.
José Roberto Silva
Althusser: filósofo tardio do estalinismo
ROBERTO SÁENZ
“(…) a dialética hegeliana também é teleológica em suas estruturas, pois a estrutura chave da dialética hegeliana é a negação da negação, que é a teleologia, idêntica à dialética. Esta é a razão pela qual a questão das estruturas da dialética é a questão-chave que domina por inteiro o problema da dialética materialista. É a razão pela qual Stalin pode ser considerado um filósofo marxista extraordinariamente perspicaz, pelo menos neste ponto, por ter riscado a negação da negação das ‘leis’ da dialética”.
Louis Althusser, “La querella del humanismo”, 1967, tradução A. Arozamena, Google
“(…) foi preciso Marx para pôr Hegel de pé, foi preciso Hegel para estabelecer os pré-requisitos do marxismo”.
Raya Dunesvkaya; 2010; 161
Chama a atenção que ultimamente na Argentina algumas correntes da esquerda estão recuperando o pensamento de Althusser. Isto é significativo porque como teórico tardio do estalinismo – o filósofo francês não era um “comunista crítico” como é apresentado em um livro recente1. Althusser estava na moda nos anos 60 na França e nos anos 70 na América Latina (é bem lembrada sua divulgação por Marta Harnecker). No entanto, a queda do estalinismo no final dos anos 80 revelou os aspectos irremediavelmente falhos de seu pensamento, e sua trágica deriva pessoal – ele assassinou sua esposa em 1979 – acabou tirando-o de cena. (Bensaïd é agudo quando aponta que o humanismo que Althusser negava é necessário para abordar seu legado…2)
Althusser teve uma passagem fulgurante tal qual um cometa – ele brilhou internacionalmente por um tempo e se extinguiu rapidamente embora ainda esteja presente nas universidades – em uma conjuntura bem determinada: os anos imediatos do pós-guerra, em que os partidos comunistas se tornaram de massas, para mais tarde entrar em uma lenta decadência que se transformou em um colapso com a queda do Muro de Berlim. Um período em que ocorreram nada mais e nada menos que as revoluções anti-burocráticas na antiga RDA (uma revolta operária em Berlim em junho de 1953 esmagada pelo Exército Vermelho burocratizado), Hungria (uma revolução operária e socialista esmagada em 1956 também pelos tanques estalinistas), Polônia (várias tentativas revolucionárias), Tchecoslováquia (Primavera de Praga, 1969), etc. Revoluções; irrupções antiburocráticas que questionavam pela esquerda a imposição estalinista nesses países3.
Althusser, no entanto, esteve política e filosoficamente de costas para a esses eventos. E como cobertura para sua “ortodoxia comunista”, tendeu a abraçar o estalinismo clássico e o maoísmo como uma suposta “alternativa” às aberturas reformistas pró-mercado sendo empurradas por certos setores da burocracia, que ele considerava “revisionista”. Parte disto foi para reivindicar – criticamente – a figura de Stalin contra o famoso mas covarde discurso de Nikita Khrushchev no 20º Congresso do Partido Comunista em 1956, em que ele condenou o culto à personalidade enquanto preservava a burocracia como tal (para Althusser, o conceito do culto à personalidade estava “fora das categorias marxistas…”).
Em sua obra A Revolução Teórica de Marx, este “culto”, que na realidade nada mais era que uma ditadura totalitária estalinista, é apresentado como “um traço da personalidade de Stalin”, apenas para insistir que as personalidades não fazem a história e assim poupá-lo de qualquer condenação real. O marxismo (com muitas aspas) de Althusser foi objetivista e unilateral ao extremo, uma caricatura do mesmo: “(…) ao meu conhecimento, Marx nunca considerou que um estilo de comportamento político possa ser assimilado diretamente a uma categoria histórica, ou seja, a um conceito da teoria do materialismo histórico: já que se designa uma realidade não é um conceito” (1967; 200)4.
Este breve contexto histórico-político é fundamental, pois sem ele é impossível entender o pensamento de Althusser, bem como o fracasso de seu programa de pesquisa (o que não nega algumas contribuições parciais como os conceitos de superdeterminação, conjuntura e etc., mas que não justificam nos dedicarmos hoje à sua obra)5.
Chovendo no molhado, à falta de um balanço em relação ao estalinismo, o PTS acrescenta a idéia de que Althusser, e o próprio Althusserianismo, poderia ser uma “pedra de toque” para a renovação do pensamento marxista… Isto pode ser visto em sua recuperação de uma forma bastante acrítica pelo livro em questão, que é quase uma apologia da obra do filósofo francês. Não se pode mais, de costas às lições teórico-estratégicas do século passado, recuperar autores estalinistas ou filo-estalinistas em vez daqueles que, mesmo com erros em outros planos (como certas concessões ao reformismo), tinham clareza estratégica sobre este ‘quadrante’ fundamental da luta de classes do século passado6.
Nada menos que isso pode ser dito, porque Althusser tentou ser uma espécie de cobertura teórica do estalinismo, algo que salta em cada página de seu trabalho, em todas as tomadas de posição teórico-estratégica em que esteve envolvido, em suas acentuações. Basta por enquanto ressaltar que em uma de suas últimas declarações (ele morreu em 1990, imediatamente após a queda do Muro) ele se considerava diante de um “universo abolido” (Bensaïd, 19907), tendo perdido o terreno sobre o qual fundou sua reflexão, amarrado como estava ao “universo estaliniano”.
Não pretendemos esgotar aqui a crítica de seu trabalho. Isso nos obrigaria a fazer uma revisão sistemática que não está em nossos planos. Pretendemos esclarecer alguns dos pontos cegos de seu pensamento para demonstrar a definição que preside esta nota: o althusseranismo, longe de ser uma renovação do pensamento marxista, foi, acima de tudo, uma máscara teórica para o estalinismo8.
Antihumanismo, dialética e mecanicismo
Althusser se colocou no terreno filosófico como um anti-humanista radical. Segundo ele, os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 foram a coisa mais distante no pensamento de Marx do marxismo maduro a que ele chegaria com O Capital e os textos subsequentes (Musto). Paradoxalmente, os Manuscritos foram preparados para publicação por David Ryazanov, mas publicados somente depois que ele foi expurgado. Victor Adoratsky, seu sucessor estalinista à frente do IMEL (Instituto Marx e Engels) estava encarregado de publicá-los em uma edição com uma tiragem muito pequena… E não foi em vão se considerarmos que esta publicação ocorreu em 1932, no meio do giro estalinista à coletivização forçada e à industrialização acelerada9.
Os Manuscritos foram reavaliados nos países do pós-guerra da Europa Oriental, onde as ilusões criadas pelo suposto “socialismo” de Stalin rapidamente começaram a desvanecer-se. Assim, durante as décadas imediatas do pós-guerra, ocorreu uma série de revoltas antiburocráticas que, ao contrário das mobilizações de 1989/90, foram processos socialistas que defenderam a expropriação da burguesia e proclamaram a democracia operária.10
Assim, por trás da reivindicação do “socialismo com rosto humano”, expressavam-se duas correntes de opinião e políticas opostas. Para Althusser se tratava de uma mera reação de direita que serviu como uma cobertura “humanista” para as reformas pró-mercado de setores da burocracia e do reformismo social-democratizante em geral. A “cabeça” de muitos desses processos foi, efetivamente, referenciada em burocratas do aparelho com perfeitas credenciais estalinistas, que em meio a circunstâncias de crise se tornaram “reformistas” pró-mercado (como Imre Nagy na Hungria, mais tarde fuzilado pelo estalinismo). Mas a crítica althusseriana tendeu – não sem um interesse político óbvio – a ofuscar a outra vertente, muito mais importante do humanismo socialista: a que vinha da esquerda, desde o movimento operário, dos estudantes e dos intelectuais11.
Na medida em que os Manuscritos criticaram a alienação do trabalho (capitalista), e o trabalho, em novas formas, continuou a ser alienado – oprimido, explorado – em estados burocráticos, era lógico que o ativismo se refletisse neles: “Se escritores e jornalistas se sentissem culpados [de ter silenciado as injustiças, R.S.], os trabalhadores se sentiriam traídos. Tinham sido prometidos o mais alto posto no ‘estado operário’, no entanto tinham condições de trabalho medíocres e baixos salários” (Applebaum; 2011; 765).
Um exemplo entre os intelectuais que romperam com o estalinismo no calor desses eventos foi o historiador britânico E.P. Thompson. Thompson, que, como produto da revolução antiburocrática húngara de 1956, rompeu com o Partido Comunista Britânico junto com quase todos os membros da renomada equipe de historiadores daquele partido, exceto Eric Hobsbawm,12 publicando uma série de cartas intituladas “Epístolas aos Filisteus”, nas quais, apesar de alguns argumentos sectários em relação a Trotsky – ele afirma que sua oposição ao estalinismo não era consistente -, ele mantém um critério humanista socialista radical para criticar o estalinismo de forma devastadora e pela esquerda.
Na mesma linha, Bensaïd também lembra que todo o poder de fogo de Althusser foi dirigido contra o “esquerdismo teórico” do jovem Lukacs, Gramsci, Korsch, etc., e que um discípulo conhecido como Jaques Ranciere apontava à modo de balanço que “o marxismo que haviam aprendido na escola Althusseriana era uma filosofia de ordem cujos princípios nos afastaram do movimento de revolta que envolvia a ordem burguesa” (pelo maio francês de 1968; Bensaïd; 1990).
Althusser nunca teve a honra de questionar o stalinismo pela esquerda (exceto por algumas caricaturas “maoístas”). Pelo contrário, além das tépidas críticas e “autocríticas” sempre dentro do PC francês e do movimento estalinista internacional, seu trabalho teórico e filosófico estava a serviço da sustentação do aparato. E se uma das linhas principais de sua reflexão era a crítica ao humanismo, não era porque um humanismo extremo perderia de vista as determinações de classe (na guerra civil revolucionária não há humanismo que conte, por exemplo), mas porque uma das formas de defender o estalinismo era a crítica ao humanismo, o que, como Moshe Lewin corretamente apontou, “tornou-se uma máquina para devorar pessoas“, era apelar para uma espécie de teleologia histórica (mesmo que Althusser dissesse “rejeitar toda teleologia”), onde não está claro por que e como pode haver “progresso socialista” na abstração das pessoas de carne e osso: “(…) Marx parte do abstrato, e o proclama. Isto não significa que, para Marx, homens, indivíduos e sua subjetividade tenham sido apagados da história real. Isso significa que as noções do Homem, etc., foram apagadas da teoria, porque em teoria, tanto quanto sei, ninguém jamais encontrou um homem de carne e osso, mas apenas a noção de homem” (Althusser, “La querella del humanismo“).
Uma afirmação que nada mais é do que um cretinismo estalinóide evidente, pois além de separar de forma idealista e abismal as relações reais e sua representação conceitual, apagando homens e mulheres, os explorados, oprimidos e lutadora da representação histórica, era, e é, evidentemente, muito conveniente para menoscabar qualquer ângulo crítico do estalinismo: “(…) Stalin não pode, por razões infinitamente mais claras e fortes, ser reduzido ao desvio que atribuímos ao seu nome (…) Ele tinha outros méritos ante a história. Ele entendeu que era necessário renunciar ao milagre iminente da “revolução mundial” e empreender “a construção do socialismo” em um único país, e assumiu suas conseqüências: defendê-lo a qualquer preço como base e retaguarda de todo o socialismo no mundo, transformá-lo sob o cerco do imperialismo em uma fortaleza inexpugnável e equipá-lo para esse fim como prioridade com uma indústria pesada, da qual vieram os tanques de Stalingrado (…). Nossa história também passa por esse caminho. E através de deformações, caricaturas e das próprias tragédias desta história, milhões de comunistas aprenderam, mesmo quando Stalin os ensinou como dogmas, que existiam os Princípios do Leninismo ” (Althusser; 1973; 100).
O anti-humanismo althusseriano tinha várias vertentes. Uma, a política, acabamos de apontar brevemente. Outra, aquela ligada à valoração do trabalho de Marx (e Engels; Althusser parece desprezar a contribuição deste último, algo ao qual é dado um pontapé com sua atual recuperação pelo “marxismo ecológico “13), como se tivesse progredido por “compartimentos estanques”, por rupturas em “preto e branco”, e não por uma dialética de progressão e “negação da negação” (Aufheben, o superar conservando de Hegel), critério dialético rejeitado por Althusser, incapaz de dar conta do surgimento do novo: “A noção de desenvolvimento na natureza e na história ocorrendo sob a forma de uma espiral em vez de uma forma linear ou em círculo, foi a ilustração do movimento geral da dialética representada especialmente no princípio da negação da negação” (Foster; 2020; 240).
Para negar a dialética hegeliana, Althusser salientava que era triádica e que a verdadeira dialética era, é, apenas, diádica. Se é verdade que Hegel excedeu em que tudo tem “três partes” (Ernest Bloch aponta que o número favorito de Hegel era o 3; O Pensamento de Hegel, um trabalho altamente recomendável para acessar o conhecimento deste último), em qualquer caso a lógica diádica que Althusser alegou ser uma lógica de oposições puramente mecânicas sem superação, e ao criticar o critério de negação da negação, que é o mesmo que o de “superação conservando”, negava que podesse haver superação e resoluções parciais, que o desenvolvimento histórico e natural seria padronizado, como é, por uma dialética na qual o novo está sempre enraizado no velho e ao mesmo tempo o velho sobrevive no novo, carrega as velhas determinações, as supera de forma materialista até alcançar a um “ponto nodal” onde chega a uma totalidade completamente nova14. Mas toda essa dialética escapou ao mecanicismo althusseriano.
“Contradição e sobredeterminação” (dezembro de 1962) é um dos artigos, um capítulo de A Revolução Teórica de Marx, onde Althusser faz sua crítica à dialética hegeliana e apresenta a proposta, que retomaremos abaixo, de que a dialética de Marx não foi uma superação crítica, mas uma “ruptura” com a dialética do filósofo alemão, apenas para propor o conceito de sobredeterminação, que tem -alguma – utilidade, mas que como substituição da Lógica hegeliana, de sua dialética desenvolvida a um extremo incrível de riqueza em termos de determinações, é de um mecanicismo pobre 15.
A “dialética emergentista” é como se chama hoje à dialética que preside o surgimento do novo. Um processo de emergência que no pensamento de Althusser é assimilado como “religioso”, o surgimento de algo do nada, de deus ou de qualquer coisa esotérica, e não como uma dialética histórico-processual onde se verifica um salto de qualidade a partir de uma acúmulação quantitativa de eventos e vice-versa (o desenvolvimento pontuado por catástrofes, Stephen Jay Gould16).
Um desenvolvimento em espiral e não uma sobreposição mecânica de camadas, como é a “lógica” althusseriana. Lembremos que Althusser rejeitou qualquer análise histórica, diacrônica, e só afirmava o “estrutural”, a sincronia. O que não se entende, entretanto, é como se passa de uma “sincronia” para outra; nem mais e nem menos que a revolução!
Parte disto é a razão pela qual Althusser rejeitou toda antropologia. Não apenas no sentido de colocar a humanidade no centro, uma “centralidade humana” que não pode perder de vista uma ordem de determinações que a precede e a sucede, que é a natureza, que Althusser afirma de forma puramente abstrata, passiva e objetivista, sem ida e volta com a reatuação da humanidade sobre ela e perder de vista as justas relações humano-naturais. Ele também rejeitava o que é próprio da antropologia marxista: o estudo dos processos de emergência, dialeticamente co-evoluitivos (as reformas e revoluções, assim como as regressões e o desenvolvimento pontuado que marcam o curso humano), todas as questões que, referindo-se à evolução ou à involução histórica, escaparam ao ângulo de visão althusseriano. A única “antropologia” que ele parecia admitir era talvez a relativista, que não apreciava a progressão ou regressão histórica, mas simplesmente a comparação mecânica das estruturas sociais).
Althusser recorreu ao estruturalismo de autores como Levy Strauss na antropologia ou Lacan em psicanálise (não está claro porque ele os considerava “materialistas”), autores que suprimiram a história tanto da análise quanto dos sujeitos históricos, optando por um objetivismo radical. Uma série de estruturas nas quais os sujeitos seriam meros “reféns”, determinados, além disso, por uma mera apreciação “imaginária” da realidade: um mundo de estruturas objetivas imutáveis, uma espécie de recriação da “caixa de aço” weberiana – mesmo que não tivessem nada a ver com o pensamento do sociólogo alemão, mais profundo do que o deles.
Nós defendemos um critério oposto ao de Althusser. Sem perder de vista uma progressão no trabalho de Marx e Engels – fazer o contrário seria anti-científico, porque qualquer pesquisador vai avançando criticamente em sua compreensão do mundo -, abordamos o trabalho de nossos fundadores como um clássico onde nada pode ou deve ser desperdiçado, mesmo que abordemos tudo criticamente. (O conceito de “clássico” alude às obras que, por terem elementos de universalidade que transcendem seu imediatismo, conseguem captar as determinações mais profundas da existência humana, embora ainda estejam enraizadas em seu tempo histórico: “(…) quando alguém ou algo consegue ser clássico, é colocado num tempo intemporal” (Giacinto Di Pietrantonio, “El arte de lo clásico“, Fundación PROA).
Ao abordar o trabalho de Marx e Engels de forma mecânica e não dialética, descartando sempre o trabalho anterior (Althusser rejeita os Manuscritos, mas também não está convencido pelos Grundrisse por serem ‘hegelianos’, e assim por diante, até postular que praticamente o único texto marxista coerente seria “As notas marginais a Adolf Wagner”, uma nota escrita em 1880 e publicada postumamente17).
Além disso, trabalhando com o conceito anti-dialético de “ruptura epistemológica” (existem rupturas conceituais, mas Althusser não explica como elas são produzidas: “Toda a ciência não é nada além de um corte contínuo, escamado de cortes ulteriores, internos“, “La querella del humanismo“), é compreensível porque Althusser -junto com Stalin! – rejeita, repetimos, o critério dialético de negação da negação (Stalin velhaco, porque desta forma se opôs à ordem burguesa sem considerar uma verdadeira transição socialista, que não é apenas oposição, mas também superação), o Aufheuben hegeliano, ou seja, não o corte mecânico (“um corte contínuo, escamado por cortes ulteriores“), mas o progresso em espiral, uma progressão que contém em seu seio todas as leis da dialética: a unidade dos opostos, o salto de quantidade para qualidade, o desenvolvimento desigual e combinado, a dialética entre essência e aparência, e assim por diante.
Além disso, ao descartar a experiência real com o conceito bacharelariano do ‘obstáculo epistemológico’,18 Althusser, longe de fundar uma nova dialética ‘propriamente marxista’, o que faz é recair sobre uma espécie de lógica formal, um escolasticismo metafísico, um esquematismo que inibe qualquer conhecimento da realidade. “Duas tendências filosóficas, a metafísica com categorias fixas, a dialética (Aristóteles e especialmente Hegel) com categorias fluidas” nos assinala Engels com respeito às “classificações” (Dialética de la naturaliza, 163).
Uma terceira vertente deste antihumanismo foi a idéia de que a história humana não seria tal história humana… Embora voltemos a isso abaixo, apressamo-nos em apontar que o que Althusser postulava era uma espécie de “monte bras” no qual a dialética entre as relações de produção e as forças produtivas atuava acima e fora das lutas sociais de carne e osso. À definição de Marx de que a natureza humana não é mais que o conjunto das relações sociais, Althusser convenientemente, a desencarnava, deixando os seres humanos explorados e oprimidos fora dela. Como se essas relações sociais fossem abstrações das quais os trabalhadores fossem meros “suportes” geridos por forças puramente objetivas vindas de não se sabe onde, quebrando assim, de forma objetivista radical, com a dialética entre sujeito e objeto que caracteriza a história humana (assim como tende historicamente a caracterizar a natureza como um todo) e caindo na ridícula afirmação, de lesa marxismo, de que a história seria um processo sem sujeito: “A tese de uma dialética da natureza era indispensável na teoria hegeliana da história, como uma teoria da história não antropológica: ela indica no contexto hegeliano (que ainda é marcado, na teleologia do processo de alienação, pelo espiritualismo) que a dialética não começa pelo homem, e que a história é, neste sentido, um processo sem sujeito” (“La querella del humanismo“).
Mas se a história, de fato, como história cósmica, não começa com a humanidade e não terminará com ela, algo muito diferente é pensar que a história humana propriamente dita é uma história sem sujeito (logicamente que sempre em um determinado contexto material); aqui Althusser se torna um objetivista radical, e por razões óbvias: quem fala através dele é o aparelho estalinista racionalizado, que tenta se basear – se justificar – em considerações que passam por cima das experiências e percepções daqueles que fazem a verdadeira história humana: os explorados e oprimidos em luta. “(…) tudo o que é dito do ‘culto da personalidade’ diz respeito com toda precisão ao domínio da superestrutura, portanto, da organização do Estado e das ideologias; diz respeito, ainda mais, no essencial, àquele único domínio que, como sabemos, tem uma ‘autonomia relativa’ na teoria marxista (o que simplesmente explica, em teoria, que a infraestrutura socialista foi capaz de se desenvolver na essência sem problemas enquanto a superestrutura sofreu com esses erros)” (Althusser; 1967; 200).
É compreensível por que alguns “trotskistas” gostem de Althusser. Como se fosse possível que a “infraestrutura socialista” se desenvolvesse “no essencial” em meio, não de “erros”, mas da contrarrevolução estalinista, além do mais em um estado, o da transição, onde a superestrutura cumpre uma função de tal importância, muito diferente da do capitalismo clássico. Mas Althusser, infelizmente, só entende mecanicamente as relações entre economia e política, como se em cada formação social fossem as mesmas do capitalismo, quando na verdade o socialismo só pode ser uma construção consciente, como disse Trotsky (ver “Engels antropólogo” sobre as relações modificadas entre economia e política nas diferentes formações sociais).
A rejeição do conceito de experiência
Além do acima exposto, é característico de Althusser a rejeição do conceito de experiência, uma questão que aparece como uma “aposta epistemológica anti-empirista” mas que é, no fundo, profundamente idealista e cujas implicações vão além da mera teoria; é uma questão de implicações políticas: “A maioria de nossos bons ‘humanistas’ nunca deixa de invocar magicamente o ‘real’ que para eles é o concreto, a ‘vida’, ‘mais rica e mais ardente que todos os conceitos’, para se opor religiosamente à ‘teoria’, que como todos sabem, depois de um famoso ditado que, por ter sua verdade também pode servir para encobrir todas as dimensões, é ‘sempre cinza’. Não é desse “real” que se trata, mas do “real” científico, que – Marx demonstrou fortemente – nada tem a ver com o “concreto”, nem com o “real” das evidências da vida cotidiana, tudo dado e impregnado pelas evidências da ideologia (…). A realidade é, no sentido preciso em que a fazemos intervir, uma categoria do próprio processo do conhecimento” (“La querella del humanismo“, idem).
Portanto, três questões: (a) a vida real não dá provas reais de nada, nem mesmo de forma crítica, e (b) “a consciência é tão permeada pela evidência da vida cotidiana” que nada pode contribuir, novamente nem mesmo de forma crítica, para uma real consciência das circunstâncias, mesmo que este seja um processo complexo que c) se refere ao conhecimento crítico que, crítica e conceitualmente, retrabalha tais experiências na, da, realidade, porque para Althusser a realidade não seria a realidade real, mas “uma categoria do próprio processo de conhecimento” que “nada tem a ver com o concreto e o real“…, uma deriva idealista se é que alguma vez existiu!
Como se pode ver, um dos graves problemas da “dialética althusseriana” é que lhe falta o conceito de experiência: percepções, intuições, não seriam a matéria prima do conhecimento para trabalhar sobre elas (logicamente, a ciência se faz trabalhando esses elementos, não tomando-os como simples dados certos, como é a lógica do empirismo). Qualquer avaliação da realidade, por mais crítica que fosse, seria sempre falsa, um “obstáculo epistemológico” ao verdadeiro conhecimento… Esta crítica foi classicamente apontada por E.P. Thompson em Miséria da Teoria, um brilhante e demolidor panfleto do Althusseranismo (mesmo que ele tenha perdido de vista algumas das complexas determinações da consciência política de classe e o caráter indispensável do partido revolucionário para alcançá-la em sua totalidade).
Logicamente, com Althusser, a vara parece estar inclinada para um lado e com Thompson para o outro. O último é mais valioso que o primeiro, porque o historiador inglês confiou na capacidade dos trabalhadores de fazer sua própria história, de se auto-emancipar; Althusser não confiou, ele só confiou no aparelho estalinista (como o Kautskyismo só confiou na burocracia social-democrata). Que está auto-emancipação requer necessariamente o complexo metabolismo com o partido revolucionário é algo que escapou de Thompson (uma cegueira semilar à de Rosa Luxemburgo; uma inclinação da vara para o lado da espontaneidade perdendo de vista a necessidade de organizar a vanguarda em um partido), embora a “solução” dada por Althusser ainda fosse idealista e não emancipadora.
Por outro lado, que fique claro que o conhecimento científico e consciência política não são obviamente a mesma coisa. Eles operam com diferentes ferramentas, embora o que eles têm em comum é que em ambos os casos deve-se contar com a experiência, sempre avaliada criticamente, “metabolizada” por assim dizer, usando as ferramentas do marxismo e da dialética (no caso da abordagem científica do marxismo) ou do partido revolucionário e sua política (para processar a experiência da classe como consciência de seus fins universais).
Althusser rompe com o critério marxista da verdade fundada na práxis. Ou seja, com a idéia de que a verdade é sempre concreta: “O problema de se poder atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é um problema teórico, mas um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poderío, a terrenalidade de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou irrealidade de um pensamento que se isola da prática é um problema puramente escolástico” (Marx, Teses sobre Feuerbach, ponto 2).
Para o filósofo francês existe uma divisão radical entre o objeto real e o objeto de conhecimento, onde o último não teria nenhum ponto de contato com o primeiro. E enquanto Marx achacava Hegel por confundir o concreto real com o concreto do pensamento (Introdução à Crítica da Economia Política), Althusser perdeu completamente de vista o fato de que o concreto do pensamento como síntese de múltiplas determinações só pode ser construído a partir de um trabalho sobre as percepções e intuições que nos conectam com a realidade (elevação do abstrato ao concreto); dividir os dois planos de forma absoluta só pode significar uma fuga para o idealismo: “Althusser tenta mostrar que para Marx (…) o objeto do conhecimento é ‘em si mesmo, absolutamente distinto do objeto real’ (…) criticando a idéia de que a matéria prima do pensamento pode ser intuição ou representação sensata, ele sustenta que o pensamento não funciona sobre o objeto real, ‘mas sobre sua própria matéria prima, que constitui… seu objeto (do conhecimento) (…). Segundo Althusser, quando as ciências são “verdadeiramente constituídas e desenvolvidas, já não têm mais necessidade de verificação prática externa para declarar como ‘verdadeiros’, ou seja, conhecimentos, os conhecimentos que produzem ” (Astarita, “Althusser y el ‘objeto del conocimiento’“).
É falso que Marx introduziu uma divisão radical entre os dois termos (pensamento e realidade). Sua abordagem é a de um trabalho intelectual que a partir de percepções e intuições (intuições sensíveis e representações) se valida em algum contraste com a experiência real; uma validação puramente interna ou formal corresponde apenas às matemáticas, e se fosse transferida para o resto dos domínios do conhecimento, somente redundam em idealismo: “O que Marx sustenta é que o ponto de partida do conhecimento é o real e o concreto, o todo vivente. Ele explica que os economistas do século XVII começaram por estudar o todo (população, nação e etc.) e descobriram, através da análise, relações gerais abstratas (…). A partir dessas categorias abstratas, começaram a elaborar sistemas econômicos, voltaram ao todo. Marx diz que esta segunda via é o método cientificamente correto, e que desta forma o pensamento reproduz o todo, mas agora como um pensamento concreto. Marx esclarece que este pensamento concreto não é um produto do conceito “(…) que pensa e se engendra, de fora e acima da intuição e representação, mas, ao contrário, é um produto do trabalho de elaboração que transforma intuições e representações em conceitos”” (Astarita, idem).
Se o objeto do conhecimento nada tem a ver com o objeto real; se a realidade só pode se expressar como um “sintoma” lacaniano (o inconsciente não pode ser conhecido, só se expressa como um sintoma, afirmava o psicanalista francês19); se nada podemos conhecer da realidade, nem mesmo assintoticamente como postula o marxismo, ou seja, numa progressão por aproximações sucessivas ao que é uma realidade rica e diversa em determinações, em movimento, o que está sendo postulado, no limite, é a incognoscibilidade do real….
Não é por acaso que muitos althusserianos eram kantianos – lembremo-nos de seu conceito de noumeno, que remetia ao real incognoscível20. Mas acima de tudo, o que nos interessa é ressaltar que em Marx, mesmo que o concreto do pensamento e o concreto real não devam ser confundidos – como acontece em Hegel, repetimos, devido ao seu idealismo -, é claro que o objeto do conhecimento, o conhecimento como tal, não tem nenhuma barreira ontológica com a realidade, mas que, pelo contrário, acrescentamos, mesmo as categorias elementares do pensamento são expressões de práticas humanas introjetadas; o conhecimento, incluindo tais categorias primárias, por assim dizer, se constrói através do trabalho sobre percepções e intuições decorrentes da experiência real (da interação humana com o meio21).
Esta abordagem tem várias conseqüências políticas, uma delas, sumamente importante, é o reconhecimento de que os trabalhadores não possuem apenas uma falsa consciência de suas condições como autômatos (nas palavras de Althusser, “as [falsas, R.S.] evidências da vida cotidiana“). Acontece que a consciência dos trabalhadores, como Gramsci apontou, é uma combinação de elementos falsos e verdadeiros. Uma parte – a parte da falsa consciência – são as interpretações que vêm do sistema, da classe dominante, que são as impostas como “representações universais” na consciência dos trabalhadores; Lênin insistiu que a consciência burguesa sempre acabou sendo imposta à classe trabalhadora porque é a classe dominante que domina as representações coletivas; algo que poderia ser assimilado ao conceito althusseriano de ideologia22.
Mas, por outro lado, e vindo de sua experiência, os trabalhadores também têm elementos de consciência verdadeira (caso contrário seriam meros autômatos): não é necessário que aos revolucionários lhes digam que quando vão trabalhar de bicicleta e o patrão é a Mercedes Benz, há algo errado. O que exatamente e fundamentalmente está errado, para responder isso e é insubstituível, além da experiência, o trabalho sobre a consciência que nós revolucionários aportamos. Mas os trabalhadores não precisam de nós para entender que esta disparidade está errada, mesmo que eles não saibam exatamente quais são as razões de fundo nem como remediá-la.
A operação de Althusser de dividir a “prática teórica” da ação revolucionária, de estabelecer idealisticamente uma barreira intransponível entre o concreto do pensamento e o concreto real, entre a experiência, a representação e a consciência, adequou-se ao estalinismo como uma luva para impedir, por exemplo, a percepção dos trabalhadores de que algo estava errado nos estados burocráticos; que entre o discurso “comunista” de que o Estado era “deles” e a realidade dos privilégios da burocracia, algo não funcionava; uma experiência que lhes indicava percepções verdadeiras das coisas! “Seu ardor [de Althusser] em combater o humanismo recobre uma interpretação positivista e cientificista do marxismo, graças à qual são encobertas as responsabilidades históricas do estalinismo” (Bensaïd, Rouge, 1973).
Porque, precisamente, como fator mediador entre a realidade e a consciência, entre o objeto real e o conhecimento, um elemento fundamental é o conceito de experiência, que Gramsci inclusive levava ao extremo quando afirmava que “todo homem é um filósofo“, no sentido de que, correta ou incorretamente, todas as pessoas, todos os trabalhadores homens e mulheres, se questionam sobre o mundo, forjam uma interpretação do mesmo. Mesmo na definição aguda de Lênin do espontâneo como forma embrionária de consciência, a classe trabalhadora não aparece como um autômato, embora, precisamente, sem a organização revolucionária, não possa elevar-se à consciência crítica anticapitalista e socialista; não pode passar da forma embrionária de consciência a uma forma madura dela (a consciência burguesa acaba sempre se impondo como totalidade porque as idéias dominantes da sociedade são sempre as idéias da classe dominante).
Em qualquer caso, somente com uma apreciação dialética e não-mecânica da consciência pode ser fundada uma concepção correta do partido. Um partido que se encarna na experiência real dos trabalhadores, que vem para “fundir-se” com eles (como afirma Lenin em Esquerdismo, doença infantil do comunismo), que aprende com suas experiências e lhes traz o que, no limite, os trabalhadores não podem alcançar: uma consciência política de classe consistente. Ou seja: uma apreciação universal da realidade; aprender a unir seus interesses imediatos com seus interesses históricos; pôr fim ao sistema capitalista e a toda a burocracia.
A história como proceso sem sujeito
Em 1972, Althusser entrou em uma discussão com um filósofo do PC britânico sobre a problemática do humanismo. O que este filósofo inglês desconhecido disse não é importante, mas algumas das declarações de Althusser o são. Basicamente, três afirmações: a) ele contrapõe a “massa” ao homem – sendo este último uma categoria filosófica da antropologia, segundo Althusser – como um fator histórico; b) ele diz, de todas maneira, que a história é um processo sem sujeitos, e c) acrescenta que a história não tem fim (o único ponto correto de sua argumentação, como veremos).
Sua primeira afirmação era parte do operativo característico de seu anti-humanismo e um típico recurso estalinista: opor a “massa” muda aos homens e mulheres reais. Padura estabelece um diálogo em El señor que amaba los perros) que capta abordagens clássicas similares como, por exemplo, no El cero y el infinito o Yogui y el comisario de Arthur Koestler23, ensaios de romance onde a representação da argumentação burocrática é igualmente aguda (e anterior ao escritor cubano): a tentativa de convencer o militante comunista – ou o condenado – de que “a pessoa não é nada” e a “massa anônima” ou a “História” considerada abstratamente “é tudo“24. Um argumento idêntico pode ser encontrado na última carta de Bukharin a Stalin antes de ser condenado e fuzilado (início de 1938), onde, a fim de obter clemência, ele afirma que ele, Bukharin, “não é ninguém“, e que ele não questiona as decisões de Stalin, mesmo as mais indefensáveis, porque ele seria “aquele que carrega em seus ombros as grandes tarefas históricas universais…“.
É preciso ter pele de lagarto com zero sensibilidade anti-Stalinista para reivindicar a Althusser, cujos argumentos – mesmo com uma reviravolta sofística25 – vêm das profundezas do aparelho estalinista: “Não se trata mais de ‘o homem’. O sabemos. Mas em “a luta de classes é o motor da história”, não se trata mais de fazer a história. Não é mais uma questão de ‘fazer’, ou seja, não é mais uma questão do problema do sujeito na história: quem faz história?“. (Althusser;1974;32).
Portanto, não se trata mais de homens e mulheres reais, nem dos explorados e oprimidos fazendo história, nem do problema dos sujeitos da história, que são os que movem a luta de classes. Mas se for assim, sobre o que seria a história então? Porque lembremos que Marx e Engels no Manifesto Comunista (1847) começam por definir que “A história da humanidade até nossos dias nada mais é do que a história da luta de classes“. Em Althusser, ao contrário, trata-se de um objetivismo extremo onde a “história se faz” e um subjetivismo enganoso e não menos extremo onde, na realidade, quem faz história é o aparelho burocrático estalinizado… para quem Althusser trabalha!
Marx e Engels, e a tradição do marxismo revolucionário, nunca esconderam o povo de carne e osso por trás das “massas” anônimas instrumentalizadas por algum aparelho burocrático miserável (ou seja, o oposto do partido revolucionário que se coloca a serviço da emancipação dos trabalhadores).
Que o conceito de classe social, ou de explorados e oprimidos, é responsável por um coletivo de pessoas em condições semelhantes, não significa que, de forma totalitária, esse coletivo seja uma desculpa para esmagar cada um e cada uma de seus integrantes (Modzelesky).
É claro que, logicamente, nas condições da luta de classes, a ação e a decisão são coletivas e todos devem se subordinar a essas decisões coletivas adotadas democraticamente. Mesmo na guerra civil, quando se trata de um caso de vida ou morte, é preciso obedecer às ordens das quais, a priori, depende o bem comum da classe como um todo.
Mas apresentar o marxismo, não como uma ferramenta para a emancipação de cada um dos explorados e oprimidos, de cada pessoa, sim, e convertê-lo em uma espécie de “Monte Bras histórico” onde uma massa anônima seria a referência, quando na realidade a verdadeira referência eram as decisões antipopulares do aparelho estalinista e suas traições, não tem nada a ver com o marxismo.
Mais chocante ainda é que em pleno século 21, com todas a água passada sob a ponte, autores ligados a correntes que afirmam ser “trotskistas” reproduzem este tipo de argumentos: “Althusser questionava que poderia ser atribuído ao ‘Homem’ o papel de ‘sujeito da história’. Mas realizava uma precisão que merece ser levada em conta (…). Ele afirmava que a rejeição da idéia do “Homem como sujeito da história” não liquidava o problema da ação política. Pelo contrário, para Althusser, somente quando se abandona a temática humanista colocada em termos genéricos, se podia avançar em uma concepção mais clara da política em termos de luta de classes” (Petruccelli, Dal Maso; 2020; 90).
Primeiro, o conceito de humanista “colocado em termos genéricos” não está em Althusser (isto é, não é assim que Althusser o define), mas que ele rejeita o humanismo tout court; segundo, ao postar que a história é um processo sem sujeitos, não ficou muito claro que ação política o filósofo francês estava postulando além da do aparelho estalinista onde a classe trabalhadora, a base, não tinha arte nem parte; era a política da burocracia e nada mais – embora em alguns textos como O Que Não Pode Durar no Partido Comunista fosse questionado que ” não se consultava à base”, um reflexo epidérmico de seu autor e não algo orgânico, sistemático; Althusser nunca foi um oponente sistemático da política do PC francês e de sua direção.
Deslocar a concepção humanista genérica pode dar lugar a uma concepção política revolucionária mais realista, mais precisa em relação ao caráter irreconciliável das contradições de classe, como disse Lênin, mas em todo caso, se isso for à custa de negar o papel do sujeito social e político na luta de classes cotidiana e na revolução, o preço parece ser muito alto.
Enfim, são as classes sociais e seus integrantes que fazem a história. Não como uma massa anônima, mas como um sujeito consciente com seus organismos, partidos, consciência, suas lutas de vanguarda e retaguarda, suas direções; essa é a mecânica específica da revolução socialista. Dissolver as pessoas humanas exploradas e oprimidas, cada uma delas, por trás da “massa” e da “linha de massa” nada mais é que Althusser fazendo o papel de ventríloquo do aparelho estalinista para silenciar, oprimir e trair a classe trabalhadora; não uma perspectiva emancipatória.
O operativo de Althusser é dissolver os seres humanos por trás das relações sociais; o sujeito – o não sujeito – seriam as relações sociais em abstrato. Desta forma, ele perde de vista o fato de que existe uma dialética bidirecional: classes e agrupamentos sociais são uma cristalização das relações sociais que são mais do que a soma de suas partes. Mas por outro lado, cada pessoa humana integrante dessas classes sociais é também uma cristalização desse conjunto de relações; é uma lógica de ida e volta que não perde de vista a totalidade da classe nem esmaga cada personalidade individual (um elemento fundamental do balanço do estalinismo).
Esmagar a personalidade individual por trás da massa muda ou, na verdade, do aparato, não foi mais que o operativo estalinista para justificar a política mais imundamente antioperária e antipopular; a traição da revolução: “O que é um homem, Jaques? Ou agora é Ramon?… Esses cães que você tanto gosta têm nome, e daí? Eles ainda são cães. Ontem eu era Grigoriev, antes eu era Kotov, agora sou Tom aqui e Roberts em Nova York. Você sabe como me chamam na Lubyannka… Leonid Alexandrovic. Eu me dei esse nome para que eles não soubessem o meu (…) Eu sou o mesmo e sou diferente a cada momento. Eu sou todos e sou nenhum, porque sou mais um, muito pequeno, na luta por um sonho. Uma pessoa e um nome não são nada… Veja, há algo muito importante que eles me ensinaram assim que entrei na Cheka: o homem é relegavel, substituível. O indivíduo não é uma unidade irrepetível, mas um conceito que soma e forma a massa, que sim é real. Mas o homem enquanto indivíduo não é sagrado e por isso é dispensável (…) É melhor que nem você nem eu tenhamos um nome verdadeiro e que esqueçamos que já tivemos um. Ivan, Fyodorov, Leonid? É a mesma merda, é nada. ‘Nomina odiosa sunt’ (os nomes são odiosos). Importa o sonho, não o homem, e menos ainda o nome. Ninguém é importante, somos todos prescindíveis…(…)” (Padura, 2011; 37426).
Um parágrafo brilhante de Padura que nos remete à categoria de privação-alienação nos Manuscritos, ou seja, a impossibilidade de gerenciar o trabalho, as tarefas que se realiza; categoria que Althusser descartou como “pré-marxista”….
Finalmente, a terceira definição Althusseriana que estamos abordando neste ponto é a afirmação de que a história não tem fim, a única afirmação correta no panfleto de 1972, embora vindo de um estalinista como Althusser admite duas interpretações. A interpretação lógica, por assim dizer, histórica, não-mecânica e revolucionária marxista é que não existe uma filosofia da história, nenhuma teleologia que possa resolver para a humanidade, para os explorados e oprimidos, o curso histórico. Na contemporaneidade, a alternativa é o socialismo ou a barbárie. E não há uma “necessidade econômica” que “abra o caminho”, como muitos marxistas continuam a afirmar.
As condições materiais do desenvolvimento das forças produtivas – e a criação simultânea de forças destrutivas – só permitem certas tendências, condicionam dialeticamente determinados desenvolvimentos, recriam continuamente o potencial enterrador do capitalismo, do proletariado, mas não resolvem os problemas. Tais condições se referem à luta de classes e ao amadurecimento político da classe trabalhadora para poder se transformar em uma classe histórica. Ponto.
Mas, por outro lado, a rejeição de Althusser a toda a teleologia também poderia ser interpretada, talvez, como tirando qualquer parâmetro ao estalinismo… A tradição do marxismo deixou colocados tais parâmetros e apontou que o desenvolvimento das forças produtivas e culturais da humanidade colocava a possibilidade material de emancipação dos trabalhadores.
A história não tem fim, de fato. Mas tem tendências para um ou outro lado; quais tendências se afirmam, progressivas ou regressivas, depende da luta. Mas também não é um mundo de puro acaso. O acaso existe e se mistura perfeitamente com a necessidade; mas mesmo que a história não tenha fim e não seja um sujeito aparente com maiúscula – a História – como disse Marx, sobre a mesa do desenvolvimento histórico estão colocadas uma série de potencialidades que não só o capitalismo ameaça a cada passo para se transformar em barbárie, mas que o estalinismo também inibiu dramaticamente com as conseqüências conhecidas por todos, não só da exploração e opressão dos que estão abaixo sob novas formas não orgânicas, mas também com o desperdício de recursos naturais e a destruição da natureza, como a secagem do Mar de Aral, Chernobyl e um longo etcétera.
Em síntese: a definição althusseriana de que a história não teria nem sujeito nem fim não era uma definição marxista, mas estruturalista. Um operativo teórico, este último, que antes do subjetivismo extremo da corrente intelectual francesa dominante no período pós-guerra, o existencialismo, reagiu afirmando um primado absoluto das determinações objetivas (das estruturas). Nenhum deles realmente se inspirou na tradição do marxismo clássico e revolucionário, que tem uma dialética muito mais sutil entre fatores objetivos e subjetivos, que não é objetivista nem subjetivista e que Marx resumiu com uma frase clássica quando afirmava que a humanidade faz história, apenas em condições não escolhidas por ela, mas legadas pelas gerações anteriores.
Um ataque contra a dialética
Finalmente chegamos, ou melhor, voltamos à questão da relação de Marx com Hegel, à questão da dialética. Já assinalamos que, em nossa opinião, Althusser desvaloriza e substitui a dialética por uma espécie de escolástica. Entretanto, é grave que os militantes que se consideram marxistas revolucionários como Petruccelli e Dal Maso (sejam ou não militantes partidários), em vez de incentivar o estudo da dialética, que não é nada simples, tendem a desvalorizá-la; em vez de reivindicar a relação crítica de Marx com Hegel, e a necessidade de estudá-la de forma minuciosa como Lenin insistiu, eles inclinem a vara para o outro lado…
Isto significaria não apenas privar o marxismo de um imenso universo, o de um dos maiores pensadores da humanidade, ainda que fosse um idealista (um idealista objetivo, para ser mais preciso, Llanos), mas também que esta abordagem teve conseqüências teóricas, políticas e estratégicas desastrosas no marxismo.
Grande parte da luta contra o reformismo na época da Segunda Internacional tomou a forma de uma defesa da dialética materialista (A Concepção Materialista da História de Karl Korsch é um excelente texto a esse respeito27). Trotsky também teve que lutar contra a degradação estalinista da dialética em textos brilhantes como As Tendências Filosóficas do Burocratismo e Degeneração da Teoria, Teoria da Degeneração, e abordou a questão em Em Defesa do Marxismo28.
Como um bom estalinista, Althusser defende a ruptura entre Marx e Hegel. Ele chega ao ponto de propor uma dialética “especificamente marxista” e critica a metáfora da inversão que o próprio Marx apontou em relação à dialética hegeliana quando declarou que eles tinham que “colocá-la de pé“.
Sobre isto, podemos apontar brevemente algumas questões. Em primeiro lugar, pedir in extremis uma “dialética puramente marxista” em oposição à dialética hegeliana, ou a qualquer dialética, é como pedir uma matemática marxista…
Fique claro que a dialética hegeliana tinha seus termos invertidos, por isso foi idealista. No entanto, as “leis” que a caracterizam, seus critérios gerais, são uma conquista universal do pensamento humano no campo da lógica do movimento do todo; lógica dialética, lógica muito rica, lógica da contradição e da dinâmica, que o marxismo fez sua sob seus próprios parâmetros materialistas: “Quando algo é tão rico quanto a dialética, é certamente complexo defini-lo como uma coisa, ou como dezesseis coisas” (“coisas” por referência a suas leis internas); a declaração aguçada de Dunevskaya (2010; 188).
Um argumento aqui é sobre a relação entre a forma e o conteúdo da dialética. Althusser critica Engels quando afirma que ele e Marx tomaram o método de Hegel em suas mãos e descartaram o sistema; assinala que o método foi “contaminado” pelo sistema Hegeliano e que então o que faz Engels é recorrer à uma argumentação mecânica.
Mas se considerarmos que a dialética assume a forma – muito geral – de movimento, que esta forma se apresente sob uma maneira idealista ou materialista não questiona a validade da dialética como tal; os termos deste questionamento modificam-se. Neste caso, a oposição é com a abordagem mecânica, metafísica das questões versus a abordagem dialética dos acontecimentos, e não se um pensador é um idealista ou um materialista. Há formas de idealismo mecânico e outras de idealismo dialético, assim como há materialismo mecânico e materialismo dialético: “Em suma, a última palavra e a essência da lógica de Hegel é o método dialético, isto é extremamente notável. E mais uma coisa: neste trabalho de Hegel [por referência a A ciência da lógica, R.S.], o mais idealista de todos, há menos idealismo e mais materialismo do que em qualquer outro. É ‘contraditório’, mas é um fato“! (Lenin citado por Dunevskaya; 2010; 191).
Portanto, o argumento de Althusser é outro escolásticismo, que só serve para condenar a dialética como tal: “Hegel sempre experimenta um enorme apetite pela novidade. Ele odeia tudo o que permanece fixo em um só lugar, acumulando as secreções de um imutáve fastiol. Tão só espera o permanente quando está animado de vitalidade interior, uma fonte inesgotável de interesse. Hegel está interessado, sobretudo, nas rupturas de equilíbrio, nas vacilações, nas transições, nas passagens em que, certamente, todo desaparecimento exige uma substituição (…) Esta rejeição do prolongamento do passado aparece, em Hegel, acompanhada de um profundo sentimento contra os nostálgicos dos tempos antigos. Uma atitude vital (…) [que] assume uma expressão apaixonada nos escritos de sua juventude (…)” (Jaques D’Hont, Hegel, filósofo de la historia viviente, citado por Guillermo Pessoa).
O pensamento de Hegel – especialmente sua lógica – resumia de forma colossal a experiência humana, apenas que o fazia de forma inversa, o que não era uma questão menor, é claro. Mas a inspiração que sua dialética obtinha vinha, precisamente, dessa riqueza da realidade; realidade – objetiva – a qual, ainda que ele a via determinada idealisticamente, não foi abolida em seu pensamento, muito pelo contrário (Llanos).
Assim, por outro lado, parece-nos uma gravíssima afirmação positivista e anti-dialética a que emerge de um dos vários parágrafos discutíveis do texto de Petrucelli e Dal Maso (na realidade, aparece como um texto contra a dialética dadas as fontes às quais recorrem): “A dialética, portanto, não tem jurisdição no terreno propriamente científico. Não é uma forma de fazer ciência de outra forma, mas uma tarefa diferente da propriamente científica, que pode e deve pressupor a ciência em sua modesta especificidade, mas cujos objetivos são diferentes. A dialética é filosófica e, como [Sacristán] disse uma vez, “o filosófico é um nível, não uma teoria”. Daí decorre que a pretensão de dialetizar sem antes ter analisado cientificamente resultará em uma ciência ruim (nula inclusive) e, em geral, também em uma má compreensão de situações concretas” (Petruccelli, Dal Maso; 2020; 15829).
Esta é uma profissão de fé anti-dialética rejeitada pelos expoentes máximos do marxismo clássico e revolucionário, que sempre defenderam a relação crítica de Marx com Hegel30. E para piorar a situação, em sua resposta a algumas críticas, reafirmam que “Do nosso ponto de vista, as definições de dialética como ciência ou como lógica são as mais problemáticas e as que têm menos apoio, embora possam parecer úteis para a popularização” (“Althusser y Sacristán: problemas y debates“), o que é um escândalo do ponto de vista do marxismo e de suas melhores tradições; levando também em conta o fato de que todo o questionamento da dialética sempre veio desde a direita por causa do fato de que a dialética é, “em sua forma racional“, segundo Marx, “escândalo e abominação para a burguesia e seus apoios doutrinários, pois na intelecção positiva do que existe inclui, ao mesmo tempo, a inteligência de sua negação, de sua necessária ruína; porque concebe toda forma desenvolvida no fluir de seu movimento, e portanto sem perder de vista seu lado perecível; porque nada o faz retroceder e é, por essência, crítica e revolucionária” (Marx, “fragmento do epílogo para a segunda edição do Capital“, em Roberto Sáenz, “Marx, Hegel y Trotsky. La fuerza estratégica de la dialéctica“, izquierdaweb).
Ao invés de separar Marx de Hegel, parece mais prolífico estudar em profundidade – algo nada simples – as relações críticas entre ambos. Como o fizeram, por exemplo, Lênin em suas Notas Filosóficas a Hegel (1915/16) ou Trotsky em seus cadernos sobre Escritos sobre Lênin, Dialética e Evolucionismo (1933/1935) e tantos outros pensadores marxistas como Antonio Labriola, Karel Kosic em Dialética do Concreto, o jovem Lukács em História e Consciência de Classe, Karl Korsch, Henry Lefevre, Ernst Bloch no O Pensamento de Hegel, Istvan Meszaros, Raya Dunesvkaya, John Bellamy Foster e tantos outros filósofos ou pensadores infinitamente mais fecundos que Althusser para a atualização do marxismo após a experiência do século XX. (Petrucelli e Dal Maso chegam ao ponto de apresentar Althusser como “o último grande filósofo marxista do século XX“…).
Em todo caso, já a partir de suas Notas Filosóficas à Ciência da Lógica de Hegel, Lenin apontou que não há como entender o Capital, especialmente seu primeiro capítulo, sem ter estudado toda a Lógica de Hegel, assim como Lenin aponta, de forma radical, extremando as coisas, “que o pensamento não só interpreta o mundo, senão que o cria”, não no sentido de que o mundo se cria a partir do pensamento, é claro, mas que a ação humana, sob certas condições materiais que precedem cada nova geração, reage sobre o seu entorno e deixa um mundo modificado, para o bem ou para o mal.
Mas Althusser é incapaz de entender nada disso, dado que sua preocupação específica é a chamada “prática teoria “, ou seja, a suposta criação do conhecimento… mas do conhecimento que não parece ter nenhum campo prático de aplicação; nenhuma relação com a prática humana (o que torna difícil entender, repetimos, seu conceito de “política”, porque política – revolucionária – refere a uma reação prática sobre a realidade, ou seja, sobre a esfera das relações humanas universais; as relações políticas entre as classes).
Finalmente, e muito resumidamente, temos a definição althusseriana de “a filosofia como luta de classes na teoria”. Para Althusser, a filosofia não é uma ciência, mas algo colocado em um lugar intermediário entre ciência e ideologia.
É verdade que a filosofia uma vez resumiu todo o conhecimento humano, conhecimento que mais tarde se tornou mais empírico e desagregado. Entretanto, há tanto filosofia na ciência, quanto lógica e metodologia, que tem bases estritamente científicas.
Em qualquer caso, o perigo de negar o status científico à filosofia ameaça com uma recaída no positivismo (Marxismo e Filosofia, Karl Korsch). Ou seja, menosprezar o marxismo como ciência crítica, no sentido de que não existe objetividade absoluta – a ciência avança por aproximações sucessivas – não há como separar o científico e o político à maneira de Max Weber, que reivindicava uma espécie de objetividade neutra.. A objetividade é historicamente condicionada, e quanto mais elevadas no sentido emancipatório as aspirações do que faz ciência, mais universais serão suas conclusões.
Dependendo de onde se pare nesta discussão, a avaliação da filosofia como uma “luta de classes na teoria” será considerada abusiva ou não. Em qualquer caso, toda ciência envolve elementos de avaliação; a objetividade completa da ciência é, por exemplo, uma ideologia, razão pela qual tampouco seria um parâmetro.
Mas estamos preocupados que o reducionismo da filosofia como luta de classes na teoria caia em uma abordagem anti-dialética, que ponha a luta de classes como padrão da verdade (o que é Zandhanovismo, como denunciou Bensaïd 31).
Parece-nos bastante errado colocar tão mecanicamente a filosofia neste terreno. E isto é também, a nosso ver, um tributo althusseriano ao estalinismo, que, perdendo todos os atributos da verdade objetiva, colocou todos os acontecimentos como se fossem submetidos à polaridade de uma “guerra civil” sem fim (no período entre guerras as coisas não relaxaram porque a Segunda Guerra Mundial estava chegando; no segundo período pós-guerra por causa da “Guerra Fria” e assim por diante). O reducionismo estalinista à polaridade estatistica dos “dois blocos” (a lógica conveniente do terceiro excluído) teve sua tradução filosófica em que, supostamente, existiam “as ciências burguesas e as proletárias” ….
Embora a ciência, como força produtiva, não seja imune ao impacto das relações de exploração, também não pode ser abordada de forma reducionista. As ciências contêm uma acumulação de conhecimento em espiral que, se está sempre condicionada pelo contexto social e de classe na qual se desenvolve, não pode ser reduzida a isso (a ciência não é uma superestrutura como afirmam Petruccelli e Dal Maso32; quando expressa conhecimentos objetivos é força produtiva; a ideologia é superestrutura, mas isso é outra coisa).
Assim, Lênin e Trotsky condenaram o proletkultur, que era o reverso desta mesma concepção, e promoveram a apropriação pela classe trabalhadora de toda a cultura universal como base para uma elevação cultural geral no comunismo, a sociedade emancipada.
Enfim, nenhuma das definições de Althusser pode ser avaliada fora do contexto político indicado, a servidão de Althusser ao aparato estalinista; tudo exige uma interpretação crítica porque o suposto “esquerdismo” do filósofo francês, sua oposição ao revisionismo, sua exaltada crítica ao reformismo, escondia não qualquer alternativa socialista revolucionária, emancipadora, mas era tributária da outra burocracia, aquela que controlava os países onde o capitalismo havia sido expropriado.
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Notas
1 Althusser y Sacristán. Itinerario de dos comunistas críticos, Ariel Petruchelli e Juan Dal Maso, Ediciones IPS, Argentina, 2020. Dsde o título, este trabalho começa com problemas, porque Althusser não era nem verdadeiramente “comunista” nem “crítico”; apresentá-lo como tal é um embelezamento injustificável. Como ele era um “peão” intelectual do estalinismo tardio (e não “pensadores críticos do estalinismo por ser tradição da qual faziam parte“, como Dal Maso e Petruccelli afirmam em um artigo recente, “Althusser y Sacristn: problemas y debates“), qualquer um que o menciona está inibido de apresentá-lo como comunista (a menos que queira continuar jogando a perspectiva comunista na lama). Ele também não foi crítico, embora tenha resistido a alguns setores do aparelho estalinista, na medida em que nunca rompeu com um partido comunista francês carregado de capitulações e traições nas costas, como, por exemplo, ter sido contra a guerra de libertação na Argélia (final dos anos 50), para não mencionar sua posição de direita durante o mês de maio francês, entre outras barbáries. Capitulações e traições que foram mascaradas dado o prestígio alcançado por aquele partido como adversário da ocupação alemã (adversário somente após a invasão de Hitler pela URSS em junho de 1941, mas antes um feroz defensor do pacto Ribbentrop-Molotov), como “o partido dos fuzilados”, ou seja, aqueles que enfrentaram a ocupação nazista na França, armas na mão, ainda que o fizessem com uma estratégia reformista e nacionalista. Os comunistas críticos eram, ao contrário, muitos autores e intelectuais que seguiram um rumo oposto ao de Althusser ou do próprio Sacristan e romperam com o estalinismo pela esquerda, enfrentando desde os anos 30 o “deserto” do isolamento e da minoria, enquanto os partidos comunistas controlavam o “mundo operário e intelectual”.
2 “La mort de Louis Althusser. Un universo de pensé aboli”, Rouge, 1421, 1/11/1990.
3 Significativamente, o livro de Petruccelli e Dal Maso enfatiza erroneamente que Althusser e Sacristan viveram em ‘um tempo sem revoluções’ na Europa… esquecendo vergonhosamente as revoluções anti-burocráticas (um esquecimento de lesa trotskismo!): ‘Eles viveram, escreveram e lutaram na Europa, numa época em que – com exceção de ’68 – o impulso revolucionário se encontrava acima de tudo em outras geografias: Ásia, África e América Latina‘ (2020; 7).
4 Bensaïd nos lembra que, segundo Althusser, o estalinismo era mais um “desvio teórico” (Rouge, 1973); que o digam as centenas de milhares de expurgados na década de 1930 na URSS!
5 Tenho uma certa proximidade com o trabalho de Althusser, porque no início dos anos 80 participei de um curso sobre Capital ministrado por um conhecido professor marxista da época, Althusserano convencido, Raúl Cerdeiras, infelizmente agora falecido. Por outro lado, deve-se notar com toda honestidade que Bensaïd, que pode tê-lo conhecido, concede a Althusser qualidades pedagógicas e gentileza pessoal, além de “academicismo”, embora a nós nos soe sua leitura como um estilo clássico do sectarismo estalinista disfarçado de “esquerdista”.
6 Se recupera Louis Althusser, Isaac Deutscher ou Perry Anderson (este último, mais contraditório, é claro, tem algumas obras muito boas – Antinomias de Antonio Gramsci; O Estado Absolutista, etc. – sem deixar de ser um deutscheriano), enquanto ao mesmo tempo os autores que eram consistentemente anti-stalinistas são ignorados ou condenados: Pierre Naville, Christian Rakovsky, Moshe Lewin, Raya Dunevskaya, E.P. Thompson e Mandel, Bensaïd, Draper, Cliff, Harman, Breitman e tantos outros que do trotskismo expressaram uma sensibilidade anti-estalinista pela esquerda e com rigor.
7 Bensaïd lembra que em meados dos anos 60 – quando ainda era independente – ele estudou Althusser “com paixão e inquietação, marcador na mão, sublinhando, anotando, discutindo longamente“, mas que na JCR (Mandelismo) já antes de 68 não havia althusserianos e “se estudava Korsch, Lukacs, Reich, Goldmann, Lefevre, até mesmo Sartre” (todos eles muito mais interessantes e críticos, exceto talvez o próprio Sartre) como forma de minar a “razão de Estado” estalinista (Bensaïd); 1990). È preciso não entender nada da brutal pressão exercida pelo estalinismo para reivindicar Althusser!
8 Ou seja, se nos afastamos por um momento de nosso plano de trabalho, é porque consideramos teórica e estrategicamente sério postular o “positivismo estaliniano” anti-dialético de Althusser hoje.
9 Sublinhemos que Raya Dunevskaya traduziu os Manuscritos Económico-Filosóficos para o inglês pela primeira vez no início dos anos 50, o que permitiu sua difusão no mundo anglófono. Um texto do jovem Marx que contribuiu para o desenvolvimento de uma certa sensibilidade crítica em relação à burocratização da revolução; uma sensibilidade crítica que, no trabalho de Althusser, se destaca evidentemente por sua ausência. Uma das idéias de Marx nos Manuscritos que Dunevskaya enfatizou foi: “deve-se evitar, acima de tudo, o voltar a fixar a sociedade como uma abstração frente ao indivíduo“.
10 Um livro relativamente recente sobre estes países de um ângulo liberal mas cheio de informações e detalhes úteis é Rideu de fer. L’Éurope de l’Est écrasée, 1944-1956, Anne Applebaum, Gallimard, Paris, 2011.
11 Por exemplo, o Círculo Petofi, que durante a revolução antiburocrática húngara de 1956 reuniu jovens intelectuais e trabalhadores radicalizados em grandes sessões de assembleia e além das discussões do dia discutia, por exemplo, os Manuscritos do jovem Marx: “(…) não foi por acaso que Nagy, os intelectuais Petofi e os Conselhos de Trabalhadores húngaros travaram suas batalhas ideológicas fazendo uso do humanismo marxista” (Dunevskaya; 2010; 168).
12 Hobsbawm permaneceu leal ao estalinismo até o final de sua vida. Seu trabalho O Século fos Extremos. O curto século XX é, em grande parte, uma justificativa do mesmo.
13 O retorno da natureza, DE John Bellamy Foster, é em parte substancial um exercício de rigoroso monitoramento da elaboração inglesa que traduz, entre outras coisas, como Engels foi um “especialista” em lidar dialeticamente com as relações “de fronteira” entre a natureza e a sociedade, em recuperar de uma dialética materialista.
14 O conceito de “ponto nodal” em Hegel se refere ao momento em que ocorre o salto da quantidade para a qualidade.
15 Astarita aponta este fracasso de Althusser em fundar uma dialética alternativa (“Althusser y el ‘objeto del conocimiento “). Quanto ao resto, antes de falar superficialmente sobre a dialética “não ser uma ciência” e tais vulgaridades, seria conveniente estudá-la primeiro, de uma maneira abrangente. Pode-se começar com a chamada Lógica Pequena (a chamada Lógica da Enciclopédia, que é a introdução à própria Enciclopédia) e a grande Lógica Hegeliana (A Ciência da Lógica), trabalhos muito ricos, mas extremamente difíceis devido à enorme quantidade de determinações que eles contêm.
16 Em nenhum caso deve ser entendida a dialética do salto da quantidade para a qualidade como algo puramente evolutivo, progredindo por pura acumulação quantitativa, mas como um processo que também é marcado por quebras, rupturas e eventos catastróficos.
17 Althusser parece esquecer que uma das grandes “obras” tardias de Marx foi, precisamente, suas notas antropológicas – uma antropologia empírica, não filosófica – (Krader).
18 Gaston Bachelard foi um epistemólogo francês da segunda metade do século passado.
19 Não pretendemos entrar na discussão psicanalítica, que é muito complexa, mas criticar a transferência mecânica para o marxismo de ferramentas interpretativas que têm seu campo de aplicação específico. Muito menos na discussão Freud/Lacan, embora, intuitivamente, a primeira nos pareça materialista em sua abordagem e a segunda uma fuga para o idealismo.
20 Este é um dos lados reacionários do pensamento de Kant de acordo com Bellamy Foster. No entanto, Foster sublinha que em Dialética da Natureza, Engels reivindica Kant por ter dialectizado o conhecimento do Universo com a idéia da nuvem cósmica no surgimento do Universo.
21 Que as categorias primárias emergem da experiência inicial dos bebês e crianças com seu ambiente é algo aportado pelo pensamento genético de Piaget.
22 Existem várias concepções marxistas de ideologia, mas neste texto não temos espaço para desenvolvê-la em demasia. Uma idéia, a de A ideologia alemã, é aquela que enfatiza a ideologia como uma inversão das relações reais (a metáfora da câmera); outra é a da ideologia como um sistema mais amplo de representações fornecidas pela classe dominante; e estão também os Aparelhos Ideológicos do Estado de Althusser (ou seja, os aparelhos que materializam as ideologias).
23 Koestler acabou desmoralizado e girando a direita. Mas isto não nega o valor de suas obras. Ele foi crítico em textos que justificavam o estalinismo, como Humanismo y Terror. Ensaio sobre o problema comunista de Merleau Ponty, que também se criticava Trotsky e se justificava os Grandes Expurgos (algo que certamente seria agradável ao paladar de Althusser).
24 Uma análise sugestiva de Bensaïd a este respeito é a que fala do “heroísmo burocratizado” dos militantes honestos após a burocratização, instrumentalizados por esta mesma burocracia que se arrogava o prestígio da Revolução de Outubro.
25 Sofística no sentido de sofisticaria; de uma argumentação rebuscada (e até esquemática) que parece querer mais refutar do que encontrar a verdade. Recordemos que o próprio Althusser reconheceu que a Revolução Teórica de Marx foi escrita antes da leitura do volume 1 do Capital (1964 é o ano do aparecimento desta, sua primeira obra importante, e também de sua leitura tardia do primeiro volume da maior obra de Marx).
26 Esta é a melhor página de todo o livro. Não é por acaso que Padura viva em Cuba e reflita uma profunda experiência com a burocracia, ainda que seu ângulo seja de esquerda social-democrata, de “reforma e abertura de Cuba” e não socialista revolucionário.
27 Korsch consegue tanto colocar a luta de classes no centro da história quanto não perder os parâmetros materialistas da relação entre natureza e sociedade.
28 Em Defesa do Marxismo, embora não tenha sido um livro elaborado pelo próprio Trotsky e que resume o debate interno nas fileiras do SWP, tem uma enorme riqueza dialética. É um texto que, embora focalizado no defensismo, consegue combinar dialeticamente a defesa do que ele ainda considerava um Estado operário burocratizado e a revolução política antiburocrática de forma extraordinária, uma forma que as correntes doutrinárias não conseguem entender.
29 Esta afirmação é tão séria, tem um histórico tão ruim no marxismo, que militantes do PTS apareceram publicamente se dissociando – em um artigo, é verdade, bastante obscuro e críptico – (Ariane Díaz, ‘Althusser, Sacristán y el método de Marx, izquierda diario’, Ariane Díaz, ‘Althusser, Sacristán y el método de Marx, izquierda diario’).
30 Isto para não esquecermos os biólogos dialéticos que são membros de Ciencia para el pueblo e tantos outros.
31 “Antes de 68, Althusser acreditava que poderia fazer a escolha política de um antipoliticismo tático. Depois de 68, sua verdade se viu presa entre o esquerdismo dos (micro) aparatos maoístas e o zhandanovismo da luta de classes na teoria. Sua resposta de 1973 a John Lewis apareceu então como a anexação à ortodoxia comunista das teses que foram herança do ultraesquerdismo” (Bensaïd, 25/10/2008). Entende-se que o ultraesquerdismo não é exatamente a esquerda revolucionária, mas, na maioria das vezes, uma postura política e doutrinária.
32 “Althusser y Sacristán: problemas e debates“, izquiedadiario, 21/03/21.
Original em http://izquierdaweb.com/althusser-filosofo-del-estalinismo-tardio/
Tradução: José Roberto Silva