Saques na Itália: a crise sanitária se converte em crise social

Na entrevista coletiva de segunda-feira no planalto, Paulo Guedes perguntado pelo ministro Mandetta, disse que o governo havia criado condições de desembolso ou já liberado R$ 750 bilhões, dos quais R$ 200 bilhões, para o ataque a pandemia do Sars-CoV-2, ou seja 68% do total foram para bancos, empresas aéreas e seus congêneres do grande capital.

Dias após o IPEA demonstrava que o número de pessoas que deveriam ser atingidas pelo famigerado “corona voucher” seria o de 100 milhões, 46 milhões de desconhecidos a mais que o levantamento dos cadastros de “informais”. Qual a renda mensal deles? Em qual o nível de miséria estaremos ao final disso?

Fechando o dia Mandetta alertava: os números que conhecemos ainda dizem respeito a casos que atingiram as classes alta e média alta, devendo subir muito quando chegar “às comunidades”. A solução do governo para isso se dá com repressão: as empesas de telefonia disponibilizaram gratuitamente para o governo alertas a partir de torres de telefonia da aglomeração atípica de portadores de celulares naqueles locais. A pandemia transforma o não relacionamento em relacionamento, mas jamais exigiu, para sua eliminação, a invasão de privacidade pelas forças de inteligência. A única vacina contra o ataque a direitos inalienáveis é a mobilização.

As mentiras, protelações e posições negacionistas, eivadas de darwinismo social”, protofascistas e neoliberais de Bolsonaro, não são originais: se repetem em vários países do mundo, como na Itália.

Sobre o que vem ocorrendo na bota (e do qual não podemos afirmar estarmos isentos) publicamos abaixo artigo publicado por nossa Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie. (NT).

Em poucas horas, surgiram e se multiplicaram diferentes chamados nas redes sociais para sair às ruas e saquear supermercados para sobreviver.

Por Agustín S.

Sem dúvida, a Itália se tornou o exemplo de “tudo o que poderia dar errado” em relação ao controle da pandemia do Covid – 19. Embora seja um país “desenvolvido” na Europa, imagens de pacientes que se aglomeram em todo o espaço existente circulava pelo mundo mostrando o colapso do sistema hospitalar no norte do país (a região que concentra o maior número de casos) e a taxa de infecções e mortes continua a crescer dia a dia, apesar da quarentena que já leva várias semanas.

Embora a região mais afetada tenha sido o norte, onde o vírus entrou no país, nos últimos dias a maior preocupação do governo Giuseppe Conte tem sido a situação no sul, onde em poucas horas surgiram e multiplicaram-se chamadas de diferentes redes sociais a sair e saquear supermercados para se abastecer. Vários vídeos gravados por cidadãos italianos em suas casas se tornaram virais, especialmente um em que “um pai, acompanhado por sua filha, avisa o prefeito de Palermo, Leoluca Orlando: ‘Se minha filha não tem um pedaço de pão para comer, Vamos saquear os supermercados.

Da mesma forma, grupos de What’sApp e Facebook surgiram com apelos semelhantes que reuniram centenas de seguidores em poucas horas, e até as primeiras tentativas de saque foram feitas em hipermercados em Palermo (cidade da Sicília), onde vizinhos apareceram nos caixas com seus carrinhos cantando o canto de “basta de ficar em casa, não temos dinheiro para pagar, devemos comer“, uma situação que também se repetiu na região da Campânia (Nápoles) e foi acompanhada por um aumento significativo de assaltos nas ruas, onde setores desesperados da população começaram diretamente a roubar sacolas de compras das pessoas que saíam dos supermercados.

Esses fatos mostram que, devido ao contraste histórico entre o norte e o sul do país, embora o foco da crise da saúde esteja no norte, é no sul onde a crise da saúde vai levar a uma crise social. Além de ter um PIB per capita muito menor do que o norte, o sul do país concentra quase 4 milhões de trabalhadores informais (a chamada “economia paralela”) e tem uma taxa de desemprego jovem de 75%. São esses setores da população que já estavam desempregados ou que ficaram por conta da quarentena, os que vivem dia após dia, os que mais sofrem com o peso da recessão econômica e não conseguem lidar com mais um dia de quarentena se não receberem assistência do Estado.

Isso explica por que, nos últimos dias, o foco das atenções dos governos locais (prefeitos) e nacional tem sido o de conter o descontentamento e a raiva da população. Giuseppe Conte, primeiro-ministro italiano, declarou que destinará 400 milhões de euros em subsídios a serem entregues pelos municípios. No entanto, essas medidas mínimas de assistência já se mostraram insuficientes. Nas últimas semanas, o Estado distribuiu um subsídio universal de 600 euros por mês (o suficiente para comprar alimentos por alguns dias, mas não para pagar aluguéis e outras despesas diárias que toda família trabalhadora deve enfrentar), o que não impediu os sinais recentes de alerta para o possível surto de pilhagem. O próprio Conte mostra a incapacidade de seu governo de encontrar uma saída para a crise econômica e social que está esquentando no sul quando exige da União Européia uma “saída dos 27” [países que compõem a UE. A.S.] com exigências orçamentárias às autoridades européias que ocultam a recusa do governo italiano de tocar nos lucros dos capitalistas locais para financiar a ajuda do sistema de saúde e dos setores de trabalhadores que precisam de assistência econômica.

Juntamente com a verborragia europeísta, as autoridades nacionais e locais já mobilizaram forças repressivas nas cidades do sul para proteger a propriedade capitalista em hipermercados contra a possibilidade de saques [1], vem declarando que “a democracia está em risco” (palavras do próprio Conte) e que por trás dos apelos à pilhagem se escondem as intenções das máfias sicilianas.

Mas o que está realmente em risco não é “democracia”, em abstrato, mas a institucionalidade da democracia burguesa italiana, das mesmas instituições que hoje condenam milhões de trabalhadores italianos a passar por quarentena na miséria (até o ponto que milhares deles decidem arriscar romper o isolamento para se alimentar) e milhares de italianos a morrer em condições de aglomeração devido ao colapso do sistema de saúde subfinanciado no norte do país.

As alusões quase bizarras a um suposto papel das máfias por trás dos saques (uma espécie de discurso à Maria Eugenia Vidal extremado) é uma tentativa lamentável de deslegitimar o justo descontentamento dos setores populares diante da pobreza a que lhes submete o Estado, cujas tentativas de auto-suprimento em detrimento dos lucros das empresas de supermercados são muito mais “democráticas” do que as instituições cronicamente corruptas do sistema político italiano [2] e que recentemente geraram descrença generalizada por parte dos eleitores diante de todo o arco político [3] .Se alguma máfia lucrasse com o descontentamento popular, seria responsabilidade exclusiva dos partidos e do regime político que constantemente empurra a população para o ceticismo antipolítico e a falta de alternativa. A crise do COVID-19 também é o estouro da bolha de estabilidade do capitalismo italiano, com a qual estouram todas as contradições latentes em seu sistema social, acumuladas ao longo de décadas.

Parte desse mesmo fenômeno é que a Itália se depara com a possibilidade de um transbordamento dessa magnitude, com ameaças de saques maciços em várias cidades importantes e, provavelmente, com uma grande crise que se cultiva neste exato momento, parcialmente oculta pelo isolamento forçado pela pandemia, mas alimentada pelo descontentamento justo e que não pode parar de crescer dos milhões de habitantes que sofrem com essa crise, tanto econômica quanto de saúde. A crise italiana pode se transformar em um colapso, como nunca foi visto em um país da Europa Central pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial, e que poderá ser o prelúdio da crise em outros países imperialistas de magnitude diferente [4] (sem falar dos periféricos e semicoloniais [5]).

Tradução: José Roberto Silva

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Notas

[1] Além do anterior deslocamento de tropas da OTAN nas rotas italianas.

[2] Só é necessário citar escândalos conhecidos mundialmente como os de Berlusconi para ilustrar a corrupção que atravessa a política italiana.

[3] A própria suposição de Conte é um exemplo disso, uma vez que a formação “5 estrelas” da qual ele faz parte é um agrupamento do tipo “partido junta tudo”, que ganhou popularidade com um discurso anticorrupção populista e anti-política.

 [4] Vale ressaltar que a situação em países como a Espanha (com taxas de contágio que poderiam superar os italianos) ou mesmo os Estados Unidos é extremamente preocupante, especialmente considerando as orientações criminosas de Trump e outros governos como o de Bolsonaro.

[5] Embora os países mais afetados pela pandemia permaneçam imperialistas (Itália, Espanha, EUA), o eventual crescimento de infecções em países semicoloniais (com muito menos recursos econômicos e de saúde para lidar com a crise) poderia resultar em explosões muito mais rápidas. Exemplos dessa possibilidade são países com grandes aglomerações de trabalhadores e bairros populares, como é o caso dos subúrbios de Buenos Aires na Argentina. (NT.: e da Grande São Paulo, Rio de Janeiro e Baixada Fluminense)