Os perigos do oportunismo
JOSÉ LUIS ROJO
Os fatos são teimosos e marcam que Del Caño obteve 550.000 votos, algo mais de 2% dos votos para presidente, a pior eleição da FIT-U desde 2011 (embora tenha acrescentado mais uma força).
Sem perder de vista o contexto objetivo da grande polarização, é claro para nós que existem responsabilidades claras da própria FIT nesses resultados; entre outras coisas, por ter tentado manter a divisão da esquerda.
Por outro lado, é claro que a análise de uma campanha eleitoral não deve ser medida centralmente em votos. No entanto, como a campanha da FIT foi tão oportunista, tão focada na auto proclamação, não há como escapar dos resultados.
E os resultados foram tão fracos que deixaram, de certo modo, em falta ao conjunto de esquerda, ao ter um desempenho tão fraco (sem excluir disso o fraco impacto de Del Caño em dois sucessivos debates presidenciais)[1].
Mas não queremos aqui colocar culpa em Del Caño, nem nos estender nos resultados meramente numéricos (análise que realizamos em outras notas), mas dar conta do processo inercial que a FIT arrasta, assim como o próprio PTS que a hegemoniza.
Tirar lições deste curso oportunista, sem com isso fazer demagogia sectária que dificulte a expansão da influência da esquerda entre setores amplos é o objetivo desta nota.
Estratégia e tática
Vamos começar com o mais geral. A política dos revolucionários em relação às instituições parlamentares é muito complexa; é caracterizada por tensões contraditórias.
Por um lado, trata-se de entender que a abordagem de nossa participação legislativa é tática; o estratégico é o que pode mover montanhas está nas ruas, nas forças sociais extraparlamentares que movem a história.
No entanto, e por outro lado, a representação parlamentar é muito importante taticamente para referenciarmos politicamente em nossa ação, na luta pela representação política das grandes massas.
Ou seja, para que os trabalhadores tenham um ponto de referência socialista independente e revolucionário que os ajude a processar sua experiência com as forças do sistema.
Aqui as simples palavras estratégia e tática são muito importantes para não confundir os planos de nossa ação. É que, quando falamos em representação parlamentar, continuamos falando, de qualquer maneira, de instituições que não são nossas, que são estranhas para nós, das quais devemos participar, mas nunca perdendo de vista o fato de que elas dependem de uma forma de representação que dilui aos trabalhadores e que os expropria de sua representação real, que só pode ser obtida em ação direta e construindo seus próprios organismos.
O tático é a nossa participação “institucional”, por assim dizer; o estratégico é incentivar as lutas, a organização e a conscientização da classe trabalhadora. Essas são as demandas contraditórias que resumem uma política parlamentar revolucionária.
Essas considerações gerais devem permitir especificar os critérios em cada caso. Daí também que, basicamente, a participação parlamentar e eleitoral em geral dos revolucionários, tem como objetivo principal a educação política das amplas massas sobre qualquer conquista no campo da representação (Rosa Luxemburgo).
Obviamente, essa representação – cargos – é muito importante porque permite cristalizar um ponto de apoio a partir do qual apresentar nossa política; traçar uma linha demarcatória ante as forças burguesas em escala de massas (nada secundário ou que possa ser desprezado de maneira infantil).
No entanto, são os objetivos estratégicos que devem sempre marcar a ordem de prioridade no momento de nossa ação política geral nessas instituições e/ou na campanha eleitoral.
Nada disso significa ser sectário. Perder de vista o fato de que, quando nos dirigimos ao grande público, existem mediações, uma certa linguagem para ser compreensível e assim por diante. Insistimos: nada que possa ser resolvido com receitas sectárias.
Contudo, mesmo evitando a confortável lógica sectária do pequeno grupo, somos obrigados a atentar a certos parâmetros, ainda mais quando obtemos votos e representações (ou quando uma frente eleitoral é mantida por muitos anos e que não avança em direção a um passo mais orgânico; que se torna uma mera cooperativa eleitoral).
Alguns exemplos da atuação do PTS
Sobre o que é tudo isso? Trata-se das opções de política eleitoral que marcaram o FIT sob a hegemonia do PTS (não esquecendo de critérios idênticos anteriormente sob o PO e Altamira).
Não repetiremos aqui a política ultimatista falsamente “unitária” de ter privilegiado um acordo com o MST – a organização mais desacreditada da esquerda – e não com o nosso partido por ocasião do período anterior a agosto.
Nem o fato de haver desconsiderado completamente a colocação de uma candidata quando o movimento de mulheres foi um dos mais dinâmicos dos últimos anos. Limitação acerca do tático e estratégico, isso foi feito (excluindo-se aqui até ir a internas com nossa companheira Manuela Castañeira) porque Del Caño “mediava melhor”, questão que deve ser atendida em qualquer caso, mas sempre subordinada às considerações da luta de classes mais gerais.
E essas considerações marcam que nesta eleição, não apostar em uma companheira mulher era, de certa forma, um crime político. Uma total e completa falta de sensibilidade política, priorizando as necessidades do aparato sobre qualquer outra consideração.
Outro caso de cegueira política foi a falta de um perfil anticapitalista na campanha da FIT. Outra questão polêmica porque para as forças que a compõem parece ser uma questão “propagandística”, mas o objetivo geral sempre estabelecido pelo marxismo revolucionário em campanhas eleitorais é o de educar politicamente as massas.
Mas se passamos a alguns problemas mais profundos, aí as coisas ficam muito mais complicadas. A FIT foi submetida a forte pressão parlamentar para votar a favor da “emergência alimentar” em unidade nacional com todas as forças burguesas.
Aqui existem várias questões a serem consideradas. Uma primeira não menos importante é que os movimentos de desempregados têm necessidades urgentes. No entanto, dada a maioria da administração que possuem, essas necessidades são resolvidas de maneira corporativa (facilitando a burguesia que os oponha ao resto dos movimentos de trabalhadores).
Segundo, o fato de toda a burguesia ter sido orientada a votar a favor da emergência alimentar, abster-se seria suficiente para não misturar as bandeiras de classe; para não cair na armadilha de suas lágrimas de crocodilo pela “pobreza” sem deixar esses setores sem sua reivindicação.
As razões para ter votado com a burguesia podem ter muitas justificativas, mas há algo que é evidente: temeu ficar em má situação diante da opinião pública (de que a burguesia parecia “satisfazer” uma reivindicação sem deixar a esquerda de fora do jogo).
As pressões da opinião pública sobre as forças com representação parlamentar da esquerda existem e se fazem valer enquanto se elegem para os cargos. Isso é algo que não pode ser negado.
Mas, para enfrentá-las corretamente, é necessário ter em mente a questão e não inverter a ordem de prioridade: a pressão da opinião pública não pode nos levar a perder nossos objetivos estratégicos (um elemento clássico da adaptação oportunista).
Sem dúvida, eles temiam perder votos se votassem de maneira diferente. Ou, talvez, temia-se ser “sectário” com os movimentos sociais. No entanto, há momentos em que não há como não ir contra o fluxo, mesmo porque nosso programa é o trabalho genuíno.
A pressão da opinião pública, os critérios eleitoralistas, o medo de ir contra a corrente são outras tantas pressões quando se consegue posições parlamentares.
Existe, portanto, o perigo de mudar a trilha de nossa ação passando de um critério baseado nas lutas dos trabalhadores para outro ligado à legitimação eleitoral[2].
O segundo exemplo dessa linha de menor resistência é a maneira pela qual o PTS aborda a necessidade de ter parlamentares. Insistimos que a representação parlamentar da esquerda é uma necessidade para nos transformar em uma força de massas; algo que não será alcançado com receitas sectárias.
No entanto, isso não significa que esse objetivo deva ser cumprido a qualquer custo; nem, tampouco, gerar ideologias a esse respeito.
Por isso, ainda ressoa a explosão de Del Caño – em polêmica com nossa companheira Manuela Castañeira – na ocasião da repressão na Pepsico, onde afirmou que “com 20 deputados isso não teria acontecido”…
Além das ilusões do PTS sobre com quantos deputados estavam sonhando na dita eleição, a declaração de Del Caño foi equivocada e oportunista porque, eventualmente, a única maneira de evitar essa repressão (e até vencer o conflito) teria sido uma greve nacional do sindicato ou uma greve geral.
Algo que no momento a esquerda não está em posição de impor, mas que os mandatos da esquerda deveriam facilitar o desenvolvimento.
Depois, não houve denúncias sobre o pacto social que ocorreu durante a última campanha e nos debates presidenciais, além de incentivar o corte nas urnas.
Aqui, se combinam duas questões de natureza diferente, mas ambas têm a marca do oportunismo: colocar as questões táticas antes das estratégicas.
Denunciar o pacto social diante de um público esperançoso em Fernández não era fácil. Como já apontamos, não se trata de obter mandatos para se praticar sectarismos, o que seria criminoso.
Quando se conseguem parlamentares, se está obrigado a dialogar com a consciência e as expectativas das massas. No entanto, o principal ponto de vista estratégico é sempre a partir das necessidades dos trabalhadores (independentemente de que tenham consciência delas ou não).
Levando em conta os desenvolvimentos da consciência, o que não se pode fazer é não alertar sobre o que está por vir, a menos que o que domine sejam considerações eleitorais, ou seja, novamente táticas, para não malquistar-se com o eleitor K ao que, ademais, se pedirá o corte da cédula…[que os eleitores de Fernandez votassem fizessem dobradinha com os candidatos a deputados da FIT].
Precisamente, o auge do oportunismo estava na campanha convocando o corte de cédula. Procurou a todo custo impor a fórmula presidencial da FIT. Recusou-se categoricamente a abrir internas com nosso partido. Foram feitas mil manobras para alcançar essa posição e, quando chega a hora de fazê-la valer em meio da polarização, desertou vergonhosamente.
Aqui, novamente, seguindo o mesmo padrão oportunista, os objetivos táticos se puseram por cima das perspectivas estratégicas.
Que a polarização era muito forte? Obviamente. Que quando vamos a uma campanha eleitoral queremos eleger? Sempre. Mas isso não pode ser feito à custa de perspectivas estratégicas: quando Del Caño, em um debate presidencial com 30 pontos de audiência, chama o corte de cédula…o que está chamando é que não votem nele!
Além da estupidez de um candidato que pede para que não o elejam, existe o problema político de que, em vez de ficar contra o vento e a maré quando a tempestade se aproxima, adotar a linha de menor resistência para atender às necessidades do aparato, só pode deixar para trás a perspectiva estratégica da luta pela independência da classe trabalhadora em função de ganhos táticos (cargos parlamentares).
Assim, repetimos, renunciou-se ao principal objetivo de uma campanha eleitoral de esquerda: traçar uma linha demarcatória de classe ante os candidatos patronais.
A lógica insensível da adaptação
A educação política do PTS dificulta enfrentar esses problemas. É um grupo auto proclamatório que acredita ser “imunizado” ao oportunismo, o que agiganta sua cegueira frente as pressões às quais está sujeito, e não existe atalho sectário que resolva (por exemplo, uma lógica de autoconstrução como se o partido fosse uma “coisa” e não uma relação social).
Por outro lado, e ainda mais sério, o PTS é uma força completamente instrumental[3]. Seu critério é “faça o que digo, mas não o que faço”, numa espécie de interpretação errônea de Trotsky que supostamente afirmara que “o fim justificaria os meios“, perdendo de vista quais meios errôneos também arruinariam o fim[4].
Sempre apontamos que o PTS carece de um balanço do estalinismo e esse problema se impõe na sua ação cotidiana. Façamos ou digamos qualquer coisa, se o disse o “único partido revolucionário”, está tudo bem …
O instrumentalismo, a falta de pontos de referência mais objetivos, o vale tudo e etc., são elementos que podem derivar no oportunismo mais grosseiro.
Mas aqui queremos nos referir a outra coisa. Ao fato que os mecanismos de adaptação ao regime se fazem valer sutilmente; nenhuma força pode estar “imunizada” frente a eles e muito menos ainda quando se tem uma certa representação eleitoral.
A sutileza aqui foi explicada muitas vezes por Rosa, Lenin e Trotsky. Mas há que experimentar para entendê-la. Por isso, muitas vezes parece que tropeçamos na mesma pedra.
No caso do PTS, existem vários problemas sobrepostos; a maioria deles pode parecer “insignificante”. Alguma perda de critério militante. Uma adaptação muito unilateral às redes sociais. O abandono do trabalho “pessoa a pessoa” pela instalação midiática. Forjar a militância de maneira descolada, ou de costas, muitas vezes, das lutas reais. Muitos focus group e campanha militante zero. Muito discurso duplo (algo é dito para dentro e outra coisa fora, pelo qual se perde a verificação da política na ação e o diálogo com os demais) e assim por diante.
Ou seja: um conjunto de problemas que, sem perceber, nos fazem caminhar “por outra via”. Atenção: a coisa é complexa, porque quando deixamos de ser grupos de propaganda e nos tornamos organizações de vanguarda (sem mencionar que, se adquirirmos influência em massa), as escalas e os problemas são outros, mudam de natureza. E se recusar a deixar de ser um pequeno grupo por causa dos perigos que isso implica é a coisa mais reacionária que existe.
Contudo, quando a escala de nossa ação se amplia da mesma forma que nossos interlocutores, quando os companheiros que se reúnem vêm de âmbitos mais amplos e menos politizadas, quando adquirimos representação parlamentar e recorremos a mídia dia e noite e ombreamos com os dirigentes das forças burguesas, o que se precisa cuidar é de não perder os caminhos da nossa construção.
Em outros textos, já falamos sobre essa ideia do extraordinário historiador da ex-URSS, Moshe Lewin, quando ele enfatiza que o processo de burocratização (neste caso seria uma adaptação oportunista) tornou-se, precisamente, essa mudança de via: a passagem da prioridade na construção política entre as grandes massas e suas lutas para privilegiar o aparato estatal como ponto de apoio.
Para além da desproporção na comparação, a metáfora parece útil para nós e é exatamente a mesma que o alerta que Rosa nos fazia: devemos apostar em uma ampla influência entre as massas trabalhadoras, assumir os riscos e desafios que isso implica em termos de representação parlamentar mas sendo conscientes e educando no sentido de que para isso se concretizar não se deve perder os caminhos estratégicos, que é o trabalho de base entre os trabalhadores, mulheres e jovens.
A educação política instrumental e auto proclamatória do PTS não ajuda nisso e levou crise para a própria FIT.
[1] Nossa avaliação é que a figura de Del Caño saiu enfraquecida da rodada eleitoral. Isso por razões centralmente políticas, pelas quais a direção do PTS é responsável, bem como pelo fato de que lhe faltam atributos ativistas que o tornariam uma figura mais forte. Esta não é uma opinião nossa somente, mas se espalhou amplamente entre o eleitorado de esquerda e além
[2] Retornaremos abaixo essa ideia da mudança de caminho de nossa ação que tem a ver com o compromisso com lutas e ações diretas substituídas pela legitimação da opinião pública e eleitoral (uma atividade que é realizada com pesquisas em mãos e focus group e não com trabalho de base).
[3] Instrumentalizar é usar uma circunstância e/ou situação para propósitos completamente diferentes daqueles ao qual deveriam servir.
[4] Supomos que isso se deva, talvez, a uma leitura incorreta de textos valiosos de Trotsky, como “Sua moral e a nossa”, entre muitas outras razões.
Tradução: José Roberto Silva