O Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, celebrado em 25 de novembro, destaca a urgente necessidade de enfrentar as múltiplas formas de opressão que atingem mulheres e pessoas gestantes, incluindo a violência institucional expressa na criminalização do aborto e na precarização do acesso à saúde reprodutiva. No Brasil, essa luta ganha contornos ainda mais graves diante de legislações conservadoras, retrocessos no atendimento público e a resistência de governos que relegam os direitos femininos a segundo plano. Inspirado por movimentos internacionais, como a “Maré Verde” latino-americana, o movimento feminista brasileiro tem na ordem do dia sua mobilização por um direito básico e inalienável: o aborto legal, seguro e gratuito.
Maria Cordeiro
O Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, celebrado em 25 de novembro, simboliza a luta das mulheres contra a violência de gênero e opressão em uma realidade em que, próximo de uma em cada três mulheres com 15 anos ou mais, sofre violência física ou sexual ao longo da vida. Esse cenário, que persiste há décadas, torna evidente a necessidade de ações estruturais e urgentes.
Essa data homenageia as irmãs Mirabal, três irmãs, cujos nomes eram Pátria, Minerva e Maria Teresa, brutalmente assassinadas em 1960 por resistirem ao regime do ditador dominicano Rafael Trujillo. As irmãs fundaram o grupo de juventude, Movimento Revolucionário de 14 de Junho, em homenagem a opositores do regime que foram torturados e mortos em 14 de junho de 1959. Desde então, o 25 de novembro carrega a memória de suas lutas, ampliando o debate sobre todas as formas de violência contra mulheres e pessoas gestantes.
Maré Verde e o exemplo argentino
O movimento feminista internacional tem mostrado sua força ao inspirar conquistas como a legalização do aborto na Argentina, e a descriminalização em outros países da América Latina, inclusive essa luta foi construída e composta pelas nossas companheiras das Las Rojas, colateral de mulheres da corrente Socialismo ou Barbárie. Essa “Maré Verde” é um exemplo de que a luta organizada, persistente e de base pode transformar sociedades. No Brasil, o aborto ainda é criminalizado, salvo raras excessões cada vez mais dificultadas, pauta que revela a face mais perversa da política conservadora no país. Com cerca de 500 mil abortos clandestinos realizados anualmente, resultando em mais de 200 mortes evitáveis, o Brasil evidencia como a criminalização atinge desproporcionalmente as mulheres negras, indígenas e de baixa renda.
O Aborto induzido é crime no país, exceto em três situações – nos casos em que a gravidez põe em risco a vida da gestante, gravidez resultante de violência sexual e casos de anencefalia fetal. No entanto, em uma ofensiva reacionária, até esses restritos casos do procedimento ser legalizado é posto em cheque, tanto pelo desmonte dos hospitais e estabelecimentos em que o aborto legal é realizado pelo Sistema Único de Saúde, SUS, assim como por iniciativas do parlamento conservador que busca criminalizar o aborto inclusive nos casos que são previstos por lei no Brasil.
Pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito
O direito ao aborto legal, seguro e gratuito é uma questão de saúde pública e justiça social. É preciso enfrentar o conservadorismo que permeia a sociedade brasileira e lutar por um sistema de saúde que garanta acesso universal à interrupção da gestação de forma segura.
Embora a prática de abortos clandestinos afete todas as gestantes, o impacto dessa realidade sobre a vida das mulheres é marcado por desigualdades profundas. As pesquisas realizadas no Brasil indicam que a interrupção da gravidez ocorre de maneira mais frequente entre mulheres negras, indígenas, nordestinas, além daquelas com menor nível de escolaridade e baixa renda.
Estudos apontam que as mulheres negras têm uma probabilidade 46% maior de recorrer ao aborto em comparação com as mulheres brancas, independentemente da faixa etária. Esse dado sugere que, para cada 10 mulheres brancas que realizam um aborto, aproximadamente 15 mulheres negras tomarão a mesma decisão. Essa informação foi revelada em uma pesquisa recente publicada na revista Ciência e Saúde Coletiva.
De acordo com os dados da pesquisa, a estimativa para o período entre 2016 e 2021 é de que, ao atingir os 40 anos, uma em cada cinco mulheres negras e uma em cada sete mulheres brancas terá passado pela experiência de realizar um aborto. Nesse sentido, coloca-se a questão de classe e raça sobre os corpos que abortam: enquanto pessoas ricas, maioria branca, pagam centenas de reais para realizarem abortos em clínicas especializadas, pessoas negras, da classe trabalhadora se submetem a procedimentos perigosos e muitas vezes letais.
PEC 164/2012 e o desmonte dos direitos reprodutivos
No Brasil, a luta feminista enfrenta novos desafios diante da tentativa de aprovação da PEC 164/2012, que propõe garantir a inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”. A PEC entrou na pauta da comissão neste último dia 18/11, e na quarta-feira, 27/11, sob fortes protestos, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. A PEC, surgiu como cortina de fumaça do conservadorismo pautando sua agenda de costumes após o imenso repúdio da sociedade contra a escala 6×1. É importante colocar que essas duas pautas estão conectadas, pois as mulheres que tem seu direito ao aborto negado representam o setor mais precarizado da sociedade, principalmente afetado pelo regime de exploração brutal que é a escala 6×1.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha, filiado ao Republicanos, conhecido em 2016 por conduzir o golpe institucional que derrubou Dilma. Essa emenda, se aprovada, criminalizaria todas as formas de aborto, incluindo os casos hoje previstos em lei: risco de vida à gestante, anencefalia fetal e gravidez resultante de estupro.
Além disso, a proposta ameaça avanços científicos, como as pesquisas com células-tronco e a fertilização in vitro, demonstrando um retrocesso alinhado às agendas conservadoras.
Mas, além do avanço a galope da extrema direita e dos conservadores no parlamento e nas prefeituras, também estão surgindo processos de luta que dão conta de uma polarização assimétrica. Ou seja, os ataques constantes começam a gerar reações de resistência por baixo; isso demonstra que há espaço para se impulsionar as lutas desde o cotidiano da classe trabalhadora e dos setores oprimidos, na perspectiva de reverter pelas ruas a situação reacionária atual.
A luta nas ruas tem demonstrado ser uma ferramenta poderosa contra os retrocessos e as mulheres são ponta de lança na luta contra as mais diversas opressões e exploração. Foi a mobilização do movimento de mulheres que pressionou e fez recuar Arthur Lira e a bancada evangélica na votação do PL 1904, conhecido como “PL do Estupro”. A proposta, que tramitaria em regime de urgência com apoio de setores do governo Lula-Alckmin, foi denunciada como um projeto fundamentalista e machista da extrema-direita. Esse episódio reforça a importância da luta independente e da organização nas ruas para barrar ataques aos direitos das mulheres. Também podemos acrescentar a luta da vizinhança da Sena Madureira e da comunidade Sousa Ramos contra a construção do túnel pela prefeitura, pela qual seria despejada toda uma comunidade e derrubadas centenas de árvores. Após várias semanas de mobilização, a construção foi freada temporariamente.
Entre a extrema direita e a esquerda da ordem: A legalização do aborto será arrancada pelas ruas!
Os ataques ao já restrito direito ao aborto como a tramitação da PEC 164/2012 são, sem dúvida, fruto do crescimento da extrema direita a nível internacional, força política vitoriosa nas últimas eleições municipais brasileiras – junto com a direita do Centrão, levaram cerca de 70% das prefeituras nacionais e consolidou bancadas evangélicas e conservadoras como forças centrais no arranjo parlamentar.
Atualmente, o desafio é combater os ataques dessa extrema direita crescente enquanto se faz oposição à esquerda ao governo de conciliação liderado por Lula Alckmin, que apresenta uma agenda predominantemente liberal em detrimento de pautas sociais e feministas. A ausência de compromissos claros com os direitos das mulheres, evidenciada pelo discurso conservador que marcou a campanha eleitoral de 2022 — incluindo o repúdio oportunista à legalização do aborto seguro e gratuito — reflete as limitações da frente ampla formada em torno da chapa Lula-Alckmin. Esse posicionamento indica a continuidade de uma política que perpetua retrocessos nos direitos reprodutivos e antifeministas, já presentes no governo anterior. O governo Lula adotou uma postura de omissão em relação ao debate, em especial, o governo se absteve de se posicionar sobre o PL 1904-2024, esse é o projeto de lei que propõe equiparar a punição para mulheres que realizarem abortos legais após a 22ª semana de gestação à pena de homicídio, e liberou a bancada para votar como quisesse. Apenas após pressão das ruas pelo movimento de juventude e de mulheres (ponta de lança na luta contra as opressões a nível internacional), a aprovação do projeto foi adiada.
Além disso, após 13 anos de governo, período no qual o Partido dos Trabalhadores (PT) se manteve afastado da defesa desse direito, Alckmin, durante a campanha eleitoral, reiterou sua posição: “Quanto ao aborto, o presidente Lula é contra, eu sou contra. Ele foi presidente por oito anos e não mudou nenhuma lei”. Quando Lula finalmente se manifestou sobre o PL, manteve a mesma posição, reforçando a visão contrária à mudança na legislação.[1]
Nesse sentido, entendemos que apenas com a mobilização nas ruas, massiva, como foi o caso da luta contra o PL1.904, é possível lutar pelos direitos reprodutivos, sem nenhuma confiança nos governos e patrões!
Crise no acesso ao aborto legal: o caso do Hospital Cachoeirinha
Enquanto a luta pelo direito ao aborto avança em países vizinhos como Argentina, Colômbia e México, o Brasil enfrenta retrocessos graves. Recentemente, a Prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, o único no estado que realizava o procedimento em gestações avançadas, com mais de 22 semanas. Esse hospital foi responsável por 87 dos 172 procedimentos realizados na capital em 2023, tornando sua paralisação um golpe significativo contra pessoas que dependem do Sistema Único de Saúde para interromper uma gravidez em condições seguras.
A suspensão, implementada pelo prefeito Ricardo Nunes, reflete a agenda conservadora e negligente que coloca em risco a vida de milhares de mulheres e pessoas gestantes. Reverter essa decisão é urgente, e a luta nas ruas aponta o caminho. Somente com mobilização será possível garantir a reabertura imediata do serviço no Hospital Vila Nova Cachoeirinha e avançar para conquistas mais amplas.
Inspiradas pelas conquistas argentinas, as mulheres brasileiras reivindicam uma campanha nacional pelo aborto legal, seguro e gratuito nos hospitais, incluindo a reabertura imediata do Hospital Vila Nova Cachoeirinha. “Vamos para as ruas! Só assim garantiremos nossos direitos e enfrentaremos o retrocesso imposto por governos e instituições que rifam nossas lutas”, exclamam as militantes. A história tem mostrado que é na resistência e na mobilização que reside a possibilidade de mudança.
[1] Observamos a nefasta política de capitulação de setores do trotskismo como correntes do PSOL (MES e Resistência) ao governo de Lula Alckmin e suas contrarreformas.