“A beleza está nas ruas”
Onda histórica de ocupações estudantis na Argentina
Por Roberto Sáenz
“Um espectro está mais uma vez pairando sobre o mundo capitalista, o dos ‘grupúsculos’. Nos Estados Unidos, no Japão, na Europa Ocidental, há cerca de dez anos, nasceram novas jovens vanguardas, cuja ação contrastava violentamente com a unção dos partidos operários tradicionais, partidos já estabelecidos, convertidos em instituições respeitáveis e respeitadas, que se curvavam aos ritmos parlamentares da democracia burguesa. Por outro lado, os “grupúsculos” [os grupos estudantis de esquerda, R.S.] não têm rótulos conhecidos. Nascidos da social-democracia ou de partidos stalinistas, eles ainda fazem parte do mundo ignorado que a imprensa descobre ao acaso a partir das manifestações, ao mesmo tempo em que decifra suas siglas” (Bensaïd e Weber, “Mayo 68: un ensayo general”, edições Era, México, 1969)
“Universidade dos trabalhadores e ao que não gosta se foda, se foda” (canto unificador em todas as ocupações estudantis que percorrem o país)
No momento em que escrevo estas linhas [1], está ocorrendo na Argentina o processo de ocupações universitárias nacional mais amplo das últimas décadas. Logicamente, que partindo de muito mais atrás em termos de radicalização e organização do que naqueles anos e marcado por enormes desigualdades, configura, no entanto, um fenômeno em muitos aspectos sem precedentes que, dependendo de sua dinâmica, pode ser comparado ao Maio Francês ou ao processo estudantil que precedeu o Cordobazo; estamos longe disso, mas a faísca acendeu.[2]
Um fenômeno que podia ser previsto tanto pelas provocações de Milei ao movimento estudantil e universitário quanto por algo que temos repetido mil vezes (na verdade, desde que o libertário de extrema-direita ganhou a presidência): que as relações de forças na Argentina não foram provadas. De qualquer forma, agora estão sendo testadas (ainda que os passos do governo a esse respeito permaneçam cuidadosos).[3]
Essa onda de ocupações universitárias começou na última quarta-feira, 9/10, quando o governo conseguiu passar seu veto à lei universitária pelo “ninho de ratos” do parlamento.[4] Esta forma de luta começou imediatamente nas universidades, escolas terciárias e secundárias de todo o país que, neste momento, só está crescendo, embora deva ser avisado que já existe uma operação da CIN e dos sindicatos docentes e não docentes para romper as ocupações através de marchas de silêncio e greves passivas que esvaziam as faculdades. Ou seja, medidas corporativas contra o movimento estudantil.[5]
Claro, os pés vão mais rápido que a cabeça, o que é tradicional, e os próprios “pés” são mais firmes para votar as ocupações do que para passar a noite nas faculdades. No entanto, apesar de todas as desigualdades “físicas”, por assim dizer, e também na consciência do que elas estão conduzindo (as diferenças de programa em relação à luta ainda não são compreendidas)[6], a faísca foi acesa.[7]
1- Uma nova conjuntura mais polarizada?
O governo conseguiu aprovar seu veto, mas, como Miguel Ángel Pichetto, com enorme experiência em batalhas políticas burguesas (um dos políticos burgueses mais lúcidos da atualidade, insuspeito de ser um “Trosko”), apontou de forma contundente e em tempo real, “Milei ganhou perdendo”: seu triunfo pode ter sido “pírrico”, o que veremos nos próximos dias. É que a mídia e os analistas (e o peronismo covarde!) fazem o carnaval de que “ele sempre avança e sempre vence” e blá, blá, blá, mas não é assim. Com sua ação impensada (economicamente, toda a briga é por 0,14% do PIB), Milei abriu uma nova conjuntura nacional, mais dinâmica e polarizada, que neste momento não é possível saber exatamente quais desenvolvimentos terá. Por enquanto, já se formou uma frente única, uma Santa Aliança contrarrevolucionária, que vai desde o governo, passando pelas autoridades universitárias, até os sindicatos burocráticos do setor, para romper as ocupações estudantis. Não é à toa que Bullrich acaba de declarar publicamente que “os estudantes irão com coquetéis molotov para provocar revoltas com mortes“, palavras de uma provocadora profissional, ou uma profecia do que ela gostaria, mas não pode fazer.
No último CC do nosso partido apontamos que era possível que o caminho para as eleições que começaram a ser traçadas semanas atrás não fosse tão simples (“Un escenario brasileño atenuado”, izquierdaweb). Embora todas as forças burguesas, e até mesmo a FITU – especialmente o PTS, para ser mais justo – já estejam de quatro na campanha eleitoral, parece que as eleições se afastaram um pouco, pelo menos no curto prazo.[8]
Os jornais ainda não estão dando cobertura da luta estudantil como deveriam, embora o editorialista do jornal La Nación Jacquelin tenha apontado dias atrás “o perigo de que Milei esteja comprando um maio francês“…
Pichetto reclama que o governo governa ao ritmo de decretos e DNU, depois que ele próprio e toda a “oposição” colaboracionista lhe deram poderes especiais em muitas áreas. Essa tendência de governar por decreto tem vários problemas. Ele pode fazê-lo, de certa forma, porque as forças burguesas lhe dão governabilidade e preferem que Milei pague o custo do super ajuste e das contrarreformas estruturais que a burguesia exige. No entanto, esse consenso implícito pode mudar se uma crise surgir de baixo. A crise não está emergindo, neste caso, da classe operária, que é muito controlada pela burocracia sindical, nem dos movimentos extremamente frágeis dos desempregados, mas de um lugar que nenhuma outra corrente de esquerda viu, exceto o nosso partido: o movimento estudantil.
Se o movimento das ocupações estudantis conseguir convergir, como é nossa orientação, com o movimento operário, a dinâmica que pode se abrir é a de um “choque de trens”; é por isso que o governo começou a “se cobrir” e quer assustar: “eles querem nos depor“, “Molotovs“, “mortos“, etc., dando um álibi aos ratos do peronismo e dos sindicatos. Por um lado, um governo cego e encorajado por suas “conquistas” e, por outro, um movimento de ocupações que poderia consolidar-se e radicalizar-se – embora, insistimos, apesar de sua massividade ainda seja cedo; poderiam abortá-lo com o trabalho de pinça que já começou.
Por sua vez, o governo continua sendo como o caracterizamos: um governo de extrema direita e, além disso, desonesto e provocador. Um governo com o qual não se pode chegar a acordo por não respeitar os acordos.[9] Ele faz o que quer porque todo o regime lhe dá governabilidade, mesmo que também estabeleça limites.[10]
De qualquer forma, parece haver uma mudança na situação por duas razões (a mudança na situação ainda não foi confirmada; no prazo imediato depende do conflito estudantil, embora tenha havido conflitos pontuais de trabalhadores). Um mais “macropolítico”: o estado de espírito entre as massas dá a impressão de mudança. A inflação parece estabilizada em torno de 4%, o dólar e o risco-país caíram, os mercados parecem estar felizes e estáveis e, no entanto, a recessão continua, os salários são uma ninharia e os preços estão delirantes; além disso, a comunidade empresarial industrial está reclamando da abertura das importações.
Há algum tempo temos apontado que a decadência da Argentina burguesa é descomunal. A capital do país, Buenos Aires, admirada mundialmente por sua beleza, hoje parece uma cidade dos anos 40 do século passado em relação à modernidade que pode ser apreciada, por exemplo, em São Paulo (no cordão central da cidade, não na Grande São Paulo que é muito parecida com a Grande Buenos Aires).[11] A CABA e a GBA são uma megalópole em decadência onde os serviços públicos parecem ser do século XIX; falta apenas que os antigos metrôs que atravessam a cidade sejam puxados por bois! Precisamente, a característica definidora das megacidades, de acordo com Mike Davis, é a de seus serviços públicos em colapso. E na Argentina eles não estão apenas desmoronados, são verdadeiras “relíquias” da antiguidade…[12]
O bloqueio estudantil da General Paz na semana passada, aclamado pelas buzinas dos motoristas, assim como a marcha de ontem na rotatória da Rota 8 em San Miguel, entre muitas outras expressões, mostram o apoio popular à luta universitária. Algo antecipado nas últimas pesquisas: o mileísmo comum está na defensiva; este não é o Brasil de Bolsonaro, nem mesmo o de Lula ou os EUA Trump: é a Argentina, e a dinâmica praça-palácio não foi eliminada até agora, nem mesmo com o protocolo repressivo de Bullrich. Além disso, a popularidade do governo está caindo.[13]
O cara mexeu com a universidade, o que gera um sentimento muito profundo, e isso tem causado um enorme repúdio em toda a sociedade. Já aconteceu com López Murphy em março de 2001, mas parece que o mileísmo, acreditando-se todo-poderoso, não aprendeu essa lição.[14]
O segundo é o mal-estar econômico que está crescendo entre as massas. A maioria sente que o próximo ano será pior do que este (o que diz muito!) e esse é o elemento que mais pesa no dia a dia. Além disso, os conflitos sobre demissões estão crescendo, não apenas em Bonaparte, mas também na Petroquímica em Córdoba e outros. Até o momento, as demissões aconteciam sem dor nem glória, mas agora uma reação dos de baixo está começando. Parte disso é a última assembleia da Fate, onde, com toda a justiça, as bases, em uma assembleia massiva, acusaram o sindicato de ter deixado passar centenas de demissões sem levantar um dedo: uma verdadeira vergonha que deixou o sindicato à beira da derrota sem lutar!
2- O movimento estudantil argentino no século 21
Uma questão central é entender que o fator mais dinâmico dessa luta é o movimento estudantil, que privilegiamos em detrimento de professores e não professores. Parece-nos que os sindicatos desses dois setores estão em posição corporativa. É por isso que eles lançam medidas de luta promovendo faculdades esvaziadas, o que vai abertamente contra as ocupações e demandas dos estudantes. Rejeitamos categoricamente a ideia de que as e os trabalhadores universitários seriam apenas desse setor. Na Argentina de hoje há um fenômeno particular, que também aconteceu no maio francês e nas universidades de 69 no país: a universidade pública continua sendo massiva: dois milhões de estudantes universitários em uma população de 45 milhões, algo que não ocorre na maioria dos países. Ao mesmo tempo, os estudantes das universidades públicas – as universidades privadas são outra história, são de classe média alta na Argentina – na maioria dos casos já são trabalhadores e trabalhadoras. Não é por acaso que nas ocupações e assembleias há um canto massivo de “universidade dos trabalhadores e ao que não gosta se foda, se foda“.
Este é um fato fundamental a ser levado em conta quando acreditamos que o corpo estudantil, o atual movimento estudantil em andamento, é a vanguarda hoje da luta universitária, e que se a luta cresce e se radicaliza, as universidades e faculdades devem se tornar fatores de organização de outros setores dos trabalhadores.
Em maio de 1968, na França, com uma composição social diferente (embora também com um caráter muito mais radical do que o grau de onde partimos aqui no momento), Bensaïd e Weber afirmaram o seguinte: “Seria errado reduzir a politização da juventude a uma consciência intelectual. No século passado, a divisão da sociedade em classes correspondia na juventude à separação quase estanque entre os jovens trabalhadores e os jovens “mandarins”, herdeiros destinados a formar os quadros administrativos e militares da sociedade burguesa. Hoje essa separação não é mais tão marcada, e a camada, numericamente aumentada, dos alunos ocupa um lugar estratégico” (idem). E acrescentam: “O crescimento dos efetivos estudantis os tornou uma camada social numericamente importante e uma força social potencial. É inútil ferir sua ‘origem social’ (…) O que caracteriza os alunos muito mais do que sua origem é sua posição transitória. Saindo de seu ambiente social, ainda não integrado à sua futura classe social, eles estão politicamente disponíveis e não têm muito a perder” (idem).
Isso, dito corretamente para os estudantes franceses de 68, se aplica muito mais à Argentina de hoje: o corpo discente não é uma classe social, não é ‘pequeno-burguês’, mas uma camada social especial em plena definição, que, mais do que nunca, se identifica como classe trabalhadora (isso sendo dito contra os grupos que caracterizam esquematicamente o corpo estudantil do ponto de vista de “classe“).[15]
E é por essa razão que nossa corrente se recusa a sujeitar o corpo discente ao resto do corpo docente. Em vez disso, vemos a coisa do ângulo da unidade de classe e que a vanguarda e o setor potencialmente mais independente é o corpo estudantil, embora haja diferenças entre as faculdades e entre as universidades.
Uma novidade é que o elemento novo e mais dinâmico entre os trabalhadores universitários é o do pessoal não docente, algo sem precedentes, pois em geral o pessoal não docente era localizado à direita do corpo discente. Em nossa opinião, quem fica mais para trás são os professores universitários, que são em grande parte colocados como pequeno-burgueses, receptáculos das ameaças e dos versos mileístas-kirchneristas; um local que vemos como mais conservador, embora não tenhamos um panorama geral para afirmá-lo categoricamente.[16]
De resto, além das opiniões, há o teste da prática. O transbordamento em universidades como La Matanza (UnLaM), ou em UnLu (San Miguel, dirigido por ¡Ya Basta!), em UnGS, etc., para não falar de Filosofia e Letras da UBA, UnQui ou UnLa na zona sul da GBA, mas sobretudo os dos setores mais diretamente dos trabalhadores da GBA, são a prova prática do que estamos dizendo: 70% dos estudantes universitários são trabalhadores assalariados.[17]
A ocupação da Universidade de La Matanza é histórica, nunca havia sido tomada. Espancaram os alunos, pularam a cerca, radicalizaram suas ações iniciais. A UnGS também nunca havia sido tomada. São os setores estudantis mais populares que dizem “vão me deixar sem estudos” e saem para lutar apesar de suas limitações práticas e políticas: assembleias massivas, mas ocupações muito pequenas, extrema ingenuidade política, etc., todas marcas de um recomeço da experiência histórica, ainda não de uma juventude radicalizada, nem nos métodos nem politicamente.
É apenas um despertar, que pode se aprofundar ou pode ser inibido nos próximos dias ou semanas, a ver-se. Mas esse processo-movimento veio para ficar e ressurgirá ao virar da esquina se for apaziguado hoje. Ao mesmo tempo, não se trata apenas da questão das faculdades na situação atual. Este conflito coexiste com o da Petroquímica de Córdoba, com os presos e professores do estado em Rosário, o Bonaparte e o processo nos residentes e na saúde em geral, a crise de Sutna, o conflito aeronáutico que permanece sem solução e inúmeros conflitos que devem convergir com o movimento estudantil.
Nossa localização política geral é opor a praça ao palácio. Pedir desconfiança no Congresso, propor a rejeição do veto e o aumento do orçamento da universidade agora, não esperar pela discussão do orçamento de 2025, o que é uma armadilha porque o governo pode optar por continuar prorrogando o orçamento de 2023. Pressionar pela massividade das ocupações, sua radicalização por meio de bloqueios de ruas e estradas, as Interfaculdades, a rejeição das autoridades universitárias e suas manobras, a rejeição da subordinação do movimento estudantil aos sindicatos docentes e não docentes, a unidade operário-estudantil a partir de baixo, ou seja, o transbordamento de toda institucionalidade: “Os estudantes foram capazes de desempenhar um papel decisivo na crise de maio de 68 por duas razões: em primeiro lugar, porque a mutação da universidade e sua função social transformou profundamente o ambiente estudantil; em segundo lugar, porque o movimento estudantil, que não está sujeito ao controle dos aparatos tradicionais [no caso argentino não é o caso, mas entende-se que é menos controlado do que o movimento operário, R.S.], ocupa uma posição política conjunturalmente privilegiada” (Bensaïd e Weber, idem).[18]
E também vale a pena notar uma segunda razão, além da orçamentária, por parte do governo para atacar a universidade pública: nosso partido apontou mil vezes que o plano de Milei é global, e que em relação à universidade pública e muitas outras coisas, é profundamente obscurantista. Milei não é um liberal no sentido da palavra do século XIX: ele é um populista ultrapassado que se posiciona contra a modernidade e a ilustração e, por consequência lógica, contra a universidade pública e de massa; assim como ele disse que é contra a justiça social, é evidente que essa figura reacionária se opõe à ascensão social que, eventualmente, embora cada vez menos, a universidade permite.
3- “Nós somos o poder“[19]
Depois, há o problema da burocracia, que é um flagelo; o peronismo chama marchas sem greve e greves sem marcha: eles tomaram a decisão de não convocar uma votação que foi resolvida por três votos. No momento de encerrar esta edição, eles estão com uma política abertamente fura-greves: dividir os cortes, lutar para esvaziar ou quebrar as ocupações, convocar uma marcha à luz de velas para Pizzurno e greves docentes e não docentes para esvaziar as faculdades e as ocupações dos estudantes. Os sindicatos corporativos querem as “faculdades vazias” para que a greve possa ser vista, não dando a mínima para o movimento estudantil e o processo de ocupações; agindo direta e abertamente como fura-greves, com a ideia, como Bensaïd e Weber colocaram em seu texto de 50 anos atrás, de que os alunos seriam não-sujeitos: receptores passivos de conhecimento os quais devem ser tutelados. Essa é precisamente a posição que rejeitamos categoricamente nesta nota!
Depois, há o papel da esquerda no conflito estudantil. Desde o início do processo de luta contra Milei, propusemos que na esquerda havia, grosso modo, três orientações diferentes em relação a essa luta. O PTS saiu com a proposta de que as assembleias seriam nada menos que os “sovietes do século 21“, que “não tinham nada a ver com as assembleias de 2001” e questões assim. Sua estratégia foi e tem sido territorial por vários anos, sem outra explicação que não seja puramente eleitoral. Obviamente, quando há organização e abrangência suficientes, a territorialidade se impõe como elemento complementar; mas o PTS não tem uma coisa ou outra, apesar de seus sucessos eleitorais: ao contrário, regrediu à vista de todos em questões orgânicas e qualidade militante. Além disso, “teorizou” uma posição ridiculamente sectária em relação ao movimento estudantil em geral e aos centros estudantis de esquerda em particular (especialmente aqueles liderados por nosso partido). O PO, por sua vez, teve uma orientação construtivo-estratégica e política mais oscilante. Demonstrou-se que o compromisso com o movimento piquetero como a principal força social em oposição a Milei falhou – a fraqueza orgânica do movimento piquetero em cumprir esse papel era óbvia. O PO oscila permanentemente entre se resguardar atrás da FITU e do PTS (que é a liderança da cooperativa eleitoral) e um comportamento mais independente que permite acordos com nosso partido de tempos em tempos.
De nossa parte, sabendo que o movimento operário retrocederia, pelo menos em um primeiro momento, como resultado da contenção da burocracia sindical e do peronismo, apostamos no movimento estudantil. Não só porque o movimento estudantil é um ponto orgânico de apoio diante da inorganicidade dos desempregados ou das assembleias populares, mas também porque desde o início se sabia que o obscurantismo de Milei entraria em conflito com o movimento estudantil. E é isso, é o que estamos experimentando em tempo real. Após os confrontos entre a vanguarda e a esquerda no Congresso Nacional em fevereiro e novamente na sessão no Senado, as mobilizações mais numerosas do ano, não da vanguarda, mas da vanguarda das massas, foram as mobilizações educacionais. E diante da provocação de Milei de reafirmação do veto (na realidade desde a noite anterior), desencadeou-se o movimento nacional de ocupações de faculdades para o qual o NMAS e ¡Ya Basta! estávamos preparados, e isso é reconhecido por várias correntes que nos dizem que estamos crescendo no movimento estudantil.
Nossa política e estratégia em relação ao conflito são muito claras: queremos reverter o veto de Milei e não comermos a manobra de ir para um beco sem saída na “discussão” da lei orçamentária. Estudantes, professores e não professores (90% do orçamento da universidade) precisam de uma resposta agora. Apoiamos incondicionalmente as ocupações e suas massificações, indefinida ou redirecionável, que façam o conflito crescer e nacionalizar cada vez mais. Somos pela coordenação das ocupações nas interfaculdades regionais e por um Encontro Nacional de Estudantes, bem como pela unidade operário-estudantil: que as faculdades se transformem em um centro organizador de toda a luta contra o governo. Buscamos a radicalização dos métodos de luta e a consciência dos estudantes, não professores e professores.
Também propor Basta Milei e Pettovello Fora, ou seja, começar a sustentar que o governo deve sair, embora sem colocá-lo abertamente, porque as condições ainda não estão maduras para isso.[20]
Por outro lado, programaticamente, é verdade que queremos ir além da mera defesa da universidade pública. Isso já está sendo feito em parte quando os alunos subvertem a ordem educador-aluno. São os alunos que estão ensinando os professores a lutar. Marx afirmou nas Teses sobre Feuerbach, precisamente para subverter esse tipo de relação de dominação, que “o educador também deve ser educado”. A aprendizagem é uma relação coletiva de mão dupla entre educador e aluno. Além disso, queremos uma universidade disruptiva, que não seja reprodutora das relações sociais existentes, mas que as subverta. Está claro que o conhecimento possui elementos de força produtiva (ferramentas para a formação dos alunos), mas também de reprodução das relações sociais de classe existentes. Queremos fortalecer o primeiro e subverter o segundo, em uma transformação da universidade que acompanhe a transformação socialista da sociedade. É por isso que um de nossos grupos nas escolas de arte se chama Arte Insurrección e que nosso grupo universitário é uma juventude anticapitalista e não “nacional e popular”.
No entanto, é claro que a luta começa hoje pela defesa da universidade pública e pode crescer em seu programa na medida em que se una ao movimento operário e que juntos seja possível abrir uma situação revolucionária e uma radicalização que, obviamente, ainda está muito à frente.[21]
Nossa estratégia é que, como em maio de 68 na França ou no Cordobazo de 69, o movimento estudantil seja a faísca que ilumina a pradaria do movimento operário, porque somente se o movimento operário se levantar há possibilidades de derrubar o governo. De fato, queremos romper o calendário eleitoral que sustenta o governo provocador e de extrema-direita até 2027: agora é a hora, devemos trabalhar contra a governabilidade de um governo que não respeita as conquistas democráticas básicas da própria democracia burguesa e que, se pudesse, imporia uma “ditadura bonapartista” (embora esteja muito longe disso hoje).
Parece ilusório que possamos comparar esse processo com o maio francês ou o Córdobazo, mas não é. E não é algo puramente argentino. É uma nova etapa mundial que começa com a direita, mas que mais uma vez propõe um período de crise, guerras e revoluções, além de barbárie e reação, que propõe um reinício da experiência histórica dos explorados e oprimidos e reabre a possibilidade de uma radicalização do movimento de massas e das revoluções no século 21. Um pêndulo que oscila muito para a direita vai acabar rebatendo para a extrema esquerda, e é para isso que o NMAS e nossa corrente internacional, assim como nossa auventude anticapitalista de Ya Basta!, estão se preparando!
4- Post scriptum
Resumindo: estamos diante de um processo político, que é o conflito testemunhal do governo, porque o governo vai arrebentar com outros setores se conseguir explodir a universidade. É um conflito político, é educação, não se trata apenas do salário de professores e não professores. A exigência de rejeição ao veto é anti-institucional, além do fato de que a reivindicação da universidade vai contra o discurso obscurantista do governo. O peronismo já está dizendo que o veto é um “fato consumado” institucional que deve ser respeitado. Mas o processo estudantil que começou, se radicalizado, poderia ser transformado em uma espécie de “Maio francês para a Argentina” com tudo o que isso significa (“Rumo a um ‘outubro argentino’?“, esquerda web).
Não há memória de uma onda de ocupações nacionais de universidades na Argentina desde os anos 70. Pode ser radicalizado. E as medidas que temos que tomar têm que ser massivas, mas radicalizadas, transbordantes. Não queremos fazer nenhuma marcha com a burocracia: queremos que as universidades sejam tomadas, que bloqueiem ruas e estradas, queremos inter-faculdades e que se crie poder a partir de baixo contra a canalização burocrático-parlamentar do conflito. Como já apontamos, o Congresso é um beco sem saída, um covil de bandidos (Lenin).[22]
Se quisermos um avanço na Argentina, tem que haver uma onda de radicalização. A resultante agora é antiparlamentar, porque se vê como o Congresso é usado para levar tudo à via morta: Milei veta o que se canta para ele e pronto. A dinâmica não é praça-palácio em momentos como os que passamos, mas praça contra palácio, transbordamento e auto-organização.
E para tudo isso, é necessária uma massificação do processo. Não promovemos o “vanguardismo”, mas promovemos uma orientação de esquerda que permite ou ajude a toda uma nova geração a se radicalizar, que é o que precisamos para que a luta de classes na Argentina dê um salto de qualidade.
O governo está determinado, então vai entrar em confronto. O peronismo e seus sindicatos atuam como fura-greves 24 horas por dia. Acordos específicos podem ser feitos, mas essa é a diretriz geral. Bullrich se lançou a denunciar que “os estudantes querem mortos“, Milei deixou claro que “os trotskistas querem que o governo caia“, e imediatamente o peronismo saiu para assustar todos os grupos e redes sociais. Milei e Cristina “co-governam” contra o conflito estudantil (não há figura política mais cínica na Argentina do que Cristina Kirchner).[23]
Estamos perante um grande teste e uma grande oportunidade política e construtiva. A consigna “Abaixo o veto” é anti-institucional, é retroceder a algo votado no Congresso. E bom, que conste no Diário Oficial que eles vão retroceder a votação. E se queremos isso, o país tem que pegar fogo. E o conflito ainda é leve. Se se ocupam todas as faculdades, haverá problemas em todos os lugares, confrontos, ferimentos, tudo pode acontecer, eles vão incutir medo, eles vão dizer “sem violência”; e ¡Ya Basta! tem que estar na ofensiva da radicalização. Não devemos exagerar, devemos buscar a massividade, mas seguir a ideia de que podemos fazer um maio francês argentino.[24]
Em suma, esta história está apenas começando. O movimento que estamos começando a experimentar é “a rejeição do futuro que a sociedade burguesa promete e da mesma sociedade que promete tal futuro” (Bensaïd e Weber, idem). Esperançosamente, será um passo à frente em direção a uma radicalização anticapitalista da juventude.
NOTAS:
[1] Conhecido grafite poético-político do maio francês.
[2] Voltaremos a isso, mas é claro que uma verdadeira “frente única contrarrevolucionária” já foi posta em marcha pelo governo, através do PJ e dos sindicatos do setor, para deter a dinâmica independente do movimento estudantil.
[3] Milei acaba de sair nas redes sociais para dizer que “não é contra a universidade pública nem pretende taxá-la”… O que Milei está falando não é de sua consciência, mas, precisamente, das relações de forças.
[4] O minueto com a “oposição dialogista” (colaboracionista) e o peronismo político e sindical foi tal que eles deixaram passar, por ação ou omissão, tudo o que Milei precisa para governar.
[5] Dedicar-nos-emos mais tarde à caracterização do movimento estudantil e por que acreditamos que é o setor mais importante e dinâmico dessa luta e que as outras faculdades devem estar subordinadas a ele.
[6] Um exemplo disso é que a rejeição do veto e a exigência de um orçamento agora, para 2024, não é o mesmo que focar na complicada discussão do orçamento de 2025, que não garante nada, e muitas outras questões políticas e estratégicas que já estão delineadas nessa luta, que pode ser histórica mesmo que comece de tão longe em todos os sentidos. Ainda é um recomeço da experiência do movimento estudantil e veremos até onde vai.
[7] Tanto que foi feita uma declaração privada na reunião do gabinete do governo na qual Milei afirma que “os trotskistas querem me derrubar”…
[8] É impressionante como o PTS está adaptado ao jogo eleitoral. O PO tem uma orientação muito mais sinuosa e é um partido com o qual podemos fazer acordos, apesar de sua inconsistência.
[9] Recentemente, ele assinou um “compromisso” de “não fechar” o Hospital Bonaparte e imediatamente começou a esvaziá-lo, o que para todos os efeitos práticos é a mesma coisa. A palavra “mágica” que ele usa para isso, e que os sindicatos assinaram, é “reestruturação“.
[10] Os limites estão em questões do regime político, importantes em si mesmas, mas no momento o governo age com carta branca de toda a patronal em questões econômicas, embora as reclamações dos industriais comecem a crescer. Em matéria trabalhista, os gordos da CGT concordaram em certos pontos que poderiam afetar a burocracia (obras sociais e alguns outros pontos), razão pela qual agora eles nem têm a máscara de “lutadores”.
[11] Recentemente estive na casa de um companheiro da corrente que mora em São Bernardo, parte do que se chama de ABC, o cordão de municípios populares junto à cidade de São Paulo, e suas condições são muito semelhantes às da GBA. Fica claro, além disso, que o Brasil, além de ser uma potência econômica dependente (seu PIB se aproxima de 3 trilhões de dólares por ano), ainda é um dos países mais desiguais do mundo.
[12] Metrôs e trens, onde existem, são uma vergonha; o serviço de internet é 3G ou 4G quando o mundo já está em 5 ou 6G; há muitos bairros sem esgoto ou serviço de gás, etc.
[13] Em março, o governo estava com 51,5% de positivos e 48,5% de negativos; agora a tendência se inverteu: 47,4% de positivos e 52,6% de negativos (embora nas ruas a estatística pareça pior). Logicamente, onde o governo tem menos apoio é na província de Buenos Aires: de 1 a 10, tem um apoio de 4,5. Por outro lado, 54,8% das pessoas dizem que está economicamente pior do que antes, e aqueles que acham que a universidade deve ser pública e gratuita sobem para 71,1% (pesquisa nacional, outubro de 2024, Explanans).
[14] Fato comparativo importante: Milei realizou um evento miserável aos sábados, onde não reuniu mais de três mil pessoas. Nisso, ele não é nada parecido com Trump ou Bolsonaro; No momento, não tem capacidade de mobilização. Ele é mais o frontman da burguesia do que qualquer outra coisa.
[15] Lembramos que no início do ano o PTS insultou o corpo estudantil como “pequeno-burguês” e afirmou que agora, ao contrário de 2001, as assembleias populares eram “proletárias” (sic). Além disso, o PTS cita a definição de Trotsky do corpo estudantil como “uma câmara de eco barulhenta [dos] interesses e aspirações sociais das classes das quais foi recrutado“, uma definição que é genericamente correta, mas tem algum elemento desatualizado, já que na época de Trotsky não havia universidade de massa e, muito menos, uma universidade no mundo atual de assalariamento em massa. É claro que a condição de estudante continua sendo uma condição transitória (cremos lembrar que Moreno e Mandel não disseram nada de muito diferente sobre isso). Mas, embora transitória, está mais orientada para o mundo do trabalho do que nunca na história, por isso devemos evitar qualquer sectarismo em relação ao movimento estudantil, especialmente quando está em luta.
[16] É significativo que no maio francês, os professores universitários estivessem posicionados à direita. Professores renomados como Althusser, Lacan e Foucault tinham justamente essa posição, opinando que os estudantes eram “meninos mimados”, filhos de burgueses: a posição reacionária do PCF, à qual havia que subordinar-se porque era a “encarnação físico-política da classe operária”. Não nos lembramos de como era a posiçãoção da docencia universitária argentina durante o processo do Cordobazo, mas acreditamos que era diferente da dos “mandarins” franceses.
No entanto, houve filósofos marxistas que salvaram sua honra. Foi o caso de Herbert Marcuse, que foi muito prestigiado no movimento estudantil alemão (embora com uma posição equivocada e sectária em relação ao movimento operário), ou Ernst Bloch, exilado da antiga RDA no início dos anos 1960 (porque foi impedido de publicar sua obra O Princípio da Esperança e se radicalizou).
[17] Alguns dados falam por si no que diz respeito ao que temos assinalado: existem 62 universidades e institutos universitários estatais no país, com mais de dois milhões de alunos matriculados. Eles empregam 190.000 professores e 50.000 não professores (os mais explorados). 48% dos novos matriculados em universidades em 2022 (últimos dados disponíveis) são estudantes universitários de primeira geração em suas famílias. Nos subúrbios de Buenos Aires, o número é maior: na Universidade Arturo Jauretche (Florencio Varela) o percentual chega a 75,53%; na Universidade José C. Paz, 75,42% e na Universidad del Oeste, Merlo, 74,73%. Nada disso, é claro, significa que sejam as universidades mais politizadas. Elas não são: não há nada mecânico entre o caráter de “classe” de uma universidade e sua politização; pelo contrário, são as universidades e faculdades de ciências humanas em áreas urbanas que são sempre as mais politizadas (dados retirados de “El movimiento estudiantil contra Milei: ¿tiempo de una nueva resistencia?“, Eduardo Castilla).
[18] Bensaïd e Weber reforçam a ideia com algo que é mais atual hoje do que ontem (e muito mais atual na Argentina do que na França ou no Brasil): “Finalmente, e cada vez mais, o ambiente estudantil é determinado de acordo com seu futuro social e não de acordo com sua origem. Não é mais a sementeira de um mandarim cujo papel é atribuído secularmente (…) [mas] assalariados do Estado ou da indústria [que] se tornarão parte da grande massa de assalariados (…)” (idem).
[19] Outro grafite característico do maio francês.
[20] Para propor “fora Milei” abertamente e não apenas como propaganda, faltam condições: uma, que o conflito estudantil realmente se instale no cenário nacional, e duas, que haja uma confluência com as lutas do movimento operário que abram uma crise política, o que também não aconteceu até agora.
[21] “O processo pelo qual o movimento estudantil francês adquiriu sua fisionomia atual começou nos últimos anos da guerra da Argélia [final dos anos 1950] (…) O meio estudantil em massa estava pronto para apoiar a luta do povo argelino. Estudantes universitários e do ensino médio estavam vindo aos milhares para manifestações contra a guerra colonial [para não mencionar o que aconteceria dez anos depois em termos de apoio ao povo vietnamita, RS]” (Bensaïd e Weber, idem). É claro que o elemento internacionalista, mais difícil na Argentina, é outro elemento de radicalização, que se manifesta hoje no movimento estudantil nos Estados Unidos e na Europa Ocidental em apoio ao povo palestino.
[22] É engraçado que o PTS agora coloque essa definição em seus textos quando dias atrás se recusou a colocar como slogan “nenhuma confiança no Congresso”…
[23] Felizmente, ninguém pensaria em dizer na esquerda argentina que sua figura é uma conquista, como afirma Valerio Arcary a respeito de Lula no Brasil…
[24] Deve-se lembrar que no Maio francês, no movimento estudantil, embora não no movimento operário, a direção tradicional da época, o PCF, foi dominado pelo anarquismo, maoísmo e trotskismo. Uma de suas principais figuras foi Alain Krivine, uma figura da LCR francesa por muitas décadas.
Tradução de José Roberto Silva do original castelhano em https://izquierdaweb.com/la-belleza-esta-en-las-calles/
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