Publicamos o sétimo artigo da SÉRIE PARTIDO. No “O que significa assumir a militância como ‘profissão”, Roberto Sáenz, preocupado com as condições necessárias à construção do partido revolucionário na Argentina e nos demais núcleos da Corrente Socialismo ou Barbárie, dedica-se ao problema do salto dos camaradas de base a quadros e dirigentes do partido. Esse salto significa, sinteticamente, o desafio de encarar a militância como “profissão”, ou seja, à compreensão da militância como projeto de vida e elemento mediador de todas as demais atividades que possa desenvolver cada um. Obviamente que todos os militantes são necessários à militância consequente e não-burocrática. Ao contrário do que o senso comum possa deduzir, nas condições históricas capitalistas, a militância é a única capaz de desenvolver a personalidade humana de forma total. Porém, nenhuma nova equipe partidária pode ser pensada, criada e desenvolvida sem que tenha um eixo de construção. Núcleos de base, comitês regionais, comitês centrais ou buros políticos entram em crise e se destroem quando não têm um eixo de direção. Não basta ter um núcleo de capitães para se construir um exército, é necessário que esse núcleo tenha/construa um eixo de direção, um general que possa articula-lo de forma que se desenvolva como centro dirigente em todo o seu potencial. Para isso, é fundamental que parte dos dirigentes sejam remunerados para que possam dedicar a maior parte do tempo de trabalho à atividade militante e à coordenação dos quadros e dirigentes. Certamente que os critérios de remuneração partem da seleção positiva. Não dos mais “bem relacionados” ou mais “subservientes”, como é o critérios de seleção stalinista, mas dos mais esforçados, mais comprometidos com a construção e mais destacados militantes da organização. Deixemos o leitor com o artigo. Boa leitura!
Redação
O que significa assumir a militância como “profissão”?
ROBERTO SÁENZ
Uma nova geração de militantes está entrando em nosso partido; o mesmo está acontecendo em alguns núcleos de nossa corrente internacional. Essa é a razão pela qual estamos realizando essa coluna dedicada aos problemas da construção partidária: ela tem o objetivo de transmitir lições que fortaleçam o salto construtivo que estamos experimentando. Como parte desse esforço, dessa vez vamos nos dedicar ao salto de camaradas para quadros do partido e, acima de tudo, a assunção da militância como um projeto de vida.
O revolucionamento da personalidade inteira na militância
Aqui gostaríamos de nos voltar para uma questão crucial na vida de todo militante: o problema da “militância profissional”. O que queremos dizer com essa questão? “Simples”: tem a ver com aquilo a que o militante dedicará sua vida. É claro que existem graus e graus de militância: camaradas de base, quadros e dirigentes nacionais, para resumir. O militante pode desenvolver toda essa experiência em sua plenitude ou, por qualquer motivo, permanecer em um determinado estágio. Isso tem a ver com várias questões, não apenas subjetivas, mas também objetivas, que convergem – ou não – na perspectiva de assumir cada vez mais a militância como uma “profissão”. As objetivas têm a ver, sobretudo, com os companheiros que vêm da classe operária e que, antes de entrar no partido, criaram para si uma série de obrigações às quais não podem dizer “obrigado, não fumo”; entre elas, a mais clássica: ter uma família com filhos para sustentar. Se, em geral, o operário não pode escolher se quer ou não trabalhar em tempo integral na fábrica, em qualquer caso, para o companheiro estudante – mesmo que ele tenha que trabalhar de qualquer maneira – as definições muitas vezes têm a ver com aspectos mais “ideais”: a encruzilhada em torno de ter uma série de alternativas em mãos e ter que escolher qual direção tomar na vida; o que ganhar e também o que “sacrificar”.
É nesse ponto que surge o problema da “militância profissional”. Há o problema de como o partido pode ajudar o companheiro operário a superar o jugo do trabalho explorador diário e a se desenvolver como um quadro do partido. Isso não é fácil nas organizações de vanguarda, onde o número real de companheiros operários pode ser contado nos “dedos de uma mão” e, portanto, não é possível “desimplantar” os operários, como resultaria de uma leitura mecânica do “O que fazer?”. De qualquer forma, o partido terá de ver como pode ajudar esses companheiros de uma maneira especial [1].
Há também o problema dos companheiros que vêm do mundo estudantil. Nesses casos, o problema é mais uma questão de decisão de vida. Ou seja: se ele decide se dedicar de forma central à militância revolucionária. Daí o conceito de “profissão” de Lênin, que tem a ver com a dedicação dada a ela: assumi-la como uma profissão diz respeito a essa dedicação[2]. Um problema aqui é que muitos companheiros acreditam que isso é, mais uma vez, algum tipo de “restrição” de suas possibilidades de desenvolvimento.
Mas o que se perde de vista é que essa é uma contraposição formal entre “possibilidades ideais” e o desenvolvimento real da personalidade total de cada militante revolucionado pela atividade revolucionária. Essa foi a abordagem adotada por Georg Lukács (antes de se tornar stalinista) em “História e Consciência de Classe”, em que ele postulava de maneira aguda que a personalidade era “absorvida” pela militância revolucionária. Mas, acrescentamos nós, uma “absorção” revolucionária em que a personalidade é revolucionada e desenvolvida até limites inimagináveis; não há um camarada antigo que não diga que o partido não o mudou. Trotsky estudou isso em seus textos sobre a evolução da própria personalidade de Lênin: “Esse prodigioso maquinista da revolução tinha em vista uma coisa e apenas uma coisa, não apenas na política, mas também em seus trabalhos teóricos, em seus estudos filosóficos, bem como no estudo de línguas estrangeiras e em suas conversas: o objetivo final. Ele foi talvez o utilitário mais intransigente que o laboratório da história já produziu. Mas como seu utilitarismo foi combinado com a mais ampla visão histórica, sua personalidade não foi diminuída nem empobrecida por isso; pelo contrário, ela se desenvolveu e se enriqueceu incessantemente, à medida que sua experiência de vida aumentava e sua esfera de ação se ampliava” (Trotsky, “Lenin”)[3].
A personalidade não é algo “fixo” para toda a vida, rígido ou cujas limitações não possam ser superadas: ela é revolucionada de cima a baixo no próprio curso da luta revolucionária e da construção do partido. A militância revolucionária é a profissão mais empolgante e revolucionária que existe!
As responsabilidades dos companheiros remunerados
Deve-se fazer uma distinção entre assumir a militância como uma profissão e os companheiros que são remunerados, ou seja, que vivem economicamente por conta do partido. Esses são dois aspectos diferentes, mesmo que estejam relacionados em alguns casos.
Em geral, dá-se a impressão superficialmente (especialmente pela palavra “profissão”) de que o primeiro é reduzido ao segundo. Isso é um erro. Quando falamos em assumir a militância como uma profissão, o que estamos apontando é se essa atividade é colocada no centro de nossas vidas; isso é completamente independente de sermos remunerados ou não. O fato é que geralmente os quadros do partido – à medida que se tornam quadros do partido – tendem a tomar a militância como o centro de sua atividade geral, mas apenas uma minoria deles se desafia a isso.
Quando falamos de companheiros “remunerados”, estamos falando de outra coisa: aqueles companheiros que são indispensáveis ao partido em um determinado momento de seu desenvolvimento e que, devido ao caráter de suas atividades, não poderiam realizá-las – de forma geral, porque há muitos casos que não são assim – se estivessem trabalhando[4].
É claro que aqui há um conjunto de determinações relativas à proporção de remunerados em uma organização: o tamanho do partido, suas relações orgânicas com a classe operária, as circunstâncias da luta de classes e assim por diante. Essas são condições que devem ser avaliadas em cada caso concreto.
Isso pode dar origem a dois desequilíbrios característicos: que o partido, devido à falta de finanças suficientes ou a equívocos, não tenha os militantes remunerados necessários para seu desenvolvimento; ou que, por oposição, seja estabelecido um desequilíbrio total em que “todos” estejam remunerados[5].
Ao mesmo tempo, é preciso estar ciente de que a questão da remuneração é um problema real para o próprio companheiro remunerado. É preciso ter uma certa autodisciplina, uma dedicação ao trabalho. É preciso “honrar” a remuneração todos os dias: é preciso fazer a atividade funcionar quando o militante ou o quadro remunerado não tem um “chefe” para controlar seu tempo. Além disso, a remuneração “desenraíza” até certo ponto, especialmente quando se trata de organizações pequenas ou com um movimento operário que não é socialista.
E, no entanto, a remuneração é imprescindível se quisermos avançar na construção do partido e seu limite último é algo muito material e nada “idealista”: que haja companheiros[as] que possam se dedicar em tempo integral à construção e à atividade do partido; e ninguém pode ter esse tempo integral se trabalhar 8 ou 12 horas todos os dias.
Notas:
[1] Além do fato de que Lênin defendia “liberar” economicamente esses camaradas e colocá-los na conta do partido (algo impossível e desaconselhável nas atuais circunstâncias históricas), há um enorme trabalho educativo que o partido deve realizar, ligado a facilitar e lutar para que o camarada operário amplie suas perspectivas, se projete em atividades além daquelas especificamente de sua fábrica, grêmio ou puramente sindical, bem como também ajudá-lo economicamente a liberar parte de sua carga de trabalho, mesmo que permaneça na fábrica.
[2] Profissão vem do latim, professio: exercer um ofício, ciência ou arte. A profissão pode ser abordada como um trabalho que alguém realiza e pelo qual recebe remuneração financeira, mas não há uma relação mecânica entre os dois. As profissões geralmente exigem conhecimento especializado e formal, normalmente adquirido por meio de treinamento educacional. Os ofícios, por outro lado, geralmente consistem em atividades “informais” e são aprendidos na prática. De qualquer forma, a fronteira entre profissão e ofício é tênue
[3] Entende-se aqui que Trotsky usa a palavra “utilitarista” não no sentido pragmático e estreito atual, mas no sentido da personalidade “prática” que sabe como colocar toda a sua personalidade a serviço de um objetivo e que revoluciona sua personalidade de cima a baixo nessa atividade. Uma atividade que, em nosso caso, é a mais empolgante que existe: a revolução socialista.
[4] As remunerações apresentam uma série de dificuldades, pois se por um lado libera o militante do trabalho formal para assumir as responsabilidades necessárias com dedicação suficiente, por outro lado tende a gerar uma certa “dependência”, principalmente quando se estendem no tempo. Por isso, a questão é delicada e sempre se deve ter um “equilíbrio” com relação à sua duração.
[5] Esse desvio foi sofrido pelo velho MAS quando corretamente fez o giro para fazer a campanha eleitoral em 1983, acabou criando um “exército de remunerados”. O fato é que as proporções relativas devem ser respeitadas, pois se a nata dos quadros partidários for remunerada, surge o problema de o partido se desvincular da realidade e começar a viver uma vida própria, o que leva a desvios políticos de todos os tipos.