Logo após a votação do caráter de urgência para a tramitação do Projeto de Lei 1904/24, o movimento de mulheres deu uma poderosa resposta política pelas ruas a esse ataque histórico, levantando as consignas “não ao PL do estupro” e “Fora Lira”, nas manifestações. Além disso, é preciso exigir das direções do movimento de massas que essa luta seja nacionalizada e organizada em todos os locais de estudo e trabalho. 

Juventude Já Basta!

Nesta quarta-feira (12), a Câmara dos Deputados aprovou em regime de urgência a tramitação do PL 1904/24. O que significa que terá rito sumário, ou seja, não passará pelas devidas comissões, não será submetido à audiência pública e será aprovado se uma intensa reação das massas não ocorrer.

No Brasil, o direito ao aborto legal – previsto no longínquo Código Penal de 1940 – é extremamente limitado, considerando somente casos de gestação com risco à vida da gestante, fetos anencéfalos e vítimas de estupro. Mas, com o PL 1904 a realização do aborto após 22 semanas de gestação, mesmo no caso de aborto previsto por lei, será equiparado ao crime de homicídio.

O que, dito de outra forma, significa que se esse projeto tramitar e for aprovado, a gestante e quem realizar o procedimento de aborto poderá sofrer pena de até 20 anos de prisão, ou seja, uma pena muito maior do que a do estuprador, que é prevista de 6 a 15 anos de reclusão. Esse PL é um ataque sem precedentes, pois avança sem discussão e inverte totalmente responsabilidades ao criminalizar as vítimas; isso tudo em um país em que de 10 vítimas 6 são crianças, em sua maioria negras e periféricas, de até 13 anos de idade. 

Em um marco de recrudescimento da ofensiva ultrarreacionária capitaneada pelo bolsonarismo – apenas possível pelas concessões feitas a essa excrescência pelo governo Lula e sua frente de conciliação de classes -, se esse PL for aprovado, fará com que o Brasil tenha uma legislação que poderá ser comparada à de países teocráticos ou governados por organizações fundamentalistas.   

Para entender o contexto da apresentação do PL 1904 e da aprovação do regime de urgência, o STF suspendeu liminarmente a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proibia médicos de realizarem assistolia fetal depois de 20 semanas em caso de estupros, o que contraria recomendações da Organização Mundial de Saúde nestes casos.

A partir daí, o bolsonarismo, aproveitando o ambiente legislativo de vitórias ultrarreacionárias, à rendição do governo de conciliação de classes de Lula e a desarticulação do movimento social dirigido pela burocracia, viu a possibilidade de dar o troco à decisão do STF da forma mais covarde possível. 

Importante notar que a aprovação do PL 1904, na perspectiva da extrema direita, é apenas um passo tático para a estratégia de aprovar uma lei ainda mais nefasta que é o “Estatuto do Nascituro (PL 478/07)”, projeto que caracteriza o aborto como crime hediondo, proibindo-o sob qualquer circunstância.

Com mulheres à frente, construir uma reação unificada de todo movimento

A manobra de Lira – acusado de estupro por sua ex-mulher – e da extrema direita de aprovar em 23 segundos o regime de urgência, sem que resistência parlamentar alguma fosse feita, só foi possível pela conivência do governo Lula e dos partidos de sua base, que fizeram um acordo no Colégio de Líderes para que a votação fosse simbólica, ou seja, para que os deputados não precisassem se posicionar publicamente. 

A partir disso, ocorreu uma votação sumária sem que nenhum partido que se diz de esquerda – como PSOL e outros – fosse à tribuna orientar a bancada para votar contra o regime de urgência, fazer um contraponto ou apelar para a mobilização contra esse escandaloso ataque aos direitos das mulheres. 

Essa cena de Lira contando no relógio os segundos para aprovar o caráter de urgência, enquanto o país assistia de forma atônita, foi um escândalo de qualquer ponto de vista, pelo ataque que significou aos direitos reprodutivos e pela passividade da esquerda da ordem diante da ofensiva ultrarreacionária. 

Mas, fora do parlamento, a reação do movimento de mulheres foi rápida e impactante. No dia seguinte à votação foram realizados, pelo movimento de mulheres, importantes atos de rua em várias capitais do país tinham como principais motes “Não ao PL do estupro”, “Nem presas e nem mortas”, “Criança não é mãe e estuprador não é pai” e “Fora Lira”. 

O aparecimento da agitação “Fora Lira” nas manifestações de rua é um importante ganho político que coloca as coisas nos seu devido lugar, pois essa figura sintetiza o que há de mais nefasto hoje na política nacional contra os direitos das mulheres, dos trabalhadores e dos oprimidos, enquanto o governo Lula-Alckmin e sua base de sustentação fazem uma concessão atrás da outra para obter o apoio do “Centrão” às suas políticas neoliberais. 

Há de se lembrar que a posição de Lula é de um eleitoralismo totalmente sem princípios. Durante a campanha eleitoral em 2022, primeiro disse que o aborto era uma questão de saúde publica e depois disse que sempre foi contra o aborto, ou seja, utilizou uma  pauta histórica do direito das mulheres para ganhar votos de conservadores. Essa é uma das táticas de conciliação utilizadas por ele e por seu governo que tem como consequência o fortalecimento da extrema direita, que leva à frente medidas contra as mulheres, a classe trabalhadora e os direitos democráticos. 

Obviamente que dirigida pelo movimento de mulheres desde a base, é necessário levar a luta contra o PL 1904 para todos os movimentos e exigir que a CUT e as centrais do movimento operário, popular e estudantil assumam essa luta de fato. Como uma parte importante da vanguarda e das massas ainda tem ilusões de que o governo burguês de conciliação de classes, que abre cada vez mais espaço para o avanço da extrema direita, pode assegurar alguma conquista, é necessário combinar denúncias e exigências. Precisamos, além de denunciar mais essa rendição diante do avanço de pautas ultrarreacionárias, exigir que Lula – em primeiro lugar -, seu governo e sua base parlamentar se coloquem abertamente contra esse projeto.

Por uma campanha nacional pela legalização do aborto

Para além da luta contra o PL 1904, é necessário que se impulsione uma campanha nacional pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito nos hospitais. 

O aborto é uma realidade no Brasil e no mundo, independente de sua legalidade. No entanto, são realizados de maneira pouco segura, em clínicas clandestinas e sem nenhuma assistência, fazendo com que as vidas dessas mulheres sejam colocadas em risco. No Brasil, em 50% dos casos de abortos inseguros a mulher precisa ser hospitalizada e mais de 200 mulheres morrem por ano ao tentarem realizar uma interrupção gestacional clandestina. [1]

Nesse sentido, o aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública, pois sua realização de formas inseguras coloca em risco a vida de milhares de mulheres e pessoas que gestam, principalmente negras e moradoras das periferias. A não legalização do aborto evidencia o descaso com a sua saúde física e mental, além de escancarar o caráter misógino e elitista expresso na política nacional.

Portanto, é necessário continuar tomando as ruas e construir, desde as bases, essa campanha pela legalização do aborto, levando o debate às universidades, às escolas e espaços de trabalho lutando para que a consciência da população avance; as recentes mobilizações demonstram que podemos derrotar essa ofensiva reacionária e alcançar essa vitória histórica.

Do ponto de vista da organização, é preciso que, a partir da discussão em assembleias, possamos construir planos de luta e comitês para organizar as mobilizações. No caso da USP e das demais universidades, as direções dos DCEs devem convocar urgentemente assembleias de base para discutir a luta coletiva contra esse projeto. É dentro da perspectiva de impulsionar a luta independente dos governos e dos patrões que a Juventude Já Basta! te convida a se somar à batalha para derrotar o PL 1904. 

 

[1] Saiba mais sobre o tema lendo o texto “Por uma campanha pelo direito ao aborto no Brasil” escrito por Julia Bachiega e publicado no portal EsquerdaWeb em 9 de março de 2023. Leia em: https://esquerdaweb.com/por-uma-campanha-pelo-direito-ao-aborto-no-brasil/